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Nanni Moretti é um dos vultos recentes do cinema italiano de tradição neo-realista. Todos os seus trabalhos têm um forte teor auto-biográfico. Filma as suas convicções e incertezas políticas (Palombella Rossa, La Cosa), mas também os acontecimentos e os afectos da sua vida. Em Aprile, aborda o nascimento do seu filho e os problemas da paternidade, em Caro Diario, procura lidar com o cancro que lhe foi diagnosticado. Se para Moretti a arte tem uma natureza terapêutica,(1) nos seus últimos filmes procurou exorcizar o real da vida que o afectou directamente, em particular, a paternidade e a doença grave. No caso de La Stanza del Figlio, Moretti parece abandonar definitivamente a política, as tendências geracionais, a actualidade e até o seu ícone, a lambreta. Num certo sentido, renunciou também a filmar a sua vida pessoal, deixando de ser um mero representante (figlio) de uma época.
Sobre o argumento do seu último filme, Moretti confe ssa que era um projecto antigo, cujo roteiro tinha começado a ser escrito antes de Aprile (1998): "Não realizei naquela ocasião porque estava prestes a ser pai e não me sentia muito confortável em interpretar uma personagem que perde o filho tragicamente". La Stanza del Figlio concretiza assim o desejo de levar para a tela o tema da dor máxima que um pai pode sentir. Outro aspecto relevante é o interesse pela figura do psicanalista. Moretti nunca fez análise e, para realizar o seu filme, não só foi obrigado a ler muito sobre o tema, incluindo casos clínicos,(2) como chegou mesmo a consultar alguns psicanalistas italianos: Paolo Migone, Stefano Bolognini e Paolo Boccara.
À primeira vista, parece que o filme procura devolver-nos uma imagem humana da figura do analista e, por consequência, da própria psicanálise. Contudo, o desejo de Moretti, nas suas próprias palavras, passou por "confrontar essa personagem com um sofrimento, a morte do seu filho, face à qual ele seria totalmente impotente."(3) Existe aqui um voto claro por parte do realizador de colocar o psicanalista em apuros, deixá-lo à mercê do "real",(4) reduzi-lo a uma posição de impotência. O filme é nesse aspecto a encenação de um psicanalista que vacila e é incapaz de lidar com o real da morte do filho. É bom lembrar que a psicanálise se constitui com o abandono de Freud da hipótese do trauma externo em favor da proeminência de um trauma interno. Em sentido contrário, Moretti, neste filme, põe em causa o psicanalista (Giovanni) a partir da sua dificuldade em fazer face ao trauma externo (a morte do filho).
A história do filme é simples. Em Ancona, vive a família de Giovanni Sermonti (Nanni Moretti), a sua mulher, Paola (Laura Morante), e os dois filhos adolescentes, Irene (Jasmine Trinca) e Andrea (Giuseppe Sanfelica). Giovanni é psicanalista e atende os seus pacientes num consultório anexo à casa onde reside. Num domingo de manhã, recebe uma chamada de um paciente que precisa que ele o visite com urgência. Para o efeito, cancela a corrida (jogging) que tinha previamente programado com o filho. Este, em alternativa, resolve ir mergulhar com os amigos. Dá-se então o acidente fatal, Andrea morre com uma embolia. A lição que Moretti retira desta família de Ancona é que face ao real da morte cada um vai para o seu lado.(5)
Comecemos pelo título. No filme, a stanza é um quarto, um aposento, uma divisão, um lugar (espacial), mas em português o termo remete igualmente para uma paragem, uma fase (temporal). No fundo, a estância (la stanza) é o lugar onde se está e onde se permanece algum tempo. Espacialmente, para além da stanza del figlio, o quarto do filho que acaba por ficar vazio (una stanza vuota), temos também a stanza di lavoro, sala de trabalho, consultório de psicanálise; la stanza (sala) da pranzo, sala de jantar/cozinha onde a família se reúne; stanza di soggiorno, sala de estar onde recebem depois Arianna; stanza (camera) da letto, o quarto de dormir dos pais; stanza ainda no sentido literário, a história do filme, mas também a poesia que Giovanni lê na cama à mulher; por fim, a stanza (camera) mortuaria, a casa mortuária, onde todos pela última vez se despediram de Andrea. Do ponto de vista temporal, podemos enunciar as seguintes etapas do filme.
A estância do furto (la stanza del furto)
O filme começa (6) com uma corrida de Moretti (Giovanni) à beira-mar (estância portuária). Depois de tomar o seu café e assistir à passagem de um grupo de foliões hare-krishna, o psicanalista regressa a casa, ao seio de uma família (modelo) onde tudo parece correr bem. Mas a acção propriamente dita desencadeia-se a partir de uma chamada telefónica inesperada. Giovanni, na qualidade de pai, é chamado de urgência à sala (stanza) do director da escola onde estuda o seu filho. Toma conhecimento que "aconteceu uma coisa desagradável": o filho é acusado de ter feito desaparecer um fóssil da colecção do professor.
Com o seu acto, Andrea queria provocar o professor, no fundo, chamar a atenção de alguém que daria demasiada importância a coisas, para ele, insignificantes. Incapaz de contar a verdade ao pai, Andrea declara (7) mais tarde à mãe que foi apenas uma brincadeira (scherzo). A ideia era depois voltar a colocar o objecto no mesmo lugar.(8) O problema é que as coisas correram mal, a brincadeira tornou-se séria, deixaram partir o fóssil, o que impossibilitou que viessem a reparar o estrago e a devolver o objecto ao seu lugar. O objecto partiu-se e, por isso, perdeu-se. O professor reagiu mal ao encontrar o lugar vazio (la stanza vuota) na sua colecção de fósseis. O episódio deixou naturalmente Giovanni preocupado com o comportamento do filho.
Este incidente inicial é a vários títulos simbólico. Em primeiro lugar, nesta provocação do outro, o próprio pai não deixará de ser igualmente visado. Também podemos ler aqui uma certa denúncia de um falso e perigoso bem-estar (benessere) familiar. A estância do furto (la stanza del furto) mostra ainda que é porventura a própria falta (mancanza) que está paradoxalmente ausente (falta da falta) nesta família quase perfeita, mas porventura fossilizada (fossilizzata).
Por outro lado, o objecto furtado é muito significativo, um fóssil chamado amonite (ammonite). Em italiano ammonitore significa admoestador, mas também premonitório.(9) A amonite é de algum modo a chave significante (10) deste filme, pois condensa as vicissitudes da vida de Andrea. Temos aí o amo (amore, amare, a-mare), ou ainda, sem forçar muito, nitido, nítido, claro, puro (amore-nitido), a sugestão de um amor puro. Certo é que o objecto em causa, a amonite, é um fóssil marinho, algo que se encontra no fundo do mar (mare). Há aqui demasiada matéria significante para que o pai, psicanalista, se mostre incapaz de interpretar. Em resumo, o objecto que atraiu Andrea, em forma de espiral,(11) encontra-se nas profundezas do mar e ele mostrou que estaria disposto a transgredir para alcançar esse objecto do seu desejo, um objecto muito antigo, do passado, um fóssil.(12)
Para além do furto, Giovanni começa a ficar intrigado com a atitude do filho na competição desportiva. Num jogo de ténis a que a toda família assiste, Andrea parece perder de propósito. Segundo as palavras do pai, ele não demonstra uma vontade de triunfar que seria própria da idade. Eis um filho aparentemente feliz, mas que se deixa vencer, perder. Ironicamente, Andrea é alguém que carrega na origem do seu nome (andreia) a valentia e a virilidade. Nele a coragem é de outra ordem, uma coragem inconsciente, trágica. De facto, Andrea cederá sobre o seu desejo inconsciente, sobre a fantasia de se deixar vencer.
Por outro lado ainda, no divã analítico, e a título de mau augúrio, o paciente que se tornará central neste filme refere que achava estranho que estivesse bem e pensasse ao mesmo tempo em suicidar-se. Esta ideia que não lhe sai da cabeça evoca a presença no homem de uma misteriosa "pulsão de morte <Todestrieb>" (Freud). Mais tarde, é a doença grave, um cancro no pulmão, que paradoxalmente vai restituir a este paciente de Giovanni o alento e o gosto pela vida.(13) Aqui é bom recordar que a doença em causa foi aquela que atingiu o próprio Moretti. Este confronto com o real no corpo não deixou de se reflectir nesta obra. Não será por isso estranha a presença e a identificação de Giovanni com este paciente. Mas, a novidade deste filme passa antes por um Moretti que depois de se tornar pai se prepara para o pior. Como refere Freud, n'As Considerações sobre a Guerra e a Morte: "si vis vitam, para mortem, se queres suportar a vida, prepara-te para a morte". (14)
A estância da morte do filho (la stanza della morte del figlio)
Regressado a casa, depois de atender o paciente que o chamou de urgência, Giovanni toma conhecimento da terrível notícia: o seu filho morreu tragicamente enquanto mergulhava. Para um pai, a morte de um filho representa o desaparecimento daquele que de algum modo o perpetuava. Está assim instalada a estância da dor (la stanza del dolore) na família Sermonti.
Mais tarde, são acrescentados alguns pormenores importantes. Através da mãe, é-nos comunicado que Andrea se tinha perdido sozinho numa gruta no fundo do mar. O pai, psicanalista, afasta essa hipótese por não fazer para ele qualquer sentido. Mais uma acha para alimentar o desejo de Moretti de representar um analista falido. Quando saltam à vista todos os sinais (segni ammonitoriF) para Giovanni interpretar, ele é incapaz de o fazer, está prisioneiro de uma espécie de cegueira histérica, não quer ver, não encontra qualquer sentido no que aconteceu. (15)
Ora, a morte de Andrea traduz uma das metáforas mais fortes de Freud sobre o inconsciente: a parte imersa nas profundezas do mar, a famosa metáfora do iceberg. Mas há aí porventura também um retorno, um regresso ao útero materno,(16) um retorno do filho a um lugar mítico,(17) uma cedência ao chamamento da estância materna (la stanza materna). Por outro lado, a noção discutida por Freud de "sentimento oceânico <das ozeanische Gefühl>"(18) terá aqui também alguma pertinência. Num certo sentido, Andrea deixou-se levar por esse "sentimento", pois mergulhou regressivamente em busca da estância original (la stanza originale), estância mítica de indistinção entre o interior e o exterior (uma espécie de ego mítico primordial). De qualquer modo, a morte de Andrea é um acontecimento sem volta, sem instância a que recorrer, sem recurso. La stanza del figlio fica assim vazia (vuota).
A estância da morte (la stanza della morte )
O desaparecimento de Andrea afecta obviamente toda a família. O real, nomeadamente da morte, é da ordem de um fora de sentido, da ordem do impossível.(19) Com a falta de um elemento, a família começa a vacilar, ameaça ruir.(20) A primeira reacção de Giovanni foi vaguear sozinho por uma feira popular à procura de sensações extremas, de um real porventura ainda mais forte. Em casa, o pai enlutado começa a reparar com insistência nas fendas e nos riscos da louça da cozinha. Tudo parece subitamente começar a abrir rachas. No psicanalista emerge um conjunto de sintomas obsessivos.
Profissionalmente, Giovanni começa a ter muita dificuldade em prosseguir com a condução das análises dos seus pacientes.(21) O psicanalista ficou de tal modo perturbado com a morte do filho que deseja obstinadamente "desfazer o que foi feito", deseja que o tempo volte para trás.(22) Procura em vão reescrever a história, imaginando que se não tivesse acedido ao pedido do seu paciente o seu filho ainda estaria vivo. Moretti apresenta-nos um psicanalista que se recusa (23) a aceitar as contingências da vida e a irreversibilidade dos factos.
Giovanni passa então a correr atrás da causa da morte do filho para tentar justificar o injustificável. Admite então que a causa seria técnica, um defeito numa das peças da garrafa de mergulho, a válvula do oxigénio. Neste aspecto, a esposa (Paola) parece bem mais sensata, pois aceita que foi um acidente, porventura devido mesmo à incúria do filho. Paola diz que "não faz sentido, mas foi o que aconteceu." Por último, Giovanni vê-se ainda em apuros para escrever (inibição) uma carta a Arianna para explicar o sucedido. Acaba desenhando, riscando nos intervalos das frases.(24) Em resumo, aquele que estaria mais preparado para lidar com o real da morte, uma vez que é psicanalista, é aquele que mais vacila. Giovanni, que deveria estar junto da família para atar o que subitamente se desligou, é quem fica mais afectado.
A mãe de Andrea, Paola, editora de livros, deixa de trabalhar e chora amargamente a morte do filho. O que lhe trouxe algum alento foi descobrir mais tarde uma carta de uma amiga (namorada) do filho, que todos desconheciam, chamada Arianna. Aproveita a situação para reviver o amor do filho identificando-se com ela.(25) À filha, Irene, também começam a correr mal as coisas. No basquetebol torna-se muito agressiva, a ponto de ser suspensa de competir. Corta relações com o namorado, ainda que não encontre um motivo justo para a sua decisão. Fica contudo claro que a morte do irmão veio a afectar o seu relacionamento amoroso.
Com o desaparecimento de Andrea, com o seu quarto vazio (stanza vuota), a família fica reduzida a três elementos. A relação de Giovanni com a esposa chega mesmo a correr risco. Cava-se entre eles uma certa distância, isto ao ponto de Giovanni interrogar-se certa vez: "e nós dois, o que fazemos?" Por fim, porque ninguém responde ao real da morte de Andrea, Irene, a irmã, decide com os amigos da escola recorrer à instância divina (istanza divina), resolve mandar rezar uma missa em homenagem ao irmão falecido.
A estância divina (la stanza divina)
Ainda que a família Sermonti não fosse religiosa, todos se reúnem na igreja (stanza divina) para uma cerimónia derradeira sob os auspícios da instância divina. No seu sermão, o padre, a propósito da tragédia, refere que os pais tendem a perguntar porquê. Contudo, a resposta do evangelho lembra-nos que o real é "sem porquê":(26) "lembrem-se disto, se o dono da casa soubesse a que horas vinha o ladrão, não deixaria arrombar a casa."(27) É efectivamente uma bela fórmula para o carácter inesperado, imprevisível, do real. Porém, Giovanni, o pai a quem lhe roubaram o filho, ficou muito incomodado. Aliás, essa frase não lhe sai obsessivamente da cabeça. Em contrapartida, a mulher, mostrando bom senso, sublinha que "é só uma frase".
A passagem bíblica citada prossegue com estas palavras: "Portanto, estejam também preparados,(28) porque o Filho do Homem (29) virá quando menos o esperam."(30) O estar preparado <etoimo>, no caso do texto bíblico, refere-se à vinda do filho, ao retorno do "Filho do Homem", à segunda vinda de Cristo. Mas para a família Sermonti, e para muitos de nós, o estar preparado reporta-se ao real, ao carácter inesperado do real. De facto, para a morte de Andrea, ninguém estava preparado, ninguém esperava que tal coisa pudesse acontecer. O problema é quando, num mundo em que o Outro não existe,(31) aquele que se assume como psicanalista já não suporta o real que nos é constitutivo.
A estância da análise (la stanza d'analisi)
Giovanni é um psicanalista tradicional.(32) No seu consultório, acompanha maioritariamente casos de neurose. A excepção é um paciente perverso que acaba por tentar destruir-lhe o consultório quando o psicanalista lhe comunica que estaria terminado o contrato analítico. Manifestamente perturbado com a morte do filho, Giovanni começa a ter dificuldades em escutar os seus pacientes, acaba mesmo por retornar ao lugar do analisando.(33) Neste momento difícil,(34) recorre a um supervisor, à figura paradoxal de um meta-analista (analista do analista).
O fenómeno que afecta Giovanni tem a designação de contra-transferência e consiste na manifestação do inconsciente do analista em resultado da relação transferencial do paciente. Ora, isto é justamente o que não deveria acontecer, pois caso contrário não temos psicanálise, nem mesmo psicoterapia. No fundo, ninguém se analisa, uma vez que cada um ensaia a sua análise à custa do outro. Historicamente, foi um discípulo de Freud, Sandor Ferenczi, que enveredou pelo caminho de uma espécie de análise mútua, "simbiose terapêutica". Para Lacan, a contra-transferência resume-se à resistência do analista à análise, é porventura o sintoma de um psicanalista que não está devidamente analisado, que não concluiu a sua análise, que não foi levado até à stanza vuota, estância vazia, ao vazio-causa do seu desejo.
Em resultado da morte do filho, Giovanni confessa que "não se sente mais capaz", está portanto decidido a abandonar o lugar de analista (la stanza d'analisi). O seu supervisor desaconselha-o a abdicar,(35) mas a um psicanalista que não consegue lidar com a morte do filho e com o desmoronar da sua própria família só lhe resta renunciar. Um psicanalista que claudica perante o vazio do quarto do filho (la stanza vuota del figlio) indica que é ainda outro vazio, outro real que ele não terá afrontado, que sobredetermina a sua dor. O resultado é o mal-estar sob a forma de culpabilidade.(36)
Enfim, com os seus pacientes, Giovanni perdeu a neutralidade, vê-se implicado no fenómeno de transferência. Já não suporta a escuta do real que ecoa na caverna analítica. Algo não corre bem com este psicanalista que não consegue evitar culpar-se pelas suas escolhas, escolhas que ele deseja poder alterar, recusando o que aconteceu. É caso para se dizer que a sua reacção demonstra que neste pai existe culpa inconsciente pelo morte do filho.(37)
Vimos também que foram dadas todas as pistas sobre o mal-estar do filho. Aquele que estaria mais bem preparado para as interpretar não o fez. Giovanni, que por profissão analisa os seus pacientes, não consegue fazer face à morte do filho e à ruína da família, mostrando-se assim incapaz de lidar com o seu próprio sintoma. Acima de tudo, temos um analista moribundo que passa para o lugar do paciente, pois volta a procurar desesperadamente a causa do seu mal-estar do lado do Outro.(38) Ora, a condição do psicanalista é justamente estar sozinho com a sua causa, saber lidar com a sua estância vazia (la stanza vuota), com o resto inanulável da sua análise.
No filme, a psicanálise ( la stanza d'analisi) está infelizmente reduzida a uma espécie de confessionário laico. O fundamental, o acto analítico, está quase completamente ausente. Um dos psicanalistas consultores do filme de Moretti, Paolo Migone, chega mesmo a supor que os lacanianos possam torcer o nariz a esta "psicanálise branda (psicoanalisi «debole»)".(39) Num certo sentido, também se pode ver o filme de Moretti como a problematização, ou até mesmo a morte anunciada de uma certa psicanálise (debole), clássica (fossilizada), uma psicanálise que é incapaz de responder ao real do trauma externo. Giovanni seria assim um psicanalista (fóssil) que naufraga com a morte do filho. Não terá sido por acaso que este filme mereceu por parte dos psicanalistas uma atenção especial, em particular em Itália.(40)
A estância do trabalho de luto (la stanza del lavoro del lutto)
Freud introduziu a noção de "trabalho de luto " <Trauerarbeit>(41) para dar conta do processo que permite ao sujeito desligar-se da perda do seu objecto de afeição. Os sintomas mais frequentes do luto resumem-se a um desinteresse pela realidade exterior, a uma perda da capacidade de amar e a uma inibição generalizada da iniciativa, pois a perda do ente querido convoca e absorve toda a motivação do indivíduo. No filme de Moretti, cada um vai para seu lado e isola-se.
É preciso então "matar o morto" (Lagache), separar-se do objecto, obviamente no sentido da sua sobrevivência como objecto psíquico.(42) O "trabalho de luto" <Trauerarbeit> consiste assim, em sentido freudiano, em desligar a libido do objecto que a prova da realidade demonstra que já não existe. O problema é que a sua ausência na realidade não significa que não sobreviva no psiquismo, ou até que o sujeito se venha a identificar com o objecto perdido, como sucede na melancolia.
No filme, toda a família revela permanecer (fare stanza em italiano) presa ao objecto perdido. O luto não deixa aí de apresentar traços patológicos. Giovanni considera-se culpado pela morte do filho e procura negar o acontecimento. É nesta dificuldade em fazer o luto, desligar o investimento afectivo do ente querido, que chega a carta de uma amiga de Andrea chamada Arianna. Ela conta que conheceu Andrea num acampamento,(43) contudo, e para surpresa de todos, ela reage com algum distanciamento à tragédia, mostrando estar mais preocupada com a vida do que com o pranto da família Sermonti. De qualquer modo, Arianna aparecerá mais tarde com as fotografias que Andrea lhe enviou do seu quarto (stanza), o que permite que todos possam reviver e até descobrir um certo Andrea que ignoravam. Giovanni, pai e analista, é surpreendido com uma parte desconhecida do filho de quem estaria muito próximo. Ironia esta, a de um psicanalista que conhece a fundo as almas dos seus pacientes, mas para quem a alma do seu próprio filho lhe permaneceu opaca. Mais um ponto a favor do desejo de Moretti de representar um analista falido.
O aparecimento de Arianna é contudo passageiro, ela decidiu viajar à boleia(44) até França, porventura para esquecer Andrea, substituindo-o por Stefano (novo amigo). Arianna indica assim que é preciso partir, viajar, continuar a correr.(45) No fundo, é o fio de Arianna que indica como se faz o luto, como se pode escapar ao labirinto da morte.
A estância mítica (la stanza mitica)
O mito (46) conta que Ariadna era filha do poderoso Minos, rei de Creta, e que o seu irmão, Andrógeno (47) (filho único), sucumbiu numa perigosa expedição junto do rei Egeu de Atenas. Como vingança, Minos instituiu um tributo horrendo aos atenienses: 14 jovens de 9 em 9 anos seriam enviados para o labirinto do Minotauro, onde seriam sacrificados ao monstro. Certa vez, Teseu ofereceu-se como vítima, mas, quando desfilou em Creta, Ariadna apaixonou-se por ele e tudo procurou fazer para o salvar da inevitável morte. Consultou então Dédalo, o arquitecto do célebre labirinto, e este revelou-lhe como escapar ao sinistro cárcere. A chave era um novelo de lã atado na entrada e depois desenrolado à medida que se caminhava. Teseu não só seguiu essas instruções como teve ainda a sorte de apanhar o abominável monstro a dormir. Matou o Minotauro e conseguiu sair do labirinto com a ajuda preciosa do fio de Ariadna. Fugiram então os dois de barco para Atenas. Contudo, as coisas não correram lá muito bem para Ariadna. Numa certa versão, no caminho de regresso, ela foi abandonada pelo amado na ilha de Naxos.(48)
Antes de mais, é caso para dizer que o labirinto do Minotauro é uma excelente metáfora do percurso analítico. O analisando deve percorrer os meandros da sua história, perder-se pelas esquinas significantes da sua vida até deparar com um lugar central, protegido pelo seu fantasma. A derradeira barreira que separa o sujeito de algo ainda mais terrível é a cena originária a que o seu Minotauro (monstro) dá consistência. Uma vez atravessado o fantasma, a análise deve ainda confrontar o sujeito com o vazio que lhe é constitutivo, com a sua verdadeira estância vazia (stanza vuota).
No filme de Nanni Moretti, é Arianna que dá a chave para escapar ao labirinto da morte, ao quarto vazio deixado pelo desaparecimento de Andrea.(49) De facto, um dos objectivos de Moretti é transmitir-nos a ideia de que a vida é precária, que ninguém, até mesmo o psicanalista, está a salvo da irrupção do real. Se a vida está assim presa por um fio, o aparecimento de Arianna representa no filme o fio que pode voltar a coser o que se desprendeu, o fio que nos permite passar do que é irrecuperável na morte do outro para o quotidiano.
A estância final (la stanza finale)
Numa noite, acompanhada de Arianna, a família Sermonti atravessa de carro o túnel do lutoF. De manhã, com a aurora, despontou outra fase, a estância final (la stanza finale). É de crer que, depois de percorrido o fio de Arianna, tudo tenha voltado a uma certa normalidade. A filha (Irene) lembra-se que no dia seguinte, domingo, já pode voltar a jogar basquete, porque a sua suspensão terminou. O seu investimento está já no amanhã, nas actividades quotidianas, o que é um bom presságio.
De resto, a família sorri pela primeira vez após a tragédia, o que é também um sinal muito positivo, tudo isto numa bela manhã de sol tendo como fundo o mar (il mare) sereno que roubou a vida a Andrea e que esteve sempre no horizonte do filme. O luto está feito, a libido libertou-se em grande medida do objecto perdido, todos podem agora atacar as solicitações da vida.
Como nota derradeira, podemos adiantar que o verdadeiro fio de Arianna é o próprio filme de Moretti, a obra cinematográfica, ela sim eleva o real da morte (da perda) à dignidade da Coisa (Lacan).(50)
A estância da arte (la stanza dell'arte) ou a estância de Moretti (la stanza di Moretti)
A arte de realizar e de representar é a estância de sublimação própria de Moretti. Estância aqui no sentido que tem na construção civil, a prancha onde se coloca e mistura a massa para a obra. Por outro lado, o próprio filme é também uma estância no sentido poético, uma história, um conjunto de versos com um sentido completo. La Stanza del Figlio descreve o arco do trabalho de luto <Trauerarbeit> da morte de um filho, mas também do percurso artístico do realizador e actor (Moretti).
Assim, o que me parece mais interessante neste filme é a passagem de um Moretti analista e bandeira das causas de uma época, ícone (lambreta) (51) de uma geração, para um Moretti analista dos factos universais da vida, em particular, do que a vida tem de real, de impossível. Dado que o realizador acentuou que com este filme atingiu a maturidade, concluímos que a morte do filho não deixa de ser a do próprio Moretti (52) e a consequente assunção de uma paternidade artística que se quer renovada. O morto é assim o próprio Moretti na condição de mero filho de uma geração (fóssil). Este último filme realiza o luto da primeira fase (estância) da sua obra, enterra um certo passado cinematográfico em que o realizador já não se revê (53) e, ao mesmo tempo, abre as portas à paternidade (autoria) de uma obra original.
La Stanza del Figlio lida com uma perda que não deixa de ser igualmente uma falta que opera uma mudança. Por isso, o filme é uma extraordinária metáfora do acto de criar (sublimação), um acto que se renova constantemente e que faz o luto de um certo lastro pretérito que persegue o criador. Nesta leitura, o fóssil roubado, partido, que já não se pode colar, é o que ficou para trás, isto é, o Moretti que todos conhecemos. Por outro lado, se aceitarmos que um certo passado de Moretti mergulha no oceano, o Moretti filho,(54) é certo que, ao contrário de Andrea, ele irá emergir, ele está aí para novas etapas, estâncias, obras. O filme é de facto uma passagem, um verdadeiro baptismo de fogo. É portanto outra coisa que faz correr Moretti.(55)
O filme confirma que o realizador não quer ficar na história (la stanza storica) como um mero filho de uma geração. Ele, que podia repousar à sombra da consagração obtida, não deixa, contudo, de procurar o novo <das Neue>.(56) Este filme é a marca desse desejo decidido. La stanza del figlio (o quarto do filho) está vazia, vuota. O quarto de Moretti foi esvaziado. Os seus próximos filmes dirão o que ele retira daí, ex nihilo, a partir do nada, e para o novo século. Resta-nos aguardar a "novidade abstracta" (57) que o seu próximo filme forçosamente trará e que este preparou.(58)
Notas:
(1) "Acho que fazer um filme é, entre outras coisas, uma forma de terapia e uma grande experiência de vida."
(2) Nomeadamente: Psicoterapia e Scienze Umane (1990, 2: 109-118, e 1993, 4: 117-126).
(3) Entrevista ao Le Monde de 18 de Maio de 2001.
(4) Real, aqui, no sentido que Jacques Lacan deu a este termo: o real como impossível.
(5) "A dor, ao contrário do que se diz, não une as pessoas, separa-as."
(6) Primeira estância.
(7) Também podemos pensar no sentido reflexivo do verbo: declarar-se.
(8) Temos aqui a ideia de retorno ao mesmo lugar.
(9) De facto, a estância do furto é já o prenúncio (segno ammonitore) do que se seguirá.
(10) Este seria o "significante mestre (amo)" (Lacan) deste filme.
(11) Mais tarde, quando o realizador nos mostra o seu quarto, vemos as formas espiralares nos posters pendurados na parede.
(12) Em Freud, encontramos com muita frequência a arqueologia e os seus objectos como metáfora do passado psíquico sepultado no inconsciente dos pacientes.
(13) Este paciente acrescentará que a mãe ficaria muito desgostosa se ele levasse o seus intentos suicidas a bom termo.
(14) Porquê a guerra?, Lisboa, Edições 70, 1997, p. 50. Freud propõe este novo provérbio a partir do si vis pacem, para bellum, isto é, se queres conservar a paz, prepara-te para a guerra.
(15) Estagnação (stasi) do sentido.
(16) A fantasia do impotente.
(17) Uma das primeiras versões de Lacan da noção de real é justamente "o que retorna ao mesmo lugar".
(18) Noção presente no Mal-estar na Civilização (1929).
(19) Lacan traduz este real impossível como "o que não cessa de não se escrever".
(20) A família outrora perfeita abre rachas como a louça lá de casa para o olhar obsessivo de Giovanni.
(21) Isto ao ponto de se identificar com uma paciente obsessiva através da fantasia de um armário repleto de pares de ténis.
(22) O próprio Moretti confessa que ele também é assim, procura voltar atrás para alterar o destino.
(23) Um exemplo da conhecida Verleugnung (desmentido) freudiana.
(24) Ouve também repetidas vezes a mesma faixa da música que agradaria ao seu filho.
(25) Resposta histérica à perda do filho.
(26) Alusão ao verso de Angelus Silesius: "A rosa é sem porquê <Die Ros' ist ohn' Warum>.
(27) Lucas 12:39.
(28) "Kai umei gi nesqe etoimoi".
(29) "Uio tou anq rwpou".
(30) No início do texto bíblico, a mensagem era: "estejam sempre preparados e de lanternas acesas."
(31) Expressão de Jacques-Alain Miller.
(32) No filme estão presentes alguns clichés, isto para além de alguns pormenores preciosos, como seja o caso de um paciente que chega à análise desdenhando do consultório do analista, do facto de este não ser conhecido, da sua parca inteligência e ainda do facto de ser menos rico do que ele. A resposta do analista é muito boa. Diz que porventura não será tão inteligente como o paciente desejaria, mas que de qualquer modo não é disso que se trata em análise. Ao paciente agradou-lhe a resposta e, em particular, a serenidade do analista, o que permitiu que a sua análise se iniciasse.
(33) É mesmo tratado por um dos seus pacientes nessa qualidade.
(34) Em última instância (in ultima istanza).
(35) Este recomenda-lhe vivamente a ter uma conversa franca com o paciente que para ele carrega a culpabilidade pela morte do filho.
(36) Dado que é incapaz ele mesmo de suportar a causa do seu desejo, só lhe resta porventura identificar-se à figura desse supervisor.
(37) A concretização de votos de morte transforma-se em culpabilidade, mal-estar.
(38) Alguém que corre atrás da causa do lado do Outro.
(39) "Anche i lacaniani, naturalmente, possono storcere un po' il naso di fronte a questa psicoanalisi «debole»."
(40) Refiro-me ao debate promovido no mailing list da Società Psicoanalitica Italiana (entre Março e Maio de 2001).
(41) Cf. Luto e Melancolia (1915).
(42) Paradoxalmente, é quando alguém morre que se torna mais ameaçador, daí a necessidade de fazer o luto.
(43) Estância de acampamento.
(44) No andar à boleia temos aí novamente a estância enquanto parada, paragem, estação de serviço e de autocarro.
(45) Já dizia o lema da liga hanseática: navigare necesse est, vivere non necesse, isto é, navegar é preciso, viver não é preciso.
(46) Giorgio Colli refere-se ao "mito cretense de Minos" como sendo "talvez o mais antigo mito grego". Cf. O Nascimento da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2001, p. 24.
(47) Nome próximo de Andrea.
(48) COLLI, Giorgio, O nascimento da filosofia, Lisboa, Edições 70, 2001, pp. 24-25. Deleuze apresenta-nos uma outra leitura, nietzscheana, da figura de Ariadna. Cf. Critique et Clinique, Paris, Minuit, 1993, pp. 126-134.
(49) A casa de Giovanni é também uma espécie de labirinto, o caminho do real da clínica para a família é labiríntico, abrem e fecham-se algumas portas.
(50) Fórmula de Lacan presente no Seminário VII: "sublimar é el evar um objecto à dignidade da Coisa."
(51) Lambreta (moto) que neste filme Moretti delega à filha, o que nos mostra igualmente que é o Moretti filho, o seu passado que importa enterrar.
(52) O nome de Nanni Moretti carrega do ponto de vista significante a lgo da ordem do filho: Nano, anão, moretto, jovem moreno.
(53) Fórmula: La stanza del figlio (film) / la stanza del figlio (Moretti)
(54) Diz Moretti: "Je veux retourner en arrière."
(55) Se bem que a sua obsessão pelo desporto sobreviva ainda nesta última obra.
(56) ADORNO, Theodor, Ästhetische Theorie, Frankfurt, Suhrkamp, 1973.
(57) Expressão de Fernando Pessoa.
(58) Confirma-se o lema de Camões de que são as "obras valorosas que nos vão da lei da morte libertando."