Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Psicanálise e ciencia
Uma articulação possível
Gilda Vaz Rodrigues

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Minha proposta neste trabalho é demarcar em que ponto psicanálise e ciência podem ter alguma articulação, ou seja, em que ponto a ciência moderna oferece um instrumental para se operar analiticamente hoje, considerando que o sujeito que a psicanálise vai formalizar a partir de Lacan vai perder no avanço dessa formalização a sua forma substantivada, predicada, para ser apenas um a, um ser cujo estatuto a lógica gramatical, metafórica e da representação mostra-se insuficiente.

Se Freud sustentou uma pretensão de fazer da psicanálise uma ciência, pretensão esta que foi perdendo força no caminho que a psicanálise foi desenvolvendo, em sua intuição genial, ele não estava totalmente equivocado, os instrumentos de uma ciência moderna que vinha desde o sec. XVII tomando forma, acenavam como um saber que poderia nos servir um dia para formalizar o estatuto real do objeto da psicanálise.

No "Projeto para uma Psicologia Científica", Freud já nos apresenta as bases deste campo energético, onde um quantum de energia não assimilada pelo aparelho psíquico, não simbolizada, irá acarretar dor e sofrimento. Ele já anuncia aí aquilo que Lacan dedicará todo um segundo tempo de seu ensino: o campo do real.

Este campo resistente à simbolização, possivelmente acarretou um funcionamento exaustivo da linguagem na tentativa de simbolizar o impossível.

Vemo-nos hoje diante de um mundo saturado de informações, conhecimentos, que nos torna anacrônicos em nosso próprio tempo.

Nosso ar está saturado pela linguagem e esta já não porta a força subversiva que tinha antigamente. Hoje ficamos impactados pelo isso mostra, muito mais do que pelo isso fala.

Os nomes do pai não nos servem mais de suporte, pois eles caem, eles mudam. Em que nos sustentarmos?

Esta é a questão deste trabalho.

Esta também é a questão que percorre o seminário de Lacan, O Avesso da Psicanálise, de onde tomo duas palavras que me apontam uma direção para esta articulação.

No capítulo XI intitulado Os Sulcos da Aletosfera, Lacan fala de Aletosfera, de latusas... O que ele quer dizer com isso?

Aletosfera é uma condensação da palavra atmosfera e aletheia, esta última significa verdade.

Lacan vai dizer que a ciência produziu a aletosfera que satura nosso ar com todo tipo de ondas que circulam nos espaços, de vozes que cruzam nosso ar. Há um excesso, um a mais, um ar saturado que atesta a presença da ciência em nosso mundo de hoje.

Quero destacar aqui, entre tantos elementos que saturam nosso ar, o que me parece mais fundamental para o homem – as ondas que transmitem as vozes.

Se por um lado ouvimos dizer que a ciência forclui a verdade, ou seja, ela não deixa nenhum espaço para a verdade do sujeito, por outro, paradoxalmente, é a própria ciência que nos fornece os instrumentos para se formalizar a estrutura desse sujeito, aquela que possibilita um saber capaz de fazer barreira à captura desse sujeito pelas formas que a civilização oferece como vestimentas de gozo.

Alguns anos atrás, durante um acidente ocorrido com uma nave espacial, um dos astronautas, após resgatado, declarou que foi graças às vozes humanas que lhes foi possível sobreviver.

As vozes! Sim, elas ocupavam o silêncio dos espaços infinitos e sustentavam estes homens de pé. Quem sabe se na ausência dessas vozes eles poderiam começar a escutar a voz de Deus, entrando na loucura?

Um espaço silencioso, um espaço onde a voz não produz onda é ainda mais aterrorizador que a Aletosfera. A ausência da voz humana levaria o sujeito a se defrontar com uma dimensão insuportável, a do silêncio da morte.

Entretanto, diz o aforismo, "nem o sol nem a morte podem ser olhados de frente", é preciso que alguma coisa se ofereça como tela, como mediação.

Porém, existirá ainda hoje o silêncio dos espaços infinitos que aterrorizavam Pascal?

Em seus "Pensamentos" revelam-se os escritos de um homem a quem o silêncio eterno dos espaços infinitos apavora. Estendendo este tormento ao próprio limite onde o homem em sua existência pode dar conta da ausência ou inexistência do Outro, Pascal questiona a existência de Deus. Se ele existe ou não existe, a razão não o pode determinar, "há um caos infinito que nos separa", diz ele. Diante do paradoxo de uma existência que transita ao mesmo tempo na recusa e aceitação das verdades inquestionáveis, Pascal formula aquilo que ficou conhecido como a aposta de Pascal: Já que não se pode provar nem que Deus existe nem que não existe, só se pode apostar. Ele aposta na existência de Deus.

A aposta de Pascal nos direciona ao final da experiência analítica, quando, diante do desarvoramento da inexistência do Outro, só nos resta apostar em uma marca que não se sabe, mas na qual nos sustentamos, uma alienação na palavra verdadeira, enquanto que vazia. O termo insubstância, usado por Lacan, estabelece uma distinção entre ciência e conhecimento. Enquanto conhecimento é da ordem da metáfora, aquilo que se pode dizer para dar conta do impossível, a ciência reduz a verdade ao manejo das letras e números, verdade da lógica.

O que esta verdade faria escutar? As vozes! As vozes como objeto a, parceiro do sujeito na vida. É por isso que Lacan inventa uma outra palavra, latusas, para se referir aos objetos que encontramos em nosso mundo aqui embaixo: "no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora é a ciência que os governa, pensem neles como latusas" (O Avesso da Psicanálise, p.153). Em francês latusas rima com ventosas (lathouse – ventouse), por isso, "há vento ali dentro", diz ele, "o vento da voz humana."

Onde quero chegar neste caminho?

Quero ressaltar que esses inúmeros objetos que nos seduzem no mundo moderno, esses que o poluem construindo mont anhas de lixo que vão contaminando nossos ares, mares, solo, estes gadgets que inundam nossas vidas e nos colocam a trabalho para consumi-los, nada mais são do que vento.

Se lá em cima bastaram as vozes, aqui embaixo é preciso tanta quinquilharia para nos sustentar em nossas vidas?

Essa é a questão a que Lacan vai dando forma em seus últimos textos e seminários ao formular um quinto discurso fadado a consumir o próprio homem, o discurso do capitalista.

Não é minha proposta desenvolvê-lo aqui, mas, para falar de novos sintomas não podemos deixar de mencionar aquele que advém de um desvio do discurso do mestre que comanda os velhos sintomas.

Se, como dissemos acima, o parceiro do sujeito na vida é o objeto a, é seu estatuto que deve ser retificado.

Se no discurso do mestre o a é o ser do sujeito como resto que sobra de seus laços com a cultura, ou seja, se cada vez que este ser, para existir, se aliena nas formas que a cultura oferece e que vestirão seu desejo, algo entretanto deste ser sempre resiste a essas formas, é pela própria impossibilidade de se escrever ou dar formas ao real.

Desta maneira, o sintoma é aquilo que denuncia que algo não vai bem, que essas formas não lhe encaixam perfeitamente, mas, ao mesmo tempo, revela o que há de singular, de particular, que distingue o sujeito do grupo, que o impede de se fazer massa.

Podemos ouvir o sintoma como a forma mais elementar de se fazer sujeito e não mais um objeto do mercado de intercâmbios.

Se o sintoma é um sinal de que ali há um sujeito que não é todo na cultura, ele se faz num primeiro momento como mensagem a ser ouvida e que diz do mal-estar na civilização.

Entretanto essa mensagem não é apenas um sinal de mal-estar que buscaria ser escutada para lhe devolver um bem-estar. Ela é também algo que porta a verdade da singularidade de cada sujeito, do Um que ele é na coletividade.

Essa singularidade do sintoma, neste nível, ao mesmo tempo que toma a forma que é dada pelas exigências simbólicas, também satisfaz a fantasia fundamental que responde ao ser do sujeito. Quando falo de fantasia aqui, não estou falando da sua vertente imaginária, mas da fantasia na sua articulação do simbólico com o real, no ponto do objeto a, onde fantasma e sintoma se cruzam ( <>a). O destino da fantasia no final da operação simbólica é ser apenas um traço.

O sintoma, portanto, tem o sentido de valor de verdade, constituindo uma das tentativas do sujeito de lidar com o mal-estar frente ao real ou à impossibilidade. Por seu intermédio se pode fazer as ligações, os laços com a cultura. Salienta-se sua função de enodamento, não deixando de ter relação com o Eros freudiano, aquilo que faz elo, que une.

Sendo um produto do recalque, ele faz uma amarração entre o que há de mais estranho ao eu e a cultura, tomando as formas que variam em cada época e em cada cultura, formas que vestirão o desejo.

Voltemos então ao ponto onde vínhamos desenvolvendo aquilo que pode servir de anteparo ou de tela frente ao silêncio dos espaços infinitos ou frente à pulsão de morte, ou seja, o objeto a, que amarra, enoda o sujeito neste mundo e propicia uma relação com os objetos onde real e linguagem se enlaçam, criando ficções e fazendo semblantes.

Nesse sentido, o sintoma contém uma parte do real, da verdade do sujeito, daquilo que lhe faz causa de desejo e que lhe permite estar ligado neste mundo aos objetos que são apenas semblantes, latusas cheias de vento, que se oferecem ao seu gozo utilitário segundo à lei do usufruto. No seminário 7, A Ética da Psicanálise, Lacan fala do gozo recorrendo ao utilitarismo. Este parece ser uma forma de gozar sem espoliar, sem destru ir o patrimônio.

Para que isso aconteça é preciso que ocorra um desinvestimento libidinal dos objetos de investimento, uma subtração de gozo, ou seja, a queda do objeto a. É preciso deixar cair, saber soltar-se da cadeia do que se é nesta vida. Isso implica numa disjunção entre gozo e corpo.

Esse deixar cair, por outro lado, implica numa extração de gozo, num a mais que se perde, e o vazio decorrente, produto do discurso, é o objeto a, o ser do sujeito que deve ser extraído continuamente como mais-gozar.

Cada vez que ocorre esta queda do a, esta extração de gozo, um traço é contabilizado em algum lugar, no sentido topológico. Portanto, a queda do a e o traço se marcam num só tempo: o do sujeito. Se esse traço não é contabilizado, o que pode ocorrer é o ser do sujeito, como objeto a, ser agenciado, desviado, capturado, consumido como um gadget qualquer. O traço unário, esvaziado do compromisso de produzir sentido, só poderá ser ouvido ao nível da estrutura, pelos instrumentos que a ciência da lógica matemática utiliza para formular a existência daquilo que não se apreende pela percepção. O Um do inconsciente se apresenta como cifra. O sentido do sintoma é o traço, como real, que se coloca para impedir que as coisas andem de maneira satisfatória para o amo. É a partir do sintoma como real que se pode reinventá-lo.

Se este a, resto não simbolizável, extraído como perda passa a ser manipulado, seduzido pela máquina do capitalismo e capturado, isso que nada mais é que vento, que sopro das vozes, adquire a consistência dos novos objetos de desejo. Em vez da queda do a, este é agora administrado pela mídia, pela publicidade, por um mercado que maneja a falta constitutiva. O que decorre daí é que o próprio ser do sujeito é que passa a ser consumido. As pessoas se consomem para consumir. Este é o efeito da astúcia do discurso capitalista. A perda de gozo que condiciona a inscrição simbólica do sujeito, da qual o discurso do mestre nos dá a estrutura, se vê no mundo contemporâneo refém do discurso do capitalista, e para sobreviver se é forçado a criar novos sintomas, cada vez menos abordáveis pela linguagem, tal como aquelas bactérias que pela ação dos antibióticos vão se tornando mais resistentes. Tais sintomas, fruto desta conexão implacável entre a determinação de consumo e a falta-a-ser, buscam, através das formas mais violentas, fazer ouvir a verdade da causa que rege nosso gozo.

A castração é elidida. Os sujeitos se crêem completos, acreditando estarem livres da repressão que caracterizou a época vitoriana de Freud.

Neste ponto de nossa elaboração, outra questão se impõe?

O que pode fazer barreira aos efeitos devastadores do capitalismo? À mais-valia? Ao mais-gozar agora monitorado pelas exigências do mercado?

O socialismo? Esta era a proposta com que, em 1968, enquanto Lacan coordenava seu seminário O Avesso da Psicanálise, os estudantes em Paris invadiam as ruas bradando sua revolta. Após o fracasso dessas tentativas, parece que o monopólio do capitalismo se tornou imbatível.

Mas não estamos aqui para discutir a política, ou pelo menos esta, a política que nos diz respeito enquanto analistas é a da falta-a-ser. Por isso Lacan dará a seguinte resposta: O que pode combater os excessos do discurso do capitalismo é o gozo!

Como? O gozo?!

Na medida em que ele está interditado.

Como?

Lacan faz equivaler o pai morto ao gozo, o gozo silencioso – S( ) – o real como impossível, o silêncio dos espaços infinitos.

Sabemos que a morte do pai não nos liberta, longe disso, reforça mais ainda o amor ao pai, daí o sucesso da religião no nosso tempo. A religião oferece uma nova ligação ao pai – re-ligio – religar ao pai pelo amor ao pai. Entretanto, a ponta de lança da psicanálise é o ateísmo – Deus está morto.

Mas se Deus está morto, pode-se cair como objeto do desejo da mãe, esta boca aberta pronta para engolir-nos.

Ao decifrar qual é o meu gozo, devo então satisfazê-lo?

Se a fantasia é a resposta ao desejo da mãe, devo me identificar com ela?

É aqui que Lacan introduz o saber da morte do pai.

O pai está morto. Não existe Outro.

Este silêncio decorrente da morte do Pai, da inexistência do Outro, que evoca uma outra dimensão mais além do Edipo, mais além das formas que vestem o desejo, mais além desse mundo dos objetos, instaura um outro agente: o pai real, que passará a ser o operador da castração simbólica.

O pai real não é o pai primevo, este é um mito criado para dar conta do impossível.

O pai real faz a função da agência mestra. Termo atual. Hoje se agencia tudo. Agencia-se o fascínio, a criação de mitos, o mais-gozar das pessoas, o sofrimento, a miséria, enfim, se Deus está morto, as figuras obscenas do supereu tomam o comando.

Porém, a psicanálise propõe com seu discurso um pai que agencia a castração. Um pai que não dá respostas, mas faz surgir a falta, o inconsciente como hiância transformando a mais-valia em causa de desejo.

E como se faz isso?

Através deste saber sobre a causa do desejo, sobre o "disco que carregamos nas costas" – fazendo aqui referência ao sofisma dos três prisioneiros – sobre aquilo que carrega o nosso traço, esta marca que nos sustenta, mas impossível de ser abordada pela percepção ou pelos instrumentos da linguagem. Por uma operação lógica, que é da mesma ordem do saber da ciência, é que se pode fazer barreira, possibilitando-nos soltar das amarras que nos aprisionam aos objetos, sem cairmos no desespero, na passagem ao ato, no acting out, nas drogas e em outras formas violentas que ressurgem nos sintomas de hoje. Podemos inventar outros sintomas com o saber sobre o nosso gozo, acionados pela causa de desejo e não monitorados pelo discurso contemporâneo.

As formas tradicionais que revestem e respondem à função do pai de nomeação se encontram hoje anacrônicas. Neste campo das formas, dos nomes do pai, seu destino não é outro senão cair. A função paterna como operadora da castração simbólica se sustenta na transmissão dessa falta que é preciso conquistar para fazer desta herança do pai, que é sua própria insubstância, o seu traço, o traço da singularidade de cada um. Este pai não cai, pois este é o que funda a estrutura simbólica do sujeito.

Tomemos um exemplo que nos permitirá ver mais de perto esta questão.

Recentemente, na megaconferência das Nações Unidas sobre o racismo na África do Sul, vimos reacender o sintoma da segregação, um dos mais cruéis que a humanidade conhece. O que pode fazer barreira a isso, já que os atos políticos e a própria religião – através de seu mandamento "Amarás teu próximo..." – têm se mostrado insuficientes frente à virulência deste sintoma?

Dentro da perspectiva desta abordagem, a contribuição da psicanálise como saber nesse último século, não vem através de medidas objetivas, necessárias, mas não suficientes para mudar a posição das minorias segregadas. A dignidade de cada negro, de cada mulher, cada homossexual, cada sujeito, se sustenta a partir do acesso ao seu traço, seu estilo, seu a. Podemos dizer que a dignidade do homem é seu traço.

Se a morte do pai causa um desequilíbrio, temos de encontrar um ponto de sustentação.

Se o pai está morto, isso não leva a um tudo é permitido, liberou geral! Nem tampouco à consolidação da lei através do amor ao pai e à figura do supereu.

Mas, se Deus está morto nada é permitido. É de pai para filho que a castração se transmite. O pai morto instaura o gozo como impossível, pois era ele quem tinha a chave do gozo. Este saber está enterrado com ele. O recalque.

Impotentes como uma criança frente ao desamparo da inexistência do pai, só nos resta agarrarmos a um traço do pai, o S1, que pode nos dar a chave do gozo.

Tentar se apegar ao traço do pai como garantia de gozo, sabendo que a repetição engendra a falta, o mais-gozar.

O acúmulo do capital de mais-gozar, o acúmulo dessa perda é que passa a ser agenciado. A grande questão aqui é quem vai agenciar esta extração de gozo. Nessas horas muitos agentes oferecem os seus serviços. Hoje se agencia tudo, principalmente a miséria e o sofrimento das pessoas, com promessas de felicidade, seja aqui na terra como no céu.

Para a psicanálise, a agência mestra é a do pai real que põe a estrutura a trabalho, a girar, fazendo com que os discursos circulem e se criem novas formas, novos simthomas, abrindo a dimensão da invenção.

Para ser um pai real, quero dizer, não só um pai real, mas um pai do real, existem certas coisas que é preciso ignorar ferozmente.

Esta posição de ignorância do analista se aproxima da fórmula budista que pretende purificar o homem das três paixões que o atormentam: amor, ódio, ignorância.

O que distingue o analista é a não participação nessas paixões. Isso o mantém numa posição atópica.

O ato operado pelo pai real determina esse real como impossível.

Sendo assim, ele impõe um intervalo entre a marca da falta, traço unário (S1), e aquilo que se pode representá-la (S2).

Freud nos apontou como saída a renúncia ao gozo. Podemos entendê-la como renúncia a uma posição frente ao gozo, de objeto passivo, capturado, para a de um novo saber fazer, soltando-se das fixões de gozo. Esta mudança de posição acarreta a rotação do discurso, única forma que temos de lidar com o real.

Isso nos leva a cair da verdade, que não é ficar no vazio, é saber em que discurso nos inserimos, no limite dessa posição de algum modo fictícia.

Paixão da ignorância é levar a estrutura como referência ao pé da letra.

É esta verdade ao pé da letra que toca o real, toca no que faz causa.

Freud, Marx, Lacan fizeram isso. Apontaram para um campo onde a verdade é muda, por isso ela ressurge atravessando os tempos, tomando as formas de sua época.

Eles tocam o verdadeiro porque tocam na estrutura ao pé da letra. O saber que eles produzem faz um sulco no real.

Esse sulco no real que é da ordem do traço unário, na medida em que ele não é captado pelo que é escrito ou dito, mas pelo que escapa, que é rejeitado, não escreve, não pára de não se escrever. Também as produções da ciência moderna são da mesma ordem, pois ela não tem como característica principal ampliar o conhecimento do mundo, embora isso também ocorra, mas, introduzir no mundo coisas que de forma alguma existiam no plano de nossa percepção.

Assim, o traço unário não é um traço percebido mas da mesma ordem deste surgimento da ciência.

A ciência que não surgiu da percepção.

Retifica-se o estatuto da verdade como puramente lógico.

É nisso que encontramos na ciência seus ecos na experiência analítica e uma articulação possível.

Para concluir, remeto-me mais uma vez à aletosfera, este campo não apreensível pelos aparelhos sensoriais e pela percepção, mas que ex-siste, se o percebe, diz Lacan.

Precisa-se de aparelhos especiais para captar estas ondas, assim como precisa-se de ouvidos especiais para se ouvir o traço unário. Talvez tenhamos que estar fora do mundo, como um santo descaridoso, lembrando Lacan em Télévision, extraindo as significações, as roupagens, as quinquilharias que sufocam, encobrem e iludem; afastar a percepção e habitar este espaço de insubstância, pelo menos por um flash de intervalo. Lugar habitado pelas ondas, ou pelas supercordas, como relatava há poucos dias na televisão o físico americano Brian Greene, autor do livro Sinfonia Cósmica, que aborda justamente este espaço habitado por cordas que vibram e produzem ondas, que trazem a verdade que vem desta terra: a voz do homem.

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Número 15 - Julio 2002
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