Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura

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O ato de escrever é interessante no que carrega de paradoxal no sentido de se ter a possibilidade de expressão de uma liberdade de poder construir sua própria cela. Com isso quero dizer que partirei do macro para tentar especificar os pontos levantados num logo após, não sabendo se, ao final, terei alcançado meus objetivos, porém, delineadas as questões pelas quais percorrerei, procuro tornar esta cela a mais confortável e ampla possível, no que o problema da cura em psicanálise exige.

Inicialmente gostaria de modificar a posição do "a" de artigo para funcionar como prefixo, criando o termo "acura psicanalítica", para assim procurar através desta negação, inscrever este significante no que ele delineia o Real, com o uso particular da negação apresentada por Lacan no seminário sobre A Lógica do Fantasma, chamada de "pas sans", o "não sem", no que ela admite a bivalência, ou seja a presença dos contrários, ao mesmo tempo: "não há verdadeiro, sem falso", logo, "não há acura, sem cura" .

Para falar sobre esta "acura" de uma maneira mais próxima à radicalidade da questão teremos que seguir três grandes percursos que estão intrinsecamente ligados e que logicamente não se esgotarão nesta tentativa. São eles:

Sobre a distinção da psicanálise em relação aos outros saberes citados, tomarei emprestadas algumas citações de três textos do livro "Sexo e Discurso" de Marco Antônio Coutinho Jorge, são eles: Discurso Médico e Discurso Psicanalítico, A Faca de Lichtenberg e o Boquiaberto.

No primeiro, o autor defende que o "discurso médico prima por excluir a subjetividade"1 , aproximando-o do Discurso do Mestre

( S1 S2 )
S a

onde o S1, no lugar de agente, assujeita o S (sujeito barrado) que se encontra no lugar da verdade, o lugar inatingível do esquema, se dirigindo a um outro e produzindo a falta, o objeto "a", o mais gozar. Sendo assim, do discurso médico a histérica ouvirá: "você não tem nada... você não tem nada que seja passível de se inscrever no discurso médico"2. Ela está com piti. E, quando se é passível de se inscrever, diversos significantes como "falta de ar", "uma sensação de sufoco", "angústia no peito", são reduzidos a um único sinal clínico, dispnéia, por exemplo, ou, como já tive oportunidade de escutar em um caso que acompanhei, os sinais clínicos são absorvidos pela subjetividade do analisante tomando o lugar daqueles significantes que o constituem na sua singularidade: assim neste caso em questão, um rapaz de origem humilde dizia: "o sistema nervoso vêm em mim", para falar sobre o seu sintoma. Assim como, em outros casos, o diagnóstico clínico passa a representar o sujeito, no lugar do seu nome próprio: fulano tem síndrome do pânico, ou é depressivo, etc.

A Psicanálise é, então, o avesso da medicina, no que diz respeito ao desejo daquele que sofre, ela "tem uma função subjetivante"3, ao levar em consideração a relação do sujeito do inconsciente, S , com o objeto causa de seu desejo, o objeto "a". Há uma "pouca realidade" do objeto e a descrença nele. Objeto este que para a medicina é a doença, e que para nós não existe.

A sugestão da mestria médica cederia seu lugar à transferência, a anamnese como método seria trocada pela associação livre e o sujeito que sabe passaria para uma posição de suposição de saber.

Quanto ao discurso psicológico e a forma que a Psicanálise deste se distingüe, podemos iniciar nos atendo ao próprio significante "análise", no que ele significa decompor algo em suas partes, sendo assim seria uma quebra, pois a síntese já é feita todo o tempo pela consciência regida pelo Eu. A Psicologia permanece centrada no Eu. Tanto pode chegar a almejar um grau de cientificidade dentro de uma tradição lógico-positivista fundada pelo cogito cartesiano, "Penso, logo sou", quanto partir para uma crítica desta posição por um viés fenomenológico. Porém a psicologia como um todo trata do ser ontológico, aquele de Descartes e o objeto da filosofia, o indivíduo que está ali. Lacan coloca que "é um momento histórico quando Descartes inaugura aquilo que ele chama de cogito. Ele é o desfile de uma rejeição de todo saber, mas por isso mesmo pretende fundar para o sujeito uma certa amarração no ser"4.

O que se busca na análise é a desimaginarização e isso não ocorre "senão descentrando a própria prática analítica do eu do analisante"5, na sua travessia do fantasma, onde o analista faz semblante de objeto "a" para o sujeito do inconsciente. Não se trata aqui de uma relação entre dois sujeitos, no sentido do ser ontológico.

Por outro lado torna-se impossível, após este descentramento do Eu, objetivar-se o sujeito da Psicanálise, provando assim sua acientificidade, pois a objetivação é necessária a qualquer discurso científico. O sujeito do inconsciente é evanescente, ele não pode ser apreendido. Só temos acesso às formações do inconsciente, só a seus traços como no que fica para o lixo da ciência: os atos falhos, os chistes, os sonhos, a denegação. Então o sujeito para a Psicanálise não se confunde com o indivíduo. Ele é como o relâmpago que se faz sentido no porvir do som do trovão. O S explode entre o S1 e o S2, entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação.

Daí não ser feliz o uso do termo "psicoterapia psicanalítica", para nomear uma prática clínica, pois este é composto por dois termos de naturezas epistemológicas diferentes, diría-mos até, antagônicas.

A interpretação do analista então se dá no nível do significante, carregando contudo significação, história, no que faz relação com o S1. "A interpretação não é aberta a todos os sentidos. Ela não é de modo algum não importa qual. É uma interpretação significativa... e que não deve faltar. Isto não impede que não seja essa significação que é, para o advento do sujeito, essencial. O que é essencial é que ele veja, para além dessa significação, a qual significante – não-senso, irredutível, traumático – ele está como sujeito, assujeitado"6 . O papel do analista é o de um mestre Zen ao avesso, "ele procura saber o que é que ele pode tirar da própria fala do portador do enigma que sirva de peso morto para esse enigma cair"7.

Lacan, no Seminário "De um Discurso Que Não Seria do Semblante", nos diz que a interpretação "só é verdadeira por suas conseqüências"8. E que conseqüências a psicanálise almeja senão, através da histericização do discurso no qual o método da associação livre permite o analisante circular, que lhe seja possível reconstruir seus sentidos, suas significâncias a partir do seu significante primordial, seu S1, porém agora como agente, não como assujeitado, falando em seu nome, não mais no patronímico.

Observemos que a tarefa aqui se constitui numa intersignificância e não numa intersubjetividade. Vamos seguir com Lacan, para tentar esclarecer este ponto, quando ele se defende no seminário anteriormente citado de maus entendidos que poderiam decorrer no uso do termo intersubjetividade no escrito "Função e Campo da Fala e da Linguagem": "Inter, certamente, com efeito, é o que somente a continuação me permitiu enunciar de uma intersignificância, subjetividade de sua conseqüência, o significante sendo o que representa um sujeito para um outro significante onde o sujeito não está"9.

Na análise a tarefa está do lado do analisante, como Lacan coloca no seminário sobre o Ato Analítico. Diante desta tarefa, espera-se do analista o suporte da transferência através de seu ato, mediante a sustentação da sua posição de semblante do objeto "a", possível com o advento do seu desejo de analista. Podemos passar agora para a nossa segunda parte sobre o ato analítico e o desejo de analista, como sustentáculos fundamentais para a posição da Psicanálise sobretudo como uma Ética, na sua busca de construir esta "acura".

No citado seminário, sobretudo na lição de 10 de janeiro de 1968, Lacan nos diz, ao se referir à análise que "deve haver outra coisa aí, uma relação da tarefa ao ato que talvez não seja o ser"10, e, partindo desta questão propõe de imediato um desvio para tentar esclarecê-la. Este desvio, segundo ele, nos é fornecido em um outro começo, notadamente no início do desejo de analista, momento no qual há um fim de análise, uma queda na posição do sujeito suposto saber, para a de pequeno objeto "a", suportada pelo analista, queda que ocorre, mesmo sem a perceber, por parte do analisante. "Chegou-se ao fim uma vez, é aí que é preciso deduzir a relação que isso tem com o começo de todas as vezes"11, já que a psicanálise vai ser destruída e reinventada a cada caso.

O fim de análise, para Lacan, pressupõe uma certa realização da operação verdade, há algo que o sujeito realiza de um pensamento que comporta o "eu não sou", no sentido que Lacan dá à alienação originária quando da entrada do sujeito na linguagem e do advento do eu (ego), com uma disjunção, que não por acaso é retirada do cogito cartesiano, para mais uma vez pontuar o corte epistemológico onde a psicanálise se situa quando da defesa da proposta do inconsciente: "ou eu não penso ou eu não sou". Não há possibilidade das duas coisas. Há algo que se é onde não se pensa e não é, onde se pensa.

O passe se dá então sem o saber e também "não sem o saber", pas sans le savoir. Lembremos do tipo de negação proposta por Lacan onde seria possível a presença dos contrários, a do "não sem".

Lacan nos diz que, no início, o ato analítico funciona com o "sujeito suposto saber falseado" 12. É um ato em falso, pois ele se revela o que já era bem simples ver de imediato: que é ele que está no início da lógica analítica, que o analista sabe que não é esse sujeito suposto saber, tal qual o analisante o coloca, que não pode sê-lo, pois ele está fadado a cair. Segue Lacan: "Aquele que no fim de uma análise didática aceita, se posso dizer, o desafio desse ato, não podemos omitir que é sabendo o que seu analista se tornou na efetuação desse ato, a saber, este resíduo, este dejeto, esta coisa rejeitada. Ao restaurar o sujeito suposto saber, ao retomar, ele mesmo, a tocha do analista, é impossível, que ele não instale, ainda que sem perceber, que ele não instale o "a" no nível do sujeito suposto saber". Há a vivência da castração como causa do sujeito dividido, o que Lacan representa como -.

Antes de passar para a terceira parte gostaria aqui de fazer uso de uma citação que Freud coloca no seu texto Análise Terminável e Interminável, um dos seus últimos textos técnicos, já em 1937, de autoria de um antigo satirista austríaco, Johann Nestroy: "Todo passo à frente tem somente a metade do tamanho que parece ter a princípio". Acho que isto se aplica até aqui.

Freud, neste texto se dedica a três questões expressas desta forma, na coleção Standard: a primeira, "é possível, mediante a terapia analítica, livrar-se de um conflito entre um instinto e o Ego, ou de uma exigência instintual patogênica ao ego, de modo permanente e definitivo?13"; - seguindo as outras duas sobre possíveis fins profiláticos da Psicanálise - "se, enquanto estamos tratando determinado conflito instintual, podemos proteger o paciente de futuros conflitos, e se é viável e conveniente, para fins profiláticos, despertar um conflito que não está manifesto na ocasião"14. Quanto ao que não está manifesto Freud nos adverte mais adiante que "deixemos repousar os cães a dormir", tratando do que está manifesto. Quanto a direção do tratamento por parte do analista, Freud pontua que este deve lutar contra a inércia do analisante, que, segundo o autor, estaria pronto a se contentar com uma solução incompleta, e que a análise deve ser levada a cabo "num estado de frustração", pois assim haveria um represamento da libido necessário ao objetivo da análise. Nos diz Freud: "procuramos levar esse conflito a um ponto culminante, desenvolvê-lo até seu tom mais alto, a fim de aumentar a força instintual disponível para sua solução". Deve ser pontuada aqui a tradução errônea do termo freudiano trieb, na Standard inglesa, que não seria instinto, mas pulsão.

Mais adiante Freud coloca que a análise funciona melhor em relação a conflitos passados, que diante de estados de crise aguda a análise seria inutilizável, pois "todo o interesse do ego é tomado pela realidade penosa e ele se retrai da análise que está tentando ir além da superfície e revelar as influências do passado".

Vejamos aqui que estamos diante de um paradoxo que observamos na nossa prática clínica quando nos deparamos com demandas de análise e quando não respondemos aos demandantes com a promessa do "alívio imediato", ou pelo menos da maneira que eles imaginam, mesmo que, ao considerar o que os trouxe até ali mantemos uma atitude de respeito aos seus sofrimentos, porém, como vimos com Lacan, dentro da nossa Ética, não respondemos ao ser ontológico, ao indivíduo, mesmo que seja ele que fale a maior parte do tempo, mas possibilitamos a manifestação do sujeito do inconsciente com nossa posição de semblante de objeto "a". Como já dissemos, não há uma relação intersubjetiva, de dois sujeitos, mas uma intersignificância, onde são trabalhados os significantes trazidos pelo analisante, não os nossos. Trata-se de um percurso a ser atravessado por ele onde o ponto de referência é o objeto "a". Esse objeto, diz-nos Lacan, no seminário VI, sobre o desejo e sua interpretação "resolve por si mesmo todos os significantes aos quais minha subjetividade está ligada" e mais, "ele é esperado no Outro, por toda a eternidade".

Não vejo melhor momento para delinearmos o campo aberto para a sublimação como projeto da nossa "acura". Partiremos com Noga Wine, em "Pulsão e Inconsciente": " A Sublimação refere-se a esse percurso da produção subjetiva em que o sujeito se depara com seu limite: é o fracasso em atingir a paz absoluta, mediante o encontro com a Coisa que o satisfaria para sempre. Mas esse fracasso transforma-se em êxito de produzir qualquer outro objeto – "outra coisa" que dê uma satisfação efêmera e, este se inscreve num traço – um significante novo, a sublime prova da subjetividade"16. O analista com sua janela aberta para o Real se propõe a possibilitar esta nova resposta simbólica por parte do analisante, referindo-o, com o real do seu silêncio ou através da retomada dos significantes daquele através da interpretação, ao S1 que o constitui, onde, a partir daí, num ato criativo de mestria, o próprio analisante torna-se capaz de reestruturar as cadeias significantes ocupando uma posição mais livre em relação a rede pela qual está constituído, ocorrendo uma liberação em relação às cadeias existentes, possibilitando uma produção mais diferenciada, saindo da repetição ancorada na pulsão de morte. Daí o discurso analítico exercer uma ética do real.

Com a sublimação, e é esta nossa tese, é possível uma satisfação da tensão pulsional de uma forma particular, não totalmente, claro. Lacan aponta no seminário 20 que "o significante é causa de gozo" 17, daí o significante novo comportar algo de um gozo sublimatório. Desde a primeira inserção do sujeito na linguagem, inclusive com o advento do eu no estágio do espelho encontramos uma operação de sublimação que pode ser entendida como um desvio do alvo ou objetivo (Freud, "As pulsões e suas Vicissitudes") da pulsão que naturalmente se dirige para o seu esgotamento total. Noga Wine fala-nos da intuição de Freud de que a vida vem da morte numa espécie de moto perpetuo. Para a autora é a partir de um gozo sublimatório que a subjetividade surge, pois trata-se de um gozo paradoxal por que não extingue a tensão pulsional, mas produz a possibilidade de armazená-la. É do armazenamento possível da libido que surge a vida que prossegue enquanto faz metáfora da morte. Que deve prosseguir, na particularidade da condição humana de, com a possibilidade do simbólico, tornar parte do real, uma realidade.

Notas

1 – Coutinho Jorge, M. A. "Sexo e Discurso", p. 44.

2 – Idem, p. 49.

3 – Idem, p. 53.

4 – Lacan, J. "A Ciência e a Verdade", Escritos, p. 856 (no original em francês). Na versão brasileira: "Esse correlato, como momento, é o desfilamento de um rechaço de todo saber, mas por isso pretende fundar para o sujeito um certo ancoramento no ser", Escritos, p. 870.

5 – Coutinho Jorge, M. A. Op. Cit., p 73.

6 – Lacan, J., Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 237.

7 – Magno, MD. Mutirão sobre o tempo lógico, maisum 6/7, CFRJ, 1981, p. 288.

8 – Lacan, J., De um Discurso Que Não Seria De Um Semblante, p.9.

9 – Idem, p. 6.

10 – Lacan, J., O Seminário, Livro XV: O Ato Psicanalítico. Inédito, p. 86.

11 – Idem, p. 87.

12 – Idem, p. 90.

13 – Freud, Sigmund, Análise Terminável e Interminável, p. 256.

14 – Ibid, p. 263.

15 – Ibid, p. 263.

16 – Wine, N., Pulsão e Inconsciente, a sublimação e o advento do sujeito, p. 137.

17 – Lacan, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda, p. 36.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 15 - Julio 2002
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