Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Schreber: um Corpo-Mulher para Um-Pai
(Notas introdutorias à questão do corpo na psicose de D. P. Schreber)
José Marcus de Castro Mattos

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Abro estas notas com uma proposição da Ética de Baruch de Espinosa (2):

Tudo quanto é, é em Deus,

E sem Deus nada pode ser nem conceber-se.

Quanto ao seu corpo, ouçamos então Daniel Paul Schreber (1842 - 1911), aquele que dizem ser paranóico e que escreve cartas em italiano endereçadas ao "Senhor Ormuzd, in Coelo" – cartas assinadas "Paul, Höllenfürst", a saber, "Paulo, Príncipe dos Infernos" (cartas em italiano porque – como na vida de um qualquer – trata-se afinal de "comédia" e "divina"...). Cito Schreber (3):

Os milagres que mais de perto evocavam uma situação ainda em acordo com a Ordem do Mundo pareciam ser aqueles que tinham alguma relação com uma emasculação a ser efetuada no meu corpo. A esse contexto pertence em particular todo tipo de modificações nas minhas partes sexuais , que algumas vezes (particularmente na cama) surgiam como fortes indícios de uma efetiva retração do membro viril, mas freqüentemente, quando prevaleciam os raios impuros, como um amolecimento do membro, que se aproximava da quase completa dissolução; além disso, a extração, por milagre, dos pelos da barba, em particular do bigode, e, finalmente, uma modificação de toda a estatura (diminuição do tamanho do corpo) – provavelmente baseada numa contração da espinha dorsal e talvez também da substância óssea das coxas. Esse último milagre, proveniente do Deus Inferior (Ariman), era regularmente anunciado com as palavras: "E se eu o diminuísse um pouco?" Eu próprio tinha a impressão de que meu corpo tinha se tornado de 6 a 8 centímetros mais baixo, aproximando-se, portanto, da estatura feminina. Muito variados eram os milagres operados nos órgãos internos do tórax e do abdome; (...) me lembro que uma vez (...) eu tive um outro coração. Em compensação, meus pulmões foram, durante muito tempo, objeto de ataques violentos e muito ameaçadores.

Começo pois pelo princípio, tratando-se de psicose: a foraclusão do Nome-do-Pai. E, tratando-se de Schreber, na função de "secretário do alienado" (a aposta é lacaniana), termino com a sua conclusão: "Um-Pai" é evocado por um "Corpo-Mulher" para – sexualmente – escreverem o Impossível...

 

1

 

Jurista e professor de Economia, o bisavô chama-se Daniel Gottfried Schreber ; advogado, o avô chama-se Johann Gotthilf Daniel Schreber ; médico-ortopedista e pedagogo, o pai chama-se Daniel Gottlob Moritz Schreber e, Juiz-Presidente da Corte de Apelação de Dres den, o filho chama-se Daniel Paul Schreber.

Não lhes parece que falta algo?

Sim, pois no patronímico do filho onde está o Gott (Deus, em alemão) inscrevendo e representando seu portador – como faz com o bisavô, o avô e o pai – na linhagem familiar? Coincidentemente – será mesmo? -, o irmão mais velho de Schreber chama-se Daniel Gustav Schreber: também sem Gott no patronímico ele suicida-se aos 38 anos – advogado, solteiro –, logo após ser nomeado para o cargo de Gerichtsrat (Conselheiro de Tribunal)...

Ora, a nomeação de Daniel Paul Schreber para o cargo de Senatspräsident (Juiz-Presidente), por determinação do Rei – configurando-se assim um posto ligado diretamente à realeza e vitalício, cuja recusa implica em delito de Lesa-Majestade –, constitui-se no limite extremo de sua carreira profissional. Mas não apenas dele. Em verdade, essa nomeação é o ato simbólico de reconhecimento, legitimação e legalização definitivos do patrilinear desejo de celebridade e de imortalidade dos Schreber – logo, se me permitem, celebridade e imortalidade dos "Gott-Schreber".

Por quê?

Alguns dos mais importantes ancestrais masculinos de Schreber publicam obras sobre Direito, Economia, Pedagogia e Ciências Naturais via de regra escritas com os objetivos de "elevar a moralidade dos povos" e de "conquistar o bem da Humanidade" (sic). Os livros de Daniel Gottfried Schreber (o bisavô) trazem por lema a frase "Escrevemos para a Posteridade" – evidentemente, o sujeito oculto desta sentença é "Nós, os Schreber" –. Por sua vez, Daniel Gottlob Moritz Schreber (o pai) publica cerca de vinte livros sobre ginástica, ortopedia, higiene e educação de crianças. Tais livros compõem uma doutrina médico-pedagógica rígida e radicalmente moralizante, buscando alcançar o domínio completo sobre todos os aspectos da vida humana, desde os hábitos alimentares até a formação do futuro adulto e cidadão: por exemplo, a postura ereta dos corpos das crianças – inclusive durante o sono – é obtida pela aplicação de vários aparelhos ortopédicos de ferro e couro; a retidão moral do espírito é conquistada pelo aprendizado precoce de formas de contenção emocional e de supressão radical dos ditos "sentimentos imorais", sobretudo os relativos à sexualidade. Assim, o Dr. Daniel Gottlob Moritz Schreber não tem dúvidas de que seu trabalho contribui consideravelmente para "aperfeiçoar a sociedade e enaltecer a obra de Deus" (sic) – além do mais, orgulha-se de haver aplicado pessoalmente nos filhos os métodos educativos que elaborara, jactando-se dos "excelentes resultados"... (4) "Paulo, Príncipe dos Infernos" testemunha (5):

Poucas pessoas cresceram com princípios morais tão rigorosos como eu e poucas (...) se impuseram ao longo de toda sua vida tanta contenção de acordo com esses princípios, principalmente no que se refere à vida sexual.

Portanto, se o bisavô escreve "para a Posteridade" e se prediz que seus descendentes fariam o mesmo, o pai acrescenta o "... nos corpos" – e então a "Posteridade" aí em cena ("Posteridade" do Real, logo, ver-se-á o porquê, a letra que cai do lema de Gottfried) responde pontualmente pelo avesso: o filho mais velho suicida-se e o outro enlouquece.

Retomo a questão.

Com efeito, a presidência irrevogável e vitalícia da Corte de Apelação de Dresden conclui, por uma face – a face fálica –, a saga delirante dos Schreber. Os lemas "Escrevemos para a Posteridade" (nas obras do bisavô) e "Escrevemos para a Posteridade... nos corpos" (nas obras do pai) encontram nessa nomeação a recepção simbólica longamente desejada. Isto significa que os Schreber – cristãos, brancos, burgueses, cultos, talentosos, famosos, "Gottfried", "Gotthilf", "Gottlob" gozam em Daniel Paul (agora um Schreber vis-à-vis a realeza) a celebridade e a imortalidade.

Entretanto...

 

2

 

Se o bisavô escreve "para a Posteridade", se o avô obedece e se o pai acrescenta o "... nos corpos", por sua vez o filho – conduzido tão jovem à casta dos funcionários vitalícios do Estado – torna-se a "Posteridade" dos Schreber, representa-a, expressa-a, encarna-a. Sim, encarna-a, porque desde a irrevogável nomeação seu corpo encontra-se imediatamente referido ao Corpo do Rei, pois que nos regimes monárquicos o Corpo do Rei é o Estado, cabendo aos súditos (qualquer que seja a posição hierárquica) zelar pela saúde orgânica, funcional e espiritual desse Corpo-Estado, evitando-se por todos os meios feri-Lo, lesá-Lo – bem a propósito, a figura jurídica correspondente à prática desses atos é o Lesa-Majestade.

Assim, elevado a Juiz-Presidente por uma nomeação definitiva do Rei (Corpo-Estado), ninguém melhor do que Daniel Paul para sustentar e satisfazer plenamente a epopéia schreberiana. Com apenas 51 anos, rico, casado, profissional bem-sucedido, cioso de seus deveres para com a cidadania, a moral e os bons costumes, poliglota, esteta refinado, músico amador (excelente pianista), por que afinal Schreber segue uma via aparentemente tão inesperada? (6)

Ora, inscritos e representados na linhagem pelo Gott – pelo Gott que bendiz (e bem-diz...) seus portadores, conduzindo-os, por essa nominação, "à presença de Deus" –, desejosos de celebridade e de imortalidade, do bisavô ao pai os Schreber gozam falicamente: Gottfried – "Escrevemos para a Posteridade"; Gotthilf – "Sim, escrevemos para a Posteridade"; e Gottlob – "Escrevemos para a Posteridade... nos corpos". Contudo, Gottlob – o pai – procura como que estender o gozo fálico para o Real, produzindo em dois atos contíguos a radicalização da série "Nós, os Gott-(fried-hilf-lob)-Schreber escrevemos para a Posteridade". A partir dele os corpos devem – em sua conformação orgânica, física, mecânica, comportamental – expressar concretamente a escrituração dos Schreber, transmutando-se nos objetos-obra dessa escrituração, no resultato palpável do "Nós, os Gott-Schreber, escre / vemos" (7).

Portanto, os atos de Gottlob são 1) a não-inscrição de Gott nos patronímicos dos filhos e 2) a aplicação em seus corpos dos métodos médico-pedagógicos (ortopédico-educativos) constantes nas duas dezenas de livros que publicou (8). Desse modo, Gottlob conduz às últimas conseqüências a série fálica schreberiana, quer, por um lado, tornando-se o derradeiro Schreber a portar Gott no nome – concluindo, logicamente, a série fálica –, quer, por outro, decidindo-se pelo transbordamento do gozo fálico para o Real – manuseando, "logicamente" (as aspas aqui são importantes), os corpos dos filhos Daniel Gustav (...) Schreber e Daniel Paul (...) Schreber (as reticências indicam a ausência de Gott nos patronímicos). Trata-se pois de um pai que transpassa os limites do meio-dizer e que se destina à père-version (nos termos de Lacan), a saber, Gottlob reserva para si a inscrição terminal de Gott – ele poderia ter dito "Faço-me o último da saga Gott-Schreber!" – e escreve, teoriza, fala, predica sobre o que faria com os corpos – fazendo-o, materialmente –. Neste sentido, Gottlob erige-se em Nome-do-Pai (Gottlob: "O agradecido a Deus") (+) Sujeito-suposto-Saber (Médico-ortopedista, pedagogo – obras citadas com reverência por Daniel Paul em Memórias) (+) "... nos corpos" ("Excelentes resultados em meus filhos!") (+) "para a Posteridade" (afinal, o Outro dos Schreber).

Claro que a saga delirante dos Schreber, desde pelo menos o lema dos escritos do bisavô (Gottfried – "Escrevemos para a Posteridade"), está ancorada na suposição de existência de um Outro – Outro que, se as coisas forem bem vistas, é "a Posteridade", logo, "A Posteridade", ou, o que seria dizer o mesmo, no contexto do delírio, "A Celebridade" e "A Imortalidade" dos Schreber. E – se ainda as coisas forem bem vistas -, escrever "para a Posteridade" pressupõe que esse Outro demande o escrever como um ato que restitui o que Lhe falta – precisamente, o escrever como um ato... Ora, o delírio dos Schreber não consiste apenas em supor a existência de um Outro ao qual "falta algo" – no caso, justamente o ato de escrever (supor a existência de um Outro ao qual "falta algo" é o delírio nosso de cada dia...) –, mas sim no imperativo categórico de que, escrevendo – e, em Gottlob, atuando a escritura nos corpos –, respondem pontual e literalmente à demanda desse Outro, restituindo-O, completando-O, totalizando-O (assim, escriturar-se-ia – delirantemente – a inexistência da relação sexual).

Deste modo, capturadas em uma escritura delirante, as intenções – e ações – dos Gott-Schreber no sentido de "elevar a moralidade dos povos, conquistar o bem da Humanidade, aperfeiçoar a sociedade e enaltecer a obra de Deus" (sic) confluem todas para a suturação da falta no Outro – o matema deste "projeto" é S (-A) // S (A), lendo-se "Significante (S) do Outro barrado (-A) substituído (//) pelo Significante (S) do Outro não-barrado (A)" –. E, então, suturando-se a falta no Outro – como expus, pela escrituração (em Gottlob, a escritura atuada – "tatuada" – nos corpos) –, finalmente os Schreber e o Outro são o Mesmo: a ferocidade do meio-dizer em Gottlob – sua escrituração cristã (protestante, severissimamente luterana), iluminista (rigorosamente kantiana: "Sapere aude!" "Ousai saber!" –, pregava ele), e, no limite (ou para além de todo limite), prática (a formatação dos corpos) – incide violenta e diretamente no desejo (logo, na falta) do Outro, transmutando o desejo, através do apagamento da falta (por exemplo, "estrita contenção no que se refere à vida sexual", "severa correção da mecânica dos corpos", etc), em gozo do Outro.

Portanto, último a fruir de Gott no patronímico e manuseando os corpos dos filhos, Gottlob conclui "logicamente" – pela face transfálica – a epopéia schreberiana: doravante, Gottfried (o bisavô: "O na paz de Deus"), Gotthilf (o avô: "O auxiliado por Deus") e ele, Gottlob (o pai: "O agradecido a Deus"), concretamente instituem-se – por efeito de escrituração suturante do Outro – em "das Gott-Schreiber", a saber, em "O Deus-Escritor"... No final, silenciadas as canetas e as presilhas de ferro e couro – utilizadas por Gottlob para "assegurar uma postura adequada" –, os objetos-obra destes escrituradores são os corpos dos filhos ceifados de Gott e diuturnamente manipulados, seja, a meio caminho, o corpo-morto de Daniel Gustav (...) Schreber – suicídio, aos 38 anos –, seja, completando o percurso, o "Corpo-Mulher" de Daniel Paul (...) Schreber – emasculação delirante, aos 51 anos –.

3

 

Do bisavô aos bisnetos, a saga schreberiana encontra pois seu termo fálico – resposta no Simbólico ao desejo do Outro – com a nomeação de Daniel Paul para o cargo vitalício de Juiz-Presidente da Corte de Apelação de Dresden, e sua resolução transfálica – resposta no Real ao gozo do Outro – com o suicídio de Daniel Gustav e a psicose de "Paul, Höllenfürst" ("Paulo, Príncipe dos Infernos" ). – O trocadilho (que poucas vezes soa bem, mas mesmo assim "tem valor de interpretação" – garante-nos Lacan –) abre aqui uma Banda de Möbius: a saga / chaga dos Schreber...

Ora, sabe-se que o enorme passo dado por Freud em suas Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia – dementia paranoides (9) é o de procurar isolar o elemento estrutural operante na clínica das psicoses, superando assim a mera descrição fenomenológica (quantitativa, comportamental) via de regra realizada pela Psiquiatria. Após vagar em especulações que sorrateiramente o reconduzem ao complexo paterno – e nesse, ao Édipo; e nesse, ao recalque; e nesse, ao retorno do recalcado; e nesse, à transferência; e nessa, quanto a Schreber, ao recalque da libido homossexual; e nesse, à projeção; e nessa, à paranóia –, Freud enfim destaca o que realmente está em jogo – cito Freud (10):

(...) a verdade é, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora.

Bem, as mãos de Lacan fecham-se com esta verdade entre os dedos e em O seminário, livro 3: as psicoses (1955 - 56) ele abre tais mãos com uma questão decisiva – cito Lacan (11):

Que se passa quando o significante de que se trata, o centro organizador, o ponto de convergência significativo que ele constitui, é evocado, mas faz falta?

Muito brevemente, no contexto desta exposição, o que então se passa com Daniel Paul, Höllenfürst Schreber é:

1) A estruturação de um singular modo de gozar sobredeterminado pela Verwerfung (foraclusão, traduz Lacan) do significante Nome-do-Pai, desenodando (no Nó Borromeano) o Simbólico, e, assim, ocorrendo a inscrição do sujeito do inconsciente – no caso, enquanto "Corpo-Mulher" – no ponto entre Imaginário e Real. Cito Rabinovitch (12):

Especificamente, na psicose, o corpo se situa no campo Real-Imaginário do gozo do Outro; (...) no caso do corpo, na psicose, o Simbólico é separado de Real-Imaginário.

2) O furo da significação fálica em Schreber – se se preferir, o seu transfalicismo – como o correlato lógico de um puro e simples furo no campo do Outro, impedindo-o portanto de metaforizar – simbolizar, nomeando – a falta-a-ser (a castração) da Mãe. Segue-se a regressão tópica ao estádio do espelho, provocando a irrupção abrupta do Imaginário (fenomênica, esta regressão ao especular é observável de uma a outra ponta em Memórias). Por fim restará a Schreber ter que ser o falo, a saber, via Entmannung (eviração, traduz Lacan), tornar-se A Mulher – não-castrada – que falta aos homens.

3) A subjetivação do Imaginário no campo do Real, a saber, enquanto efeito da ejeção do significante Nome-do-Pai do Simbólico – inexistindo portanto ponto de basta na cadeia significante –, a captura do corpo como suporte ele mesmo da relação ao Outro (diversamente, na neurose o suporte ao Outro é – via Verneinung [denegação, traduz Lacan] – o significante Nome-do-Pai, e, na perversão – via Verleugnung [desmentido, traduz Lacan] – o significante Phallus). Quanto a Daniel Paul, tal captura resulta em um Körper-Ich (eu-corpóreo) imperiosamente exigente não de castração – jamais se trata de castração em Schreber, lembra-nos Lacan -, mas sim de uma Entmannung (eviração) capaz de produzir a Verweiblichung (transformação em mulher). Ora, no contexto do delírio schreberiano esta eviração justifica-se pela Vernünftig (compromisso razoável, traduz Lacan): evirar-se, transformar-se em Mulher para, em núpcias com o Outro – suposto Real ("Ariman", "Ormuzd", "O Próprio Deus") – "gerar novos homens", "viver em beatitude" (um tema espinosiano...) e, enfim, "redimir a Ordem do Mundo". – Não por acaso este "projeto" é, pela face transfálica, o mesmo que o de Gottfried (o bisavô), o de Gotthilf

(o avô) e o de Gottlob (o pai)...

4) Ao contrário da hipótese de Freud, a psicose em Schreber não está situada no interior do complexo paterno, a saber, não deve ser interpretada como se fosse a atualização Nachträglich (après-coup, traduz Lacan) do recalque de uma como que "libido homossexual" transferida na infância para os parentais masculinos mais imediatos (o irmão e o pai). Pelo contrário: a psicose schreberiana deve ser pensada como estrutura clínica singularmente resultante da Verwerfung (foraclusão) do significante Nome-do-Pai do campo do Outro – significante evocado pelo sujeito, porém ausente –. Neste sentido, a suposta homossexualidade em Schreber resta como apêndice sintomático da estrutura clínica, emergindo como um componente lateral – e não literal, em termos lógico-causais – do que se passa na subjetivação de Schreber vis-à-vis o campo do Outro.

Finalmente, o delírio schreberiano estabiliza-se pela evocação de Um-Pai, a saber, Um-Pai como suplência à foraclusão do significante Nome-do-Pai. Por outras palavras, Um-Pai – "nada mais nada menos que Um-Pai-Real, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito" (escreve Lacan, cf. nota 14, abaixo) – através do qual o Nome-do-Pai "pode ser chamado no único lugar de onde poderia ter-lhe (ao sujeito) advindo e onde nunca esteve" (idem). Assim, evocado – e, por sua vez, evocante (na alucinação verbal, por exemplo) – Um-Pai tem por função impedir "o desastre crescente do Imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizem na metáfora delirante" (ibidem). Ora, este desastre é a paulatina pulverização da imagem corporal: a citação que abre estas páginas, bem como outras semelhantes que assomam a todo momento no texto de Schreber, ilustra com precisão o horror de uma tal experiência (13). Enfim, ocupando a posição terceira que caberia ao significante Nome-do-Pai em relações que tenham por base o par imaginário (no Esquema L) a-----a´ (por exemplo, Schreber-----Flechsig), Um-Pai concerne o sujeito "no campo de agressão erotizado que ele induz" (14). Cito Schreber (15):

Acredito poder dizer que nesse momento, e nesse momento, vi a onipotência de Deus em toda sua pureza. À noite – e, até onde me recordo, em uma única noite – apareceu o Deus Inferior (Ariman). A imagem resplandecente de seus raios – estando eu deitado, não dormindo, mas acordado – ficou visível para o meu olho espiritual, isto é, refletiu-se no meu sistema nervoso interno. Ao mesmo tempo eu o ouvi em sua língua; mas essa não era – como sempre foi o caso da conversa das vozes antes e depois dessa época – um leve sussurro, mas ecoava, por assim dizer, bem em frente à minha janela como um poderoso tom de baixo. A impressão era tão imponente que ninguém teria deixado de tremer dos pés à cabeça, a não ser que, como eu, já estivesse calejado pelas terríveis impressões provocadas pelos milagres. O que era dito também não tinha um tom amistoso; tudo parecia calculado para me inspirar medo e terror e ouvi várias vezes a palavra "puta" (Luder, em alemão) – uma expressão muito comum na língua fundamental quando se trata de fazer com que uma pessoa que vai ser aniquilada por Deus sinta o poder divino.

Aqui, concluamos.

A saga delirante dos Schreber resulta pois nesta "pessoa que vai ser aniquilada por Deus", a saber, a epopéia louca dos Gott-(fried-hilf-lob)-Schreber encontra seu limite expressivo neste "corpo deixado largado", nesta Luder... Portanto, a escrituração delirante dos "Gott-Schreiber" lega à "posteridade" um resto: em nossos termos, ao se buscar escriturar a relação sexual – em Gottlob, inscre / vê-la "... nos corpos" – cai deste ato um objeto, uma pequena letra – objeto / abjeto a – que, escolho e escólio da operação (no sentido lógico), erra no corpo de Daniel Paul e o empuxa ao mais-gozar de A Mulher – afinal, um homem só encontra A Mulher na psicose... (16)

Face a isto, Daniel Paul, Höllenfürst Schreber terá sido para mim – leitor lacaniano de suas páginas – um dos corpos da Psicanálise, a saber, um Corpo-Mulher para Um-Pai, padecendo – ao seu estilo – do automatismo do "puro significante"... Se terá sido assim, Daniel Paul transfere-nos a literalidade de sua (a)-provação: elevado à dignidade textual de Memórias de um doente dos nervos, seu corpo "evirado" resta como que a materialização do delírio escritural de seus ancestrais (17) – logo, um corpo "para a Posteridade", "Príncipe dos Infernos", "Célebre", "Imortal".

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Psicanalista, Membro da Escola Letra Freudiana (Rio de Janeiro, Brasil). Tels. (021) 2205 58 56 / (021) 9888 41 85. E-mail: jmcastromattos@uol.com.br

(2) ESPINOSA, Baruch de. Ética, Madrid (Espanha): Alianza Editorial, 1988.

(3) SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos, São Paulo (Brasil): Paz e Terra, 1995: 127 ss.

(4) SANTNER, Eric. "O pai que sabia demais", in A Alemanha de Schreber – a paranóia à luz de Freud, Kafka, Foucault, Canetti, Benjamin, Rio de Janeiro (Brasil): Jorge Zahar Editor, 1997.

(5) SCHREBER, Daniel Paul. Op. cit.: 11.

(6) Esquematicamente:

(7) Cf. as observações de Foucault sobre o panoptismo em Vigiar e punir (Rio de Janeiro [Brasil]: Vozes, 1998) e as de Miller em "A máquina panóptica de Jeremy Bentham", in Matemas 1 (Rio de Janeiro [Brasil]: Jorge Zahar Editor, 1996).

(8) SANTNER, Eric. Op. cit.: 109 – "Tais métodos de aprendizagem são o tema do importante livro de Moritz Schreber sobre a educação infantil, Kallipädie (Calipédia), publicado em 1858 como um guia prático para pais, educadores e professores".

(9) FREUD, Sigmund. "O caso Schreber, notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia – dementia paranoides", in Obras completas, vol. XII , Rio de Janeiro (Brasil): Editora Imago, 1990: 14 -108.

(10) FREUD, Sigmund. Op. cit.: 95.

(11) LACAN, Jacques. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", in Escritos, Rio de Janeiro (Brasil): Jor ge Zahar Editor, 1998: 318.

(12) RABINOVITCH, Solal. "O corpo na psicose", in Textos psicanalíticos, s.e., 1998: 29 - 30.

(13) O suposto "corpo sem órgãos" dos artaud-deleuzianos é em verdade um corpo cuja imagem está fragmentada – no Nó Borromeano, o Simbólico está desenodado –. Assim, ao contrário da mistificação criada em torno deste "conceito" – tratar-se-ia de um "corpo glorioso, ativo, imanente, não submetido ao imperialismo do significante, etc" –, o "corpo sem órgãos" é o corpo de um sujeito psicótico – e isto não é nem um pouco "glorioso"... Para dizê-lo de uma vez: "sem órgãos" é a terrificante experiência do "desastre crescente do Imaginário" (cf. nota 11, acima) e nada mais.

(14) LACAN, Jacques. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", in op. cit.: 584.

(15) SCHREBER, Daniel Paul. Op. cit.: 119 -120.

(16) LACAN, Jacques. Televisão, Rio de Janeiro (Brasil): Jorge Zahar Editor, 1993: 70. – A frase de Lacan é a seguinte: "(...) uma mulher só encontra O Homem na psicose". Ora, em Schreber ocorre esta frase e também o seu inverso...

(17) DANIEL PAUL SCHREBER (1842 – 1911)

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Número 14 - Diciembre 2001
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