Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Scherazade: uma metáfora do tempo em psicanálise
Taciana de Melo Mafra

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Quero iniciar a minha fala sublinhando um trecho de Borges em "As Mil e Uma Noites", referindo-se à beleza do título do compêndio de lendas árabes: "Creio que ela reside no fato de a palavra "mil" ser, para nós, quase um sinônimo de "infinito". Dizer " mil noites" é dizer infinitas noites, as muitas noites, as inumeráveis noites. Dizer "mil e uma noites" é acrescentar uma ao infinito".

O tempo é uma questão com a qual todo analista se vê confrontado, não sendo possível ignorar as dificuldades que ele coloca à experiência clínica. Desde os primórdios das descobertas freudianas encontramos o registro das inquietações com a noção do tempo, de maneira especial na atenção dada por Freud a contagem do tempo ou a localização do tempo na cena traumática.

Das depreensões freudianas a respeito do tempo há uma máxima de onde partirei para tratar do tempo em Psicanálise: "O inconsciente é atemporal".

Quando nos detemos, rapidamente, na articulação filosófica e científica do conceito de tempo, encontramos dificuldades para acompanhar imediatamente a que postulado Freud se contrapunha quando afirma ser o inconsciente atemporal, ou seja, a que tempo se refere o que é negado pelo prefixo. Vejamos, então, de que forma é possível estabelecer o princípio da atemporalidade freudiana.

Quando Freud trata, nas "Conferências introdutórias", dos caminhos da formação dos sintomas, ele recorre à noção de passado: "Retornemos agora aos sintomas. Estes criam, portanto, um substituto, da satisfação frustrada, realizando uma regressão da libido a épocas de desenvolvimento anteriores, regressão a que necessariamente se vincula um retorno a estádios anteriores de escolha objetal ou de organização. Descobrimos, há algum tempo, que os neuróticos estão ancorados em algum ponto do seu passado; agora sabemos que esse ponto é um período do seu passado, no qual sua libido não se privava de satisfação, no qual eram felizes. Buscam na história de sua vida, até encontrarem um período dessa ordem, ainda que tenham de retroceder tanto, que atinjam a época em que eram bebês de colo — tal como dela se lembram ou a imaginam, a partir de indícios posteriores. De algum modo, o sintoma repete essa forma infantil de satisfação, deformada pela censura que surge no conflito, via de regra transformada em uma sensação de sofrimento e mesclada com elementos provenientes da causa precipitante da doença" 1.

Acompanhando Freud nesse parágrafo sobre uma formação do inconsciente, como pensar a atemporalidade?

Talvez um outro trecho da Conferência XVIII nos aponte uma vereda para situar a questão: "Ambas as pacientes dão-nos a impressão de se terem ‘fixado’ em uma determinada parte de seu passado, como se não conseguissem libertar-se dela, e estivessem, por essa razão, alienadas do presente e do futuro. Assim, elas permaneceram enclausuradas em sua doença, da mesma forma como, em épocas anteriores, as pessoas se retiravam para dentro de um mosteiro, a fim de ali suportarem a carga de suas vidas desditosas". 2

O problema para Freud não parece ser ignorar a dimensão do tempo cronológico, e sim, de estabelecer um certo movimento que contém como princípio da marcação, não a sucessão absoluta e invariável do evento, como asseverava a filosofia clássica e, mais especificamente, Kant, mas sim, uma tomada do tempo que se dá a partir de um referente, o representante da formação inconsciente. Dessa maneira a "realidade psíquica" preside a referência da marcação do tempo próprio do inconsciente.

Ora, isso é muito próximo da relativização feita por Einstein sobre o tempo que é retomado por Bergson e Heidegger. Ocorre que Freud é contemporâneo do primeiro e do segundo e antecede, historicamente, o terceiro, o que, sem dúvidas, elimina a possibilidade de que estivesse ele se contrapondo a essas últimas noções sobre o tempo em sua subversão que tem o nome de atemporalidade (Zeitlosigkeit).

Se o tempo inconsciente não é cronometrável do mesmo modo que é possível demarcar no registro da consciência, isso não nos permite, por si só, afirmar que a atemporalidade de que nos fala Freud, seja apenas da ordem de uma oposição a essa marcação.

O conceito de atemporalidade no alemão, Zeitlosigkeit, tem o sentido de algo que não é fixável no tempo, o que seria, por exemplo, como dizer que Hegel é atemporal por sua imperecibilidade na sucessão do tempo.

De certa forma, isso se aplica às características do inconsciente, mas não deixa de conter uma referência ao tempo, tal como é conceituado pela filosofia, pela metafísica ou mesmo pela ciência.

O termo cronologia vindo do grego contém uma significação relativa ao estudo do tempo. De que maneira, portanto, estaria o inconsciente colocado, segundo uma lógica temporal, numa posição que anula a cronologia? Ou melhor, como dizer que o inconsciente é regido numa atemporalidade que se esclarece simplesmente ao dizer que ele possui um tempo não cronológico?

Lacan irá se debruçar sobre esse problema, estatuindo um tempo lógico. Para tratar e encaminhar a questão escreverá um texto magistral intitulado "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada". Nesse texto, o qual chamará de "meu pequeno sofisma", irá demonstrar como se coloca a lógica do tempo na assunção do sujeito e, sobretudo, afirma em "A posição do inconsciente" que: "a transferência é uma relação essencialmente ligada ao tempo e seu manejo" 3.

Mas é preciso lembrar que desde o estádio do espelho Lacan nos apresenta um certo modo muito especial de tratar a questão do tempo, privilegiando a topologia como via de acesso para sua articulação.

Portanto, o tempo é tomado por Lacan de forma distinta da acepção freudiana. Certamente que encontramos o cerne dessa diferença no fato de ser o próprio conceito de inconsciente divergente para os dois. Ou seja, para Freud, o inconsciente enquanto constituído por representações recalcadas do Id seria uma massa inscrita num tempo passado ao que é recortado. Esses elementos, no entanto, se condensariam e deslocariam atemporalmente, ou seja, à revelia da ordenação sucessiva da inscrição no tempo cronológico.

Para Lacan as coisas se passam de outra maneira.

O tempo é uma propriedade do pensamento. Só há tempo se é possível contar. Contar e se contar é uma operação própria do humano, logo, do ponto de vista cartesiano, uma propriedade do pensamento. Mas, se estabelecemos com a Psicanálise que existe um sujeito do inconsciente e um pensamento inconsciente, então devemos demonstrar de que forma, para o pensamento consciente e para o pensamento inconsciente, dar-se-á um tempo distinto, se é que podemos dizer que é de um tempo distinto que se trata.

Freud afirmava: "Os processos do sistema Ics. são atemporais; isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema Cs." 4

Essa assertiva nos remete imediatamente à diferença da tomada do inconsciente segundo Freud e segundo Lacan. O que torna possível a Freud falar que não há tempo, é a atribuição que ele faz ao inconsciente como se compondo com elementos de uma anterioridade que se comutam segundo leis que o regem. Esses elementos, portanto, estão sujeitos a uma álgebra que define seus resultados ignorando a ordem de suas inscrições no tempo. Sendo assim, as formações do inconsciente podem lançar mão de representações psíquicas que edificarão seus complexos reunindo elementos alheios à ordem do tempo.

Acontece que, como já vimos, desde Einstein o conceito de tempo é relançado quanto a relatividade de sua ordenação: "De maneira geral pode-se dizer o seguinte: toda descrição física se decompõe em um certo número de afirmações, cada uma das quais está relacionada com a coincidência espaço-temporal de dois eventos A e B. Cada uma destas afirmações é expressa nas coordenadas gaussianas através da coincidência das quatro coordenadas x1, x2, x3, x4. Assim, a descrição do contínuo espaço-temporal por meio de coordenadas gaussianas substitui inteiramente a descrição com auxílio de um corpo de referência, sem no entanto, apresentar as falhas deste último método de descrição: ela não depende do caráter euclidiano do contínuo a ser representado" 5.

Sendo assim, que o inconsciente condense e desloque elementos ignorando a ordem da inscrição no tempo, não teria nenhuma incompatibilidade com o conceito de tempo vigente na ciência do tempo de Freud.

Temos então que concluir que o problema do tempo ou da atemporalidade do inconsciente em Freud carece de articulação, mas que deixa uma saída quanto a visada fundamental de que a atemporalidade é relativa a negatividade constitutiva do inconsciente, segundo ele nos apresenta em sua denegação. De modo, que falar em atemporalidade do inconsciente estabelece o mesmo sentido de dizer que no inconsciente não há representação para a posição sexual.

Vejamos como Lacan leva adiante essa articulação.

Se o sujeito do inconsciente, para Lacan, é efeito do advento do simbólico, o problema do tempo fica por ele colocado como um problema entre o ser e o pensar no jogo da identificação, de maneira que a identificação é o que divide esses dois termos.

Desse modo ancoramos no ponto onde se revela toda a problemática do sujeito tal como ele nos propõe pensar demonstrando a complexidade de contar-se para um sujeito e afirmando que essa operação convoca o contar-se três.

Para Lacan o sujeito em sua evanescência, não substantivável, é um sujeito suposto e isso é colocado de forma tão sutil que terá que recolocar a noção de intersubjetividade proposta por ele, anteriormente.

O sujeito não é a pessoa. Isto é o que Lacan assevera até as últimas conseqüências. E essas conseqüências não são poucas. Lacan toma distância da posição de Freud sobre o tempo exatamente por não tomar a diacronia como o caminho para a construção da origem da história. Ele demonstrará de que modo há uma lógica que interpela três sujeitos em três tempos, determinando a asserção do sujeito num tempo constituinte de uma certeza que antecipa o ato de concluir.

Essa estrutura Lacan demonstrará com o máximo rigor no nó borromeu e, como já dito, no seu texto clássico sobre o tempo, onde através da lógica dos jogos modernos, com minúcia, ele formula a operação nos três tempos: "instante do olhar", "tempo para compreender" e "momento de concluir" .

No término do jogo dos discos, com o qual nos detém em suas marcações, dirá que "passado o tempo para compreender o momento de concluir é o mesmo de concluir o tempo para compreender". 6

É esse o único sentido do tempo, pois é dessa forma que dá a conhecer aos outros que o sujeito concluiu. Conclusão que se faz numa asserção que atinge a verdade, que, então, é posta em dúvida, mas que não poderia ser aferida sem que houvesse essa primeira certeza.

O desenrolar da afirmação em jogo coloca a problemática de uma verdade que se efetiva num paradoxo lógico que a perfaz, antecipando-se ao erro e "avançando sozinha no ato que gera sua certeza". 7

Essa demonstração lógica elabora uma depreensão ao que Freud afirma em "Psicologia de grupo e análise do ego" 8, a saber, que o verdadeiro ninguém o atinge a não ser através dos outros.

Verdade e tempo são dois termos articulados por Lacan na clínica da Psicanálise, compondo o móbil da transferência. Daí decorre sua inserção na clínica, de uma inovação técnica que abreviava a duração das sessões, pontuando o enunciado do significante, o que lhe valeu muito transtorno e o começo de uma guerra que culminará com o seu afastamento da IPA.

A verdade, tal como formulada na perspectiva analítica, rompe com o pretenso absoluto, e galga o estatuto de uma nova Ética. A verdade da Psicanálise é a verdade do desejo, que se insinua como verdade do sujeito do inconsciente.

Esse sujeito é conduzido pelo significante que é o berço do tempo, como efeito evanescente da britadeira do simbólico. E o que o leva no rumo do sentido é o manancial metonímico entrecortado pela afluência metafórica, que reconduz o sentido. O tempo aí é o tempo da morte simbólica, efetivada por mais um significante, situado na diferença, com a barra do Outro.

É dessa forma que podemos lançar mão da categoria do tempo na clínica a cada vez que nos confrontamos com a questão dos estágios do espelho, dos tempos do Édipo, dos tempos da análise, de começo e de fim de análise, os quais em última instância estão sempre referidos à transferência.

A topologia que assim se configura estabelece uma relação com o tempo situando a dimensão do sujeito e do objeto na experiência analítica. Sendo assim é possível afirmar que o tempo histórico é o trilho do objeto deslocado metonimicamente e recortado pelo significante produzindo a dimensão metafórica pela via do corte mortífero que funda o simbólico a partir do Outro. Na dialética da diacronia e da sincronia é que se dá o corte revelador de uma visão do momento enquanto tal.

É provável que vocês conheçam o começo das "Mil e Uma Noites", todavia não seria demais relembrá-la em outro tempo a guisa de uma nova narrativa.

Havia um Rei amoroso que concernia um lugar especial a sua Rainha. Esta, no entanto, confirmando nossas premiss as da ausência de simetria no terreno amoroso, deixa-o em estado lastimável por uma tremenda traição. Sua vingança estende-se a todas as mulheres, além da esposa infiel, e toma a forma de um propósito sinistro. Persuadido de que não há mulheres recatadas, para livrar-se de infidelidades futuras, ele decide que daí por diante irá desposar uma mulher a cada noite e ordenar seu estrangulamento no dia seguinte.

É quando entra em jogo nossa protagonista. A bela, doce e culta Scherazade, filha de um ministro do sultão, decide oferecer-se como a próxima a deitar-se no leito real. O desespero de seu pai que a amava, apaixonadamente, sem êxito, tenta dissuadi-la do tal propósito, que tinha como intuito salvar as mães daquele reino de tamanho funesto.

Acontece, que a astuta na noite das núpcias mortífera depois de mancomunar-se com a irmã pede ao sultão que lhe atenda o último desejo, que é, precisamente, o de permitir que sua irmã passe aquela última noite no aposento do casal a título de dela despedir-se, já que se tratava de uma irmã ternamente amada. O pedido é concedido e a irmã cumprindo o combinado pede que antes que adormeça Scherazade conte-lhe pela derradeira vez uma de suas belas histórias.

Aí está uma bela metáfora para o tempo em Psicanálise. O Rei, encantado e curioso com o destino da história que acabara de ouvir pede para que Scherazade continue, e então se segue uma segunda noite. O mesmo se repete, e então uma terceira noite e assim sucessivamente, até que faça sentido o titulo ao qual Borges faz a elegia: "As Mil e Uma Noites".

Certamente, que inserida nesse contexto esse breve e pobre relato de tão magnífico compêndio de sabedoria, nos presta o serviço de conferir a plastia para o problema do tempo.

O tempo é essencialmente tempo da narrativa, escandida pela morte simbólica, que renova o sentido no ponto de estofo que produz a significação. Aí está o infinito do significante que só toma seu sentido na articulação da sintaxe autenticada pelo Outro, revelando a dialética imortal/mortal. O objeto a, é apenas causação para adiante. Antecede o sujeito, dividindo-o como está escrito no discurso analítico, é a causa significante futura do sujeito - simbolização.

Resta ainda ir um pouco mais adiante, a partir do que me lembrou meu amigo Zuberman, sublinhando a relação entre tempo, feminino e discurso. Retomemos a metáfora de Scherazade. Não é por acaso que a função que produz o tempo nessa trama é encarnada por uma bela mulher. A posição feminina naquilo que configura de Real em relação à castração é a única posição possível de oferecer-se a um tal lugar. Situada como objeto para o desejo do sultão Scherazade faz intervir no complexo a mirada do objeto que ela sabe não ter, mas que ao mesmo tempo é. Dessa forma, é possível servir de alvo para a mirada de um olhar que busca um gozo impossível destituído pela palavra que o desmonta para remontar instantaneamente no jogo que articula o significante e o objeto sustentando o sincopado do tempo através da musicalidade do discurso.

Scherazade constrói o tempo diante da contundência da morte, tal como Antígona ela inscreve um nome imortal. Sua narrativa, contudo, faz aflorar o amor constituindo o trilho imaginário por onde se engendra o circuito do sujeito e do objeto.

É da perspectiva do entrelaçamento do tempo com o significante e com o objeto que podemos pensar na afirmação de Lacan feita nos Escritos sobre a conexão essencial entre transferência e tempo.

O desejo do analista toma o lugar na transferência de algo que envolve a direção da cura, tendo que ser mantido como diferença, na medida em que possui uma clara depreensão do tempo, do objeto e do significante. Mas é importante relacionar essa tônica do desejo à sua castração, que permite apontar vazio e morte para reinscrever-se no analisante. O que vem afirmar que a clínica da transferência é uma clínica de e pelo tempo.

(Trabajo presentado en el Lacanoamericano de Recife, septiembre 2001)

Notas

1 Freud, S. (1976[1916-17]) Os Caminhos da Formação dos Sintomas. Conferência XXIII. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVI. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (Parte III). Rio de Janeiro: Imago, p. 427.

2 Freud, S. (1976[1916-17]) Fixação em Traumas – O Inconsciente. Conferência XVIII. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVI. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (Parte III). Rio de Janeiro: Imago, p. 323.

3 Lacan, J. (1998[1964]) Posição do inconsciente no Congresso de Bonneval. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 858.

4 Freud, S. (1974[1914-16]) O Inconsciente. As Características Especiais do Sistema ICS. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. A História do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, p. 214.

5 Einstein, A. (1999) A Teoria da Relatividade Especial e Geral. Rio de Janeiro: Contraponto, p. 80.

6 Lacan, J. Op. Cit.: 206.

7 Lacan, J. Op. Cit.: 211.

8 Cf. Freud, S. (1976[1921]). Psicologia de grupo e análise do ego. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVIII. Além do princípio de prazer. Rio de Janeiro: Imago. Nesta obra ele irá tomar coletivo como o sujeito do individual.

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