Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
A referencia de Jorge Luis Borges à literatura Brasileira
Paulo Roberto Medeiros

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Que vínculo é esse que prende tão fortemente os fanáticos ao Conselheiro?
Machado de Assis

Esta oportunidade serviu-me como pretexto para ler e reler toda a obra de Jorge Luis Borges, reconhecendo sua importância no contexto de nossa cultura, numa referência explícita ao valor do trabalho de intercâmbio entre brasileiros e argentinos, sem, naturalmente, deixar de considerar a presença de outras culturas em nosso meio, o meio psicanalítico internacional, apresentando-o àqueles que porventura ainda não o leram.

Por certo formamos no universo cultural internacional uma expressão psicanalítica muito própria, o planeta psi, no contexto do planeta literário. Psicanálise também é Cultura, uma manifestação cultural. É sempre bom lembrar, no entanto, que Borges, ironicamente, consideraria, em O Suborno, nossa Reunião uma tolice, que ocasiona gastos inúteis, mas que pode convir a um curriculum. Acresçamos à sua concepção sobre reuniões como estas, sua visão das charlatanices da psicanálise, mencionada em duas ocasiões de seus Textos Cativos, e a afirmativa — nos mesmos textos, pelo menos por duas vezes — de serem as teorias de Freud aniquiláveis. Retorna ao tema e, como se não bastasse, ainda parte, pura e simplesmente, para o deboche, no comentário de uma biografia de Heinrich Heine escrita por Louis Untermeyer.

Porém, há uma razão maior: acolher Borges como um clássico, no sentido que ele mesmo outorga a tal qualificação, em Sobre os Clássicos: Clássico é aquele livro que uma nação, ou um grupo de nações, ou o longo período decidiram ler como se em suas páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e passível de interpretações sem fim. Ou ainda: Clássico não é um livro (repito) que necessariamente possui estes ou aqueles méritos; é um livro que as gerações de homens, urgidas por razões diversas, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade. É neste contexto, o de suas próprias palavras, que encontramos Borges. É aceitando sua própria autodefinição: Sou professor de letras inglesas e americanas e escritor de contos fantásticos 1, que percorremos seus textos; sem deixar também de lembrar-lhe as palavras Sou no final do dia o resignado / Que dispõe de modo algo diverso / As palavras da língua castelhana / Para narrar as fábulas que esgotam / O que se chama de literatura.2 Em resumo, podemos concluir sobre se Borges é de fato um autor clássico se seus escritos são relidos, se aceitarmos ser característica de um clássico o ser relido.

Nesse contexto, pelo menos dois outros objetivos subjacentes buscam expressão nessa leitura ora apresentada: o primeiro, uma indagação sobre onde os argentinos, em sua cultura – considerando-se ser, segundo o próprio Borges em O Zahir, o esnobismo a mais sincera das paixões argentinas - nos colocam enquanto brasileiros e, segundo, como nós mesmos nos apresentamos não só aos argentinos, mas às demais culturas aqui representadas.

Para tanto, então, perguntamo-nos sobre como Jorge Luis Borges nos leu. Nessa perspectiva foi lida toda a obra de Borges publicada no Brasil em quatro volumes pela Editora Globo, suas Obras completas. Cabe, sobre esse ponto, a partir do próprio autor, questionar a noção de "obra completa" tanto quanto traduções. Escreveu o próprio Borges, em As versões homéricas, que o conceito de texto definitivo não corresponde senão à religião ou ao cansaço. E lê-lo em outra língua que não na que escreveu conduz-nos à sua própria reflexão sobre o fato em A Divina Comédia: A tradução pode ser, em todo caso, um meio e um estímulo para aproximar o leitor do original; principalmente no caso do espanhol.

Pelo menos dois motivos devem ser aqui apresentados para a leitura de Borges feita em português e não no espanhol por ele usado, cabendo ainda a indagação se o espanhol de Borges é o mesmo da Argentina. O primeiro motivo, pessoal, evitar aumentar as gafes, já cometidas em diversas ocasiões, ao fazer uso do portunhol ou do espanholês; o segundo, por considerar ser importante prestigiar traduções, mantendo assim uma posição política favorável a maior intercâmbio cultural por esse viés, o das traduções.

A primeira menção feita pelo autor a escritos em língua portuguesa foi à Literatura Portuguesa, em Flaubert e seu destino exemplar, citando a obra de Eça de Queiroz, O Primo Basílio, considerando-a, todavia, uma imitação da técnica de Flaubert, referindo-se, posteriormente, de passagem, a Guerra Junqueiro, em Textos Cativos. A referência seguinte, em Tlon, Uqbar, Orbis Tertius, já é sobre a língua portuguesa falada no Brasil, mais especificamente, no Rio Grande do Sul, quando, naquele texto, surge a informação que recebera de um inglês - e, como tantos ingleses, escreveu, padeceu de irrealidade - sobre a etimologia brasileira da palavra gaucho , pronunciada gaúcho por alguns velhos orientais. Mesmo assim reserva para a literatura Argentina, em Sobre The Purple Land, a exclusividade dos gaúchos devido a uma grande cidade, Buenos Aires, como mãe de insignes literatos gauchescos. Essa cidade, a do personagem Rosas, será uma das famosas do mundo; mas o escritor guerrearia pelos ermos da América, em uma terra pobre, de gaúchos pobres, registra em O Fazedor. E em Laprida 1214, Borges refere-se também aos argentinos como as pessoas, mormente em Buenos Aires, vivem aceitando aquilo que se chama realidade.

A língua portuguesa comparece em A Biblioteca de Babel, ao referir-se a um livro tão confuso como os outros, mas que também poderia haver sido escrito em iídiche. Estamos em 1941. Alguns anos mais tarde confidencia-nos em Os Borges: Bem pouco sei de meus antecessores / Portugueses, os Borges: vaga gente / Que prossegue em minha carne.

Em Três versões de Judas, a primeira – primeira e única, frisemos – referência a um autor genuinamente brasileiro: Euclides da Cunha. Não foi citado o nome do livro, um dos mais famosos de nossa literatura, Os Sertões, uma de nossas mais importantes peças literárias. Mas, outro ponto a ser frisado, não passa de uma nota de rodapé. E só. É provável mas não comprovável nos escritos de Borges ser nossa Literatura desconhecida por ele. O fato escritural, constatável, é a redução de uma ampla e reconhecida Literatura Brasileira, a uma nota de rodapé na "obra" de Jorge Luis Borges.

A impressão guardada a partir da leitura desse reconhecido autor argentino é a de que o Brasil é uma vasta extensão territorial, longínqua, como em Utopia de um homem que está cansado, ao citar Emílio Oribe: Em meio à assustadora planície interminável / E perto do Brasil, limitando-se suas referências mais específicas ao Brasil como uma extensão dos pampas argentinos até o Rio Grande do Sul, local ermo onde alguém poderia haver nascido, como um certo Bandeira em O Morto; no mais sendo uma abstração, como numa carta encontrada no fundo de um vestíbulo, enviada do Brasil, como em Emma Zunz. Ainda na Utopia de um homem que está cansado: O planeta estava povoado de espectros coletivos, o Canadá, o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado Comum. Fomos, para Borges, espectros coletivos. Uma quimera, talvez.

Sem dúvida, há uma peculiaridade em se tratando de Rio Grande do Sul, onde há uma formação histórica e geográfica, uma constituição social e cultural e uma mescla no uso da língua devido à situação territorial limítrofe. Dificilmente um gaúcho brasileiro conhece a cultura brasileira acima do Rio de Janeiro ou mesmo de São Paulo; menos ainda, supomos, um gaúcho argentino ou uruguaio. Consideremos o fato de Borges receber o Prêmio Interamericano de Literatura, chamado Matarazzo Sobrinho, de São Paulo, em 1970 e proferir palestras naquela cidade em 1984.

Há também o general Glencairn em O Duelo, que militara na campanha do Brasil, assim como em O Informe de Brodie um certo missionário escocês, não nomeado, que pregou a fé cristã no centro da África e depois em certas regiões selvagens do Brasil, terra à qual o levara seu conhecimento de português. O manuscrito misterioso referido em O informe de Brodie ainda menciona uma passagem na terra dos Yahoos onde o herói consegue se entender em português com alguns homens negros. Obscura, nebulosa e mítica a paragem da língua portuguesa nos textos de Borges.

Não fica claro se a própria língua portuguesa ou sua variável falada no Brasil recebeu a devida atenção por parte de Borges. Houve um tempo em que a Biblioteca do jornal La Nación traduzia parte da literatura brasileira para o espanhol da Argentina, bem como existiram a Biblioteca de romancistas brasileiros e a Biblioteca de autores brasileiros traduzidos ao Espanhol da editora Claridad. O texto mencionado por Borges foi publicado nessa segunda coleção, sendo que ele não nos informa se o leu na língua portuguesa falada no Brasil ou se na tradução para o espanhol.

Um de seus personagens em O Congresso, talvez em alguma tarde ou em alguma noite tenha estado no Brasil, porque a fronteira não era senão uma linha traçada por marcos. Afinal, naquele tempo não havia um único argentino cuja Utopia não fosse a cidade de Paris, escreveu a seguir no mesmo texto. Assim, supomos, se a Utopia se realizasse haveria uma convergência de todos os argentinos em Paris, e não no Brasil ou na própria Argentina. De qualquer modo, como em O Conquistador, escreveu: No duro Brasil fui o bandeirante. Não nos parece, contudo, que o tenha desbravado, ainda que em Colônia Del Sacramento, afirme que durante a guerra do Brasil um de meus antepassados sitiou esta praça.

Amenizando um pouco sua relação aparentemente distante de nossa língua e de nossa cultura, o autor não deixou de considerar que pelo menos a palavra lua em português lhe era conhecida, ainda que menos feliz que a luna do espanhol, em A Poesia. Em contrapartida, talvez conhecesse a opinião de Miguel de Unamuno, em Viagem por terras de Espanha e Portugal, para o qual a palavra luar seria intraduzível, pois não seria a mesma coisa dizer luz de la luna. Ou, acresçamos: moonlight, Clair de lune, chiaro de luna . Definitivamente, luar é sem par, ímpar.

A sua nota de rodapé sobre Euclides da Cunha está em relação a um outro autor, Nils Runeberg, desconhecedor do texto. Borges acentuou a afirmativa de Euclides da Cunha de que para o heresiarca de Canudos, Antônio Conselheiro, a virtude "era quase uma impiedade". Poderemos retornar a essa nota de Borges.

Aí está o lido sobre o Brasil e a Literatura Brasileira em duas mil e quinhentas páginas escritas por Borges, de acordo com a versão brasileira do que foi publicado por Emecé Editores, de Barcelona, com o aval de María Kodama.

Assim, retornando à Literatura Brasileira enquanto nota de rodapé para o mais reconhecido escritor argentino, sem dúvida, apesar de só haver uma única referência a um autor brasileiro e a um tema, trata-se, de fato, de uma indicação imprescindível aos que desejarem conhecer algo da maior importância na historiografia brasileira. Há naquela história, ali narrada, a possibilidade de ser identificado um traço unário de união entre aquele personagem, heresiarca, em sua condução de uma massa beatificada pela virtude quase impiedosa, e a qualquer movimento de massa, inclusive os conglomerados psicanalíticos, sobretudo diante do fato de nossas instituições se assemelharem mais a igrejinhas fundadas por algum heresiarca do que seguidores de Lacan em sua Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da École.

Na época, um outro escritor, Machado de Assis, lançou uma indagação tipicamente psicanalítica: Que vínculo é esse que prende tão fortemente os fanáticos ao Conselheiro? Machado de Assis foi o fundador da Academia Brasileira de Letras, e sua indagação foi colocada na mídia na mesma época em que Freud estava a elaborar sua Onirologia, antes portanto da Übertragung freudiana, d’ A transferência em sua disparidade subjetiva, sua pretensa situação, suas excursões técnicas, conforme Lacan.

Enfim, o texto citado por Borges merece nossa atenção, podendo ajudar-nos a entender um pouco do que Freud assinalou na Psicologia das Massas e Análise do Eu e aplicá-lo em relação a nós mesmos em nossos movimentos de massa, massa de psicanalistas, também sujeitos ao espírito de rebanho característico das massas. No movimento por ele criado, encontramos a adesão de milhares de pessoas, sobretudo mulheres, a serviço de um servo que as servia, um homem santo, homem santo que, a seu modo, fora de qualquer instituição, era, ele próprio, a Um-stituição, a instituição do um, tornando-se heresiarca ao procurar seguir, confusamente, certos princípios de Santo Inácio de Loyola, em si mesmos obscurantistas, provavelmente ininteligíveis para sua leitura, leitura feita fora do contexto em que os textos, sagrados ou não, sendo doutrinários, costumam ser lidos, fazendo-se santhomem entre a escrituração de outrem e a massa de seguidores vinculada a tal leitura. Ser um santo homem – misógamo e misógino - foi o seu sinthoma de homem santo, e, especularmente inverso, proporcional à sua misogamia e misogenia, recebeu a adesão suicida de milhares de seguidores, efetivando assim o fato mais pungente, mais dramático de nossa historiografia.

Ao finalizar este escrito, guardo uma impressão: a imagem dos volumes dos escritos de Borges numa prateleira e, tal como ele ainda menino, maravilho-me, mesmo adulto, com o fato de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decorrer da noite, como confidenciou em O Aleph. De qualquer forma é sempre bom conferi-los, de vez em quando, em algumas manhãs.

(Trabajo presentado en el Lacanoamericano de Recife, septiembre 2001)

Notas

1 Em Utopia de um Homem que está cansado.

2 Em The Thing I Am

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 14 - Diciembre 2001
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