Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura

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"Temos que ver o que qualifica o psicanalista a responder a esta situação
onde se vê que ela não envolve sua pessoa
"
(Proposição de 9 de outubro de 1967)

"Não é seguro que algo que não se possa traduzir na linguagem,
não sofra de uma carência inteiramente eficiente
"
(Seminário do Ato Psicanalítico)

O presente trabalho nasceu frente a uma proposta de apresentação do seminário de 10 de janeiro de 1968, o que seria o capítulo 5º do seminário do Ato Analítico, dentro das atividades correntes de grupo de estudo, seguindo então seu desenrolar, levantando as questões que pude eleger como centrais do texto e que têm seu desenvolvimento durante todo o Seminário, assim como propondo-se a fazer algumas inserções, quando possível.

Lacan inicia seu seminário de 10 de janeiro de 1968 falando-nos sobre o ano-novo e sua referência a um início. A partir daí define o ato, como "ligado à determinação do começo, e muito especialmente, ali onde há a necessidade de fazer um, precisamente porque não existe"1, tratando-se, portanto, de um começo lógico. Determina-se assim um ciclo sobre o Real, mais precisamente sobre uma parte deste, já que o Real é inapreensível em sua totalidade, e, neste cercar, dá forma a algo, como o vaso do oleiro, ao redor do vazio, notadamente através de uma borda de sentido da ordem do significante. Advento de sentido que vêm a posteriori já que, no que se refere ao ato, Lacan nos diz que "atrás dele, outros se perfilam".

Ato envolve uma ação. Toda ação carrega uma ponta significante. Lacan nos fala sobre os atos de guerra que ultrapassam a questão da pura eficácia estratégica e sobre os atos revolucionários. César e Lenin se somam no seu discurso, na medida em que seus atos ultrapassam algo, (como também os atos de Antígona e Creonte - Seminário 7, sobre a Ética, bem como os demais atos heróicos nas tragédias gregas, onde o herói torna-se por fim, apenas o dejeto de seu empreendimento), no sentido que é em relação aos outros significantes deixados no mundo que aqueles vão se "conectar" e transformá-los, assim como serão transformados por estes, pois ocorrerá uma reorganização a partir destes novos começos. Porém Lacan lança a seguinte questão: "O ato estaria no momento em que Lenin dá tal ordem, ou no momento em que os significantes deixados no mundo dão a um determinado acontecimento numa estratégia, seu sentido de começo já traçado?"2.

Como tentativa de resposta poderíamos situar o ato na ordem da atemporalidade, já que inserido no fluxo dos significantes, ou seja, transcendendo a questão de um começo e de um fim, próprio a noção corrente de tempo como linearidade, pois, lembre-mos Lacan, a determinação deste começo lógico surge da necessidade de fazer um.

Bem, como nas análises, o ato do analista em relação à tarefa do analisante, ou seja, o de suportar a transferência, só pode ser significante em relação aos outros significantes que se perfilarão a partir deste novo "zero", ou seja, só num depois: "Um golpe de teu dedo sobre o tambor descarrega todos os sons e começa uma nova harmonia" 3... ( citação de um texto de Rimbaud, utilizado por Lacan, notadamente intitulado, "Por uma razão "). O efeito do ato está em "suscitar um novo desejo".

Lacan continua, e, para nós, surgem mais questões: e quem faz o ato de colocar o Ics?, ou ele (o ato) se faz por si só? e, se feito, como apreendê-lo? Ele exemplifica o que chama de "desativação" (desarmorçage: "ação de desarmar uma arma de fogo"): "Lá onde mais certamente eu penso, ao me dar conta disso, eu lá estava"4, no mesmo sentido que no exemplo do emprego do imperfeito, extraído por Lacan das observações do lingüista Guillaume, "um instante mais tarde e a bomba explodia", o que quer dizer que realmente não explodiu, mas se está dizendo também "a bomba explodia". "Lá onde isso estava, onde não está mais senão lá, porque eu sei que eu o pensei, "soll ich werden""5, o sujeito deve advir, notadamente, o sujeito do inconsciente.

Lacan introduz ainda pela conjunção disjuntiva, "ou"6, através de uma articulação lógica, uma escolha singular: "ou eu não penso, ou eu não sou", de onde se poderia deduzir que "eu sou onde não penso" e "penso onde não sou" (grifos nossos), em relação ao Cogito Cartesiano, desenvolvendo então o corte epistemológico efetuado pela Psicanálise quando da defesa da proposta do Inconsciente. Lacan defende suas proposições fazendo uso do esquema de Peirce e de uma operação quantificadora visando uma superação da lógica aristotélica, distinguindo-se desta, para demonstrar que o sujeito pode funcionar como "não sendo", ou seja, como estando dividido entre o sujeito da enunciação enquanto distinto do sujeito do enunciado, posicionando-se no lugar vazio de um termo médio que seria a própria falta, o objeto "a". O sujeito do inconsciente não estaria aí "congelado" no predicado, não repousaria no seu atributo, como para a lógica clássica, no que o constitui enquanto existência, mas passearia na relação que um predicado tem para um outro: "o sujeito é representado por um significante para um outro significante".

O psicanalista então não poderia pronunciar o Inconsciente, pois não faz parte do ato dele "pensar" em que consiste o Inconsciente já que pensando não mais estaria lá. Porém, aponta Lacan que é isso que encurrala o psicanalista na posição do "eu não penso". Diz ainda, "jamais se é tão sólido em seu ser como quando não se pensa"7. E mais, "naturalmente, é um lugar cômodo, este "eu não penso"8, na medida em que tudo cabe nele, tanto o ser inchado do imaginário como o falso-ser dos quais o "eu não penso" é o algo debaixo, que lhes dá seu lugar. Paradoxalmente, a tarefa analítica de colocar esse "eu não penso" em ação, pois o analista revela esta necessidade, se dá em um " eu penso".

Bem, até aqui temos que o ato está em relação com um começo, e complementa Lacan, com um começo já marcado: "é do efeito da marca que com satisfação deduzimos o "ou eu não penso ou eu não sou", "ou eu não sou esta marca" ou "eu não sou nada senão esta marca", quer dizer, "eu não penso" 9. É na marca que vemos o resultado da alienação, a saber, "que não há escolha entre a marca e o ser"10 e então fica a questão colocada por Lacan sobre o início da lógica do fantasma: de que natureza é o ponto de partida lógico, onde o "eu não penso" e o "eu não sou", estariam conjugados?

Sobre o ato de se começar uma Psicanálise, Lacan coloca o lugar do ato, implicitamente, do lado do analista e o da tarefa, já que se trata de uma, do lado do analisante, e abstrai que "deve haver outra coisa aí, uma relação da tarefa ao ato que talvez não seja o ser"11, e aponta para um desvio imediato, na busca de esclarecer esta questão. Este desvio se situa em um outro começo, notadamente no início do desejo de analista, momento no qual há um fim de análise, uma queda na posição do sujeito-suposto-saber para a de pequeno objeto "a", suportada pelo analista, queda que ocorre, mesmo sem a perceber, por parte do analisante. Como ele se refere: "chegou-se ao fim uma vez"12. E complementa, "é aí que é preciso deduzir a relação que isso tem com o começo de todas as vezes"13.

Supõe-se uma certa realização da operação verdade (ver gráfico), onde o des-ser do "analisante-psicanalista" (neste momento do passe) feriu o ser do analista, numa passagem do sujeito instalado no falso-ser para algo de um pensamento que comporta o "eu não sou", reencontrando o seu lugar do mais verdadeiro, seu lugar sob a forma do "lá onde isso estava", que se encontra nesse objeto "a", e, ainda, por outro lado a "falta" que subsiste, a falta que se define como desejo, essência do homem que se traduz num desses fins como "falta encarnada", a castração (-), via pela qual o sujeito se realiza.

O objeto perdido inicial está no princípio do ato.

Dentro do esquema criado por Lacan onde ele assinala haver dois "wo es war", dois "lá onde isso estava ", um como falta no sujeito e outro como objeto de perda, conclui "a verdade é que a falta é a perda"14, "mas esta perda é causa de outra coisa" 15, esta perda é "causa-de-si", no sentido que é dado a este termo em Spinoza: "Deus é causa-de-si". O sujeito depende desta causa, ele não é causa-de-si, ele é consequência desta perda, e mais, "seria preciso que ele se colocasse na consequência da perda, a que constitui o objeto "a", para saber o que lhe falta"16.

O passe se dá então sem o saber e também "não sem o saber" (pas sans le savoir). Como nos diz Lacan, é incurável. O ato analítico no início funciona, com o sujeito-suposto-saber falseado, é um ato em falso, pois ele se revela o que já era bem simples ver de imediato: que é ele que está no início da lógica analítica, que o analista sabe que não é esse sujeito-suposto-saber, que não pode sê-lo, pois ele está fadado a cair.

Aquele que se torna analista não saberia marcar o que ocorreu de mudança no nível do sujeito-suposto-saber, que ficou reduzido ao mesmo "não estar aí" que é o que é característico do próprio inconsciente, S(A), pois é do campo do Outro que este significante sem essência, o objeto "a", foi arrancado, objeto este reevocado no ato, sendo o analista, ao final de uma análise, tendo atuado nesta como sujeito suposto saber, um sujeito que não está no ato, talvez "estando", se assim me é permitido dizer, em um Sob Ato.

Ronald de Paula Araújo

(Texto apresentado no encontro do CEF 1999 sobre o Seminário "O Ato Analítico")

  1. LACAN,J. O Seminário, Livro 15: O Ato Psicanalítico. Inédito.
  2. Ibid.
  3. Ibid.
  4. Ibid.
  5. Ibid.
  6. disjunção: "supressão da conjunção aditiva entre várias frases" .
  7. Ibid.
  8. Ibid.
  9. Ibid.
  10. Ibid.
  11. Ibid.
  12. Ibid.
  13. Ibid.
  14. Ibid.
  15. Ibid
  16. Ibid.
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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 14 - Diciembre 2001
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