Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Violencia metafísica e interpretação em Oscar Wilde e Gianni Vattimo
Rafael Lopes Azize

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Interpretation is the only game in town.
Stanley Fish

Sabe-se, desde há alguns anos, a que se deve o maior sucesso de livraria que o mundo jamais viu, o sucesso do Novo Testamento. É que este livro tem o seu segredo. É que ele deixa entrever em cada página, em cada linha, uma coisa que ele não diz, e assim tanto mais nos intriga, nos associa, nos liga. (...) É que Jesus Cristo é alegre. O Novo Testamento no-lo mostra grave e mais para o reflexivo, e por vezes irritado, e ainda outras vezes às lágrimas e sempre muito sério. Mas nós adivinhamos outra coisa, que o Novo Testamento não nos diz: é que acontece a Jesus de zombar. É que ele é muito bem-humorado. É que ele fala a torto e a direito, para ver o que acontece (quando se dirige a figueiras, por exemplo).
Enfim, é que ele se diverte.
Jean Paulham

As formulações sobre estética que encontramos nos ensaios de Oscar Wilde revelam uma posição ambivalente quanto aos problemas da intencionalidade e da interpretação. Uma forma de apreciar esta ambivalência é lermos os ensaios de Wilde, porventura a parte menos conhecida dos seus escritos1, à luz do debate contemporâneo sobre os significados da interpretação - em particular o niilismo hermenêutico do filósofo italiano Gianni Vattimo.

Estruturalismo e a reafirmação da "agência humana"

O formalismo e o estruturalismo mais radicais pretendiam pôr de parte, por irrelevante, a "agência humana" como produtora de sentido. Não obstante, em discursos atuais de várias disciplinas, é possível verificar uma "reafirmação da agência humana"2 que dialoga criticamente com as teorias da interpretação anti-intencionalistas, sejam formalistas/estruturalistas (baseadas exclusivamente nos elementos textuais) ou radicalmente recepcionistas (assentes no cruzamento de discursos que se dá no ato da leitura). Esta "reafirmação da agência humana" pode marcar um lugar de convergência peculiar entre discursos filosóficos e crítico-literários, sobretudo das filosofias que extraíram mais conseqüências da chamada virada lingüística (linguistic turn)3. O problema da intenção do autor e dos limites da interpretação, conduziu muitos críticos a posições extremas, advogando uns a impossibilidade, outros a inevitabilidade da busca do acesso a essa intencionalidade, bem como da descrição exaustiva da sua determinação contextual, histórica.

A partir do pensamento débil (pensiero debole) italiano e das suas idéias sobre o fim da modernidade como uma pós-metafísica que inverte o sinal de menos aposto ao niilismo filosófico, poder-se-ia perguntar se este é um debate cujos traços, nas suas implicações ético-estéticas, já podem ser lidos em retrospectiva, antes mesmo de Nietzsche e Heidegger, no esteticismo novecentista e na sua problematização da mimese como, de certa forma, vertente estética da metafísica objetivista4. Em particular, poder-se-iam reler os ensaios de Oscar Wilde para aí tentar-se descobrir não só inusitadas implicações éticas que o esteticismo talvez não estivesse preocupado em explicitar, como também linhas de continuidade com debates contemporâneos que se querem "pós-metafísicos".

É no contexto de uma tal investigação que o presente trabalho se pretende inserir.

Ao folhearmos as Obras Completas de Oscar Wilde, causa surpresa um texto cujo título de imediato chama a atenção: The Soul of Man Under Socialism (A alma do homem sob o socialismo) - portanto, um suposto panfleto socialista escrito pelo mais brioso teórico da arte pela arte, da defesa irrestrita da autonomia do campo artístico e do individualismo. De início, julgamos prudente interpretar o título tendo em conta as habituais ambiguidades wildeanas, ou aquilo a que se poderia chamar a epigramaticidade difusa dos seus textos. Mencionado este acautelamento, arriscaríamos dizer que o jogo frequentemente irônico de Wilde com as instâncias articuladoras de sentido (o espaço político entre narrador, texto e recepção) não deixa uma impressão de irresponsabilidade cínica no leitor hodierno - pelo contrário. Seja como for, a surpresa resguardada e cautelosa aumenta quando verificamos que a figura mais utilizada por Wilde, no referido texto, para defender a sua versão peculiar do esteta "socialista"5 é Jesus Cristo. Wilde joga com o que acredita serem as expectativas dos leitores quanto aos temas que um panfleto socialista deve abordar, e quer inverte estes temas, quer os força a metonímias subtis, aplicando-lhes entorses semânticos para sistematicamente se furtar a tentações historicistas. De que maneira o faz?

Uma boa forma de acompanhar o raciocínio de Wilde, trazendo-o para mais perto de debates atuais, é traçarem-se paralelos entre o referido texto e um livro de Gianni Vattimo recentemente publicado em Portugal, Acreditar em acreditar. Através das similaridades entre o uso que fazem Wilde e Vattimo do cristianismo e da figura de Cristo (e de idéias acerca do que seria "imitar Cristo"), é possível extrair-se de A alma do homem sob o socialismo elementos para uma teoria da interpretação que se encontra próxima do niilismo hermenêutico de Vattimo, tendo muito a dizer (e vocabulários a emprestar) à ontologia do debilitamento6 e à sua busca de uma pós-metafísica interpretativa.

Para tanto, é necessário preliminarmente dar uma idéia do que propõe Vattimo em Acreditar em acreditar. Haveria duas faces de Deus a acompanhar a tradição hebraico-cristã. Uma é a do Deus terrífico, punitivo, sedento de vingança, omnipotente, e absolutamente transcendente com relação ao homem. Segundo Vattimo, "o Deus violento" das religiões naturais é "o Deus da metafísica (...) porque, tal como esta o pensa, condensa em si, eminentemente, todas as características do ser objetivo".7 Deste ponto de vista, o sagrado está ligado à violência da peremptoriedade dos dados objetivos8 com os quais o sujeito é identificado, assim como o estão a metafísica historicista-positivista. Vattimo extrai, assim, uma ética de uma tese cognitiva. Mas haveria uma outra face de Deus, que Vattimo escolhe apontar como uma mensagem preferível da revelação: a tendência, já anunciada na criação e que vem a ser mostrada na encarnação, para um rebaixamento de Deus ou kenose.9 Esta tendência constitui um processo ininterrupto de secularização, processo este que consiste na "debilitação" das estruturas da transcendência - e dos fundamentos do ser. Secularização é a palavra-chave aqui, indicando o sentido de Cristo como, ele próprio, interpretação de Deus, e a sua mensagem como sendo uma mensagem hermenêutica: ser cristão é interpretar. Esclarecendo-se o que entende Vattimo por secularização, esclarecer-se-á no mesmo passo o sentido aqui tencionado de debilidade.

Vattimo faz, contudo, uma ressalva: o único imperativo apriorístico deste processo constantemente aberto à historicidade (mas portador de uma crítica implícita ao historicismo moderno) é a caritas, o amor ao próximo, o "não matarás".10 Emerge então um Deus amigável, cristão no sentido, agora, de distanciado do deus metafísico hebraico, mas cuja tradição não comporta uma ética menos responsabilizante - apenas não responsabilizante quanto a determinações fundamentais ou mandamentos mediados por portadores hierárquicos da mensagem revelada. Assim, a história do cristianismo é posta em paralelo com a história do ser, que teria "como fio condutor o debilitamento das estruturas fortes, da suposta peremptoriedade do dado real 'exterior', que seria como um muro contra o qual se vai chocar e assim se dar a conhecer como efetivamente real"11, bem como com um niilismo positivizado: "O final da metafísica tem o sentido de desvelar o ser enquanto caracterizado por uma íntima tendência a afirmar a própria verdade mediante o debilitamento".12 O caminho assim aberto é o de uma

concepção da secularização característica da história do Ocidente moderno como fato interno ao cristianismo, ligado positivamente ao sentido da mensagem de Jesus; e uma concepção da história da modernidade como debilitamento e dissolução do ser (da metafísica).13

Este fim da metafísica é, contudo, menos um fim do que um processo ininterrupto (o que é indicado pelo prefixo "pós"), porque "propor a sua 'superação' crítica" significaria "permanecer prisioneiro da lógica de desenvolvimento própria deste mesmo pensamento", em "direção a uma nova fundação".14

Ao falar do niilismo como ponto de chegada da modernidade, como "fim da modernidade", e da maneira como isto implica na incontornabilidade, no século XX, do tema do fim da metafísica, Vattimo traça um quadro do Stimmung, do air du temps intelectual que bem poderia ser aplicado ao decadentismo dos anos 1890, pelo menos tal como se resolve em Wilde relativamente à crítica da mimese e do racionalismo em arte:

Mas o que hoje sucedeu é que tanto a crença na verdade "objetiva" das ciências experimentais, como a fé no progresso da razão rumo ao seu pleno esclarecimento se afiguram, precisamente, como crenças superadas. Todos estamos acostumados ao fato de que o desencanto do mundo haja produzido também um radical desencanto relativamente à própria idéia de desencanto; ou, em outras palavras, que a desmistificação se tenha voltado, por fim, contra si mesma, reconhecendo como mito também o ideal da liquidação do mito.15

 

Imitação de Cristo

Em De profundis, a carta-ensaio de Wilde ao seu amante, numa passagem em que Wilde investiga as razões que terão levado "Bosie" a não lograr adquirir o "temperamento oxoniano" ("Oxford temper") nas maneiras intelectuais, Wilde assevera que adquirir estas maneiras seria tornar-se "alguém que poderia manipular as idéias com graça".16 Bosie teria apenas "chegado a uma violência da opinião". Wilde prossegue citando uma amizade que, para si, configura um exemplo daquilo que ele idealizara com Bosie: a relação entre John Gray e Pierre Louÿs, o autor de Afrodite, morto em 1925 de sífilis. Tratar-se-ia aqui do que Foucault chamou (em Le souci de soi) uma técnica de si, ou seja, assimilação de uma certa maneira de se comportar, à qual uma pessoa que se quisesse conformar às predicações ou códigos de uma determinada ética se teria de ater.

Em A alma do homem sob o socialismo, Wilde introduz outro elemento nessa técnica de si: "Haveria de viver uma vida à semelhança de Cristo aquele que é, perfeita e absolutamente, tal como é".17 Não importa o que faça, o que estude, o que realize, que escreva obras-primas ou cuide de cabras,

desde que se dê conta da perfeição da alma que nele se encerra. Toda imitação em moral e na vida é um erro. Pelas ruas de Jerusalém se arrasta no momento presente um homem que, louco, aos ombros leva uma cruz de madeira. Ele é um símbolo das vidas espoliadas pela imitação. Frei Damião inspirou-se em Cristo (was Christlike) ao ir viver com os leprosos, porque num tal serviço ele realizou plenamente o que tinha de melhor. Inspirou-se em Cristo, contudo, não mais do que Wagner quando este realizou o seu espírito na música; ou do que Shelley, quando este realizou o seu espírito no cantar. Não há um tipo de homem apenas. Há tantas perfeições quantos homens imperfeitos. E se um homem pode consentir aos clamores da razão permanecendo livre, aos clamores da conformidade nenhum homem pode ceder e ainda assim continuar livre.18

Já não se trata, aqui, de uma conformação a predicações comportamentais, ou da busca de uma "união" com Cristo, re-presentado na vida de cada cristão. A mensagem da imitação de Cristo é ambígua: fazer como Cristo é fazer como couber a cada qual, como lhe parecer melhor. Fazer como Cristo é, então, afastar-se do fatalista de Diderot em Tiago o fatalista, e aproximar-se do amo deste último, um espírito "esclarecido" para quem sempre pode haver acomodações possíveis dos acontecimentos em novas interpretações, ou significados abertos a novas relevâncias e usos. Há portanto uma dupla determinação para o ato interpretativo, no qual se conciliam uma anterioridade que vem da revelação, mas também uma intencionalidade, à qual a própria revelação como kenose exorta, num movimento que tende contínuamente à sua dissolução (o 'pós' de pós-metafísica):

A salvação que busco através da aceitação radical do significado da kenose não é, pois, uma salvação que dependa só de mim, que olvide a necessidade da graça como dom que vem do outro. Mas também é graça o caráter do movimento harmonioso que exclui a violência, o esforço, o trincar dos dentes do cão que fica demasiado tempo preso, segundo uma imagem de Nietzsche. Que o núcleo filosófico de todo o discurso aqui desenvolvido seja a hermenêutica, a filosofia da interpretação, isto mostra a profunda fidelidade à idéia da graça entendida nos dois sentidos: como dom que vem do outro e como resposta que, enquanto aceita o dom, expressa também, inseparavelmente, a verdade mais própria de quem o recebe.19

Se virmos nesta graça uma imagem da semântica, não seria difícil aproximá-la da semântica do pragmatista John Dewey: ela concilia a regra e o uso wittgensteinianos num ambiente no qual o conservadorismo e o risco do nonsense em novas experimentações com significados são inseparáveis.

A a argumentação de Wilde desenvolve-se em binômios que podem ser resumidos na luta contra o pano de fundo filosófico de todos os fundamentalismos, ou seja, a razão metafísica (particularmente nas suas conseqüências para uma teoria estética da mimese, a que se contrapõe esta espécie de imperativo que é a interpretação). Tal como Vattimo, Wilde se insurge contra "a clausura no horizonte restringido da comunidade".20 Uma vez que o objetivo aqui não é fazer-se uma comparação exaustiva entre os dois textos citados, talvez seja suficiente isolar alguns temas presentes em ambos, na esperança de que se clarifique aos poucos a extrema similaridade na maneira de tratar o seu núcleo problemático comum, a questão da interpretação.

 

O individualismo. The beautiful & intellectual life.

"Tornar-se o que se é" (Nietzsche). A autoridade

Nos ensaios de Oscar Wilde e na sua idéia de modernidade, o ser e a realidade não são "dados objetivos que o pensamento se deveria limitar a contemplar para se conformar às suas leis".21 Não há verdade fora do que ele chama de uma perfeita realização de si (que em Inglês tem o duplo sentido de um dar-se conta, acrescido do sentido português de realização), fora de "a realização de uma vida bela e intelectual".22 Esta "realização" encerra o apego à mensagem da secularização ou da kenose e, num mesmo movimento, inscreve a historicidade individual do sujeito - no que se está longe do artista romântico da torre de marfim, ou a bater-se por ideais nacionais. Esta realização de si será tanto mais perfeita quanto mais o sujeito se afastar da metafísica das estruturas fortes, abandonando knowledge ou conhecimento por wisdom ou sabedoria. A liberdade do artista (e a autonomia do campo artístico) dá-se na historicidade das suas escolhas, estéticas ou outras, e não na História teleológica ou no correspondentismo intensional das poéticas expressivistas.

Wilde distingue labour ou labor de leisure ou lazer. Este último não é algo a que os proprietários tivessem acesso e os operários não, pois o trabalho seria tão "alienante" (sic) para o dono dos meios de produção quanto para os operários. O primeiro seria consumido pelas preocupações advindas da condição de proprietário, além de pela tentação, induzida pelo próprio sistema, de acumular "muitíssimo mais do que ele realmente deseja".23 O segundo seria consumido pelo tédio e esgotamento, e pela impossibilidade de inscrever algum "prazer" - ou aquilo que Charles Fourier chamava de manies24 - no seu trabalho alienado, "mental e moralmente injurioso".25 Tanto o proprietário quanto o trabalhador, portanto, estão impossibilitados de "pôr no seu trabalho o que têm de melhor".26 E como se define este "melhor que há em si"? Wilde usa termos como personality e temperament, e mesmo, por vezes, um sentido surpreendentemente pouco elitista de genius. Mas para que se "realize", a personalidade ou temperamento precisa esquivar-se das reivindicações prescritivas que sobre si fazem "os outros" (Wilde pensa no que chama de o monstro da opinião pública - mas em seguida generaliza a idéia para abranger qualquer forma de autoridade, "a autoridade quer da ignorância geral da comunidade quer do terror e ânsia de poder de uma classe eclesiástica ou governamental"27).

Por outro lado, o indivíduo não pode, segundo Wilde, deixar que as suas energias afirmativas se consumam na reação à autoridade; aqui, lembramos do perigo existente, para Vattimo, num cristianismo "que quer afirmar a religião como necessária via de saída de uma relidade 'intratável'" - numa visão apocalíptica aparentada ao agonismo trágico dos existencialismos -, e que acaba por "enfatizar a realidade do mal, a insuperabilidade dos limites humanos, a idéia da história como lugar de sofrimento e prova em lugar de como história da salvação"28. Este dispêndio de energia na reação é o motivo que, para Wilde, torna o crime condenável: "O crime, que, sob certas circunstâncias, pode parecer ter criado o Individualismo, deve tomar conhecimento de outras pessoas, interferir nelas"29, perdendo assim o direito à paternidade do individualismo. Resta então a arte, ou o fazer artístico, como a mais efetiva forma de individualismo.

Mas como lida este Jesus "artista", individualista, com a caritas? Como justifica este sujeito interpretante a manutenção da caridade hermenêutica?

Tanto para Vattimo como para Wilde, a caritas acaba por se aproximar de uma forma de niilismo, uma vez que supõe a percepção da "violência implícita em toda ultimidade, em todo princípio primeiro que abafe qualquer nova pergunta".30 O que Wilde chama de perfeita realização de si acaba por se confundir com o sentido vattimiano da revelação cristã, no sentido em que implica numa perda, num deixar-se de ser "algo determinado e de uma vez por todas", para que se possa interpretar. E fazê-lo é, precisamente, ouvir a mensagem da kenose da forma mais consequente. Assim, escreve Wilde: "A arte é individualismo, e o individualismo é uma força perturbadora, desintegrante".31

A potência destrutiva que é condição da criação, tal como se realiza no individualismo, seria então, num sentido agora tornado mais claro, a expressão mais acabada da caritas. No limite, Wilde acabará por advogar a superioridade do crítico sobre o artista criador, argumentando que o crítico está numa posição de maior lucidez quanto a ilusões de apreensão objetiva da realidade - e assim estaria mais "livre" e mais propenso à caritas no sentido da kenose, ou seja, da perda da "presença real" (dos significados, do objeto mimetizado).

A crítica é na verdade criadora na mais elevada acepção do termo! Ela é afinal criadora e independente. (...) A crítica não deve ser, assim como a obra do poeta ou do escultor, julgada por não sei que baixas regras de imitação ou de semelhança. O crítico ocupa a mesma posição em relação à obra de arte que o artista em relação ao mundo visível da forma e da cor, ou o invisível mundo da paixão e do pensamento. Ele não necessita, para o aperfeiçoamento da sua arte, dos mais belos materiais... O que quer que seja poder-lhe-á servir.32

A crítica não apenas é mais lúcida do que a arte, como chega mesmo a precedê-la:

Você falava há pouco desse fino espírito de seleção, desse delicado instinto de escolha com que o artista cria a vida para nós e lhe confere uma momentânea perfeição. Pois bem, esse espírito de escolha, esse sutil tato de omissão nada mais é do que a faculdade de crítica sob um dos seus aspectos mais característicos, e aquele que não a possui nada pode criar em arte.33

Em termos heideggerianos34, a lucidez maior do crítico estaria, para Wilde, na sua consciência de que ele trabalha com os "equipamentos" do "mundo" (humano, artificial), e não com os elementos da "terra". "Não há arte elevada sem consciência, e consciência e espírito crítico é tudo a mesma coisa".35

Wilde rejeita, como já referimos, uma caritas a que se esteja obrigado por qualquer razão reativa (pensa nos diversos movimentos lacrimogêneos de caridade vitorianos, que considera degradantes para todos os lados envolvidos), ou mediante uma abdicação da interpretação (a "inspiração" romântica, o primado do "devo cantar" sobre o "quero cantar"36). Tal situação configuraria uma caritas extraviada, ordenada pelos depositários hieráticos da mensagem cristã. Não há caritas se não for à maneira de cada qual. Eis por que caritas e individualismo são, não antitéticos, mas sim indissociáveis, tal como o são personalidade (ou secularização) e intepretação. A desvantagem do artista relativamente ao crítico é que o primeiro estaria mais exposto do que o segundo a este extravio da caritas.

Recepção passiva versus recepção criadora. A educação. O "socialismo"

É possível, então, ao ler-se Wilde tendo-se em mente o niilismo hermenêutico de Vattimo, armar uma antítese entre realização de si e autoridade sobre os outros, num binômio do tipo quanto mais A, menos B, e vice-versa. Nos termos do que se poderia considerar uma teoria wildiana da interpretação, isto pode ser formulado como uma oposição entre o poder de derivar textos a partir de textos e o ter-se autoridade sobre textos - porque este segundo termo estaria paralisado, na sua recepção criativa, pela busca de estruturas fortes, de significados últimos, absolutos e ininfluenciáveis pela própria recepção (historicidade).37 Mas isto só faz sentido, pelo menos nos termos de Vattimo, no quadro do ser heideggeriano, com tendência para o debilitamento e que é correlativo ao deus cristão. Ao encarnar-se no Cristo, na kenose, este fluidifica a presença objetiva, metafísica do deus hebraico, recriando a sua imagem numa interpretação. Nesta "transcrição"38 da mensagem cristã está o nexo entre a história da revelação e a história do niilismo - o que vem a constituir-se numa interpretação da própria história do Ocidente como niilismo (secularização, kenose, encarnação). A ontologia do debilitamento39 pode então dizer-se, para Vattimo, ontologia hermenêutica, não sendo "mais do que a interpretação da nossa condição ou situação, já que o ser não é nada fora do seu 'acontecimento', que sucede no seu e nosso historicizar-se".40

Em O crítico como artista (The Critic as Artist, um dos ensaios de Intentions), Wilde avança, como já vimos, que a verdadeira criação é apanágio do crítico, porque este está menos exposto do que o artista a cair na tentação realista de buscar acesso à pura objetividade do objeto a ser representado (por oposição a interpretado). Em A alma do homem sob o socialismo, que em muitas passagens retoma este argumento de outras maneiras, a "crítica criativa" acaba por ser assimilada a uma arte de viver41, e o pensamento a um acontecimento - mas acontecimento que Wilde diferencia da ação (a qual não seria significativa em termos do individualismo wildeano). A desobediência é a virtude original do homem; é através dela que se faz progresso. Progresso, na terminologia wildiana, significa afastamento do "progresso" positivista, como a situação que permite o acontecimento generalizado da interpretação, esta última o ato individualista por excelência e cujo caráter "progressivo" (agora em termos positivistas, peremptórios, não negociáveis) é duvidoso. À situação política que promove este ato individualista, Wilde chama "socialismo". Se lemos Wilde com a chave de Vattimo, podemos então dizer que desobedecer, no sentido de interpretar, é o que Jesus faz ao ser o que é, ou seja, uma imagem ou versão de Deus, e assim coloca-se numa posição mais valorizada, do ponto de vista do "pensamento pós-metafísico", do que Deus - tal como o crítico relativamente ao artista.

Ao assumir a "criação intelectual e imaginativa" e abandonar a "mimicry" ou imitação, ao eximir-se de "dar ao público o que o público quer", o artista presta o mais alto serviço pedagógico. A chave para esta pedagogia está na "imitação de Cristo" wildiana.

O seu objeto 42 [de George Meredith] era o de realizar (realise) a sua própria perfeição como artista, sob certas condições e em certas formas de Arte. A princípio apelou a poucos; agora educou a muitos. Criou no público um gosto, bem como temperamento. O público aprecia imensamente o seu sucesso artístico. Muitas vezes me pergunto, contudo, se terá o público percebido que tal sucesso se deve inteiramente ao fato de que Meredith não aceitou o padrão daquele, mas realizou (realised) o seu próprio. (...) Mas resta o fato de que, em certa medida, se criou temperamento e gosto no público, e de que este é capaz de desenvolver tais qualidades.

(...) Aquilo que impede [o público de desenvolver tais qualidades], deve uma vez mais ressaltar-se, é o seu desejo de exercer a autoridadade sobre o artista e sobre obras de arte (...). Que é o temperamento [a que faz apelo a Arte]? É o temperamento da receptividade. Isto é tudo.43

Eis aqui uma mensagem bastante aproximada da mensagem kenótica cristã nos termos de Vattimo: desembaraçar-se dos nossos preconceitos metafísicos é condição para que o sujeito entre em contacto com o seu próprio poder interpretativo, com a positividade paradoxal das "forças desagregadoras" da criação, e sobretudo possa jogar o jogo plurisemântico das diversas instâncias dos significados, libertando a sua historicidade de qualquer historicismo determinístico. Wilde chama a isto personalidade, e é neste sentido que Cristo (i.e., a interpretação do Pai, não a re-presentação do Pai) é um exemplo. "Não podemos já imaginar a salvação como escuta e aplicação de uma mensagem que não carece de interpretação".44

"A história da metafísica é a história do ser; o ser tem uma vocação niilista".45 Vattimo lê na doutrina cristã da encarnação do filho de Deus a história heideggeriana do ser; mais: Cristo, como imagem de Deus, é uma interpretação que substitui o Pai e debilita a sua presença real (na expressão de George Steiner), oferecendo uma imagem do niilismo hermenêutico. Similarmente, Wilde debilita a metafísica da presença do referente poético e retém, de maneira peculiar, a intenção geradora de sentido, "secularizando-a", "encarnando-a" através da "personalidade". Esta historicização é o Ecce Homo esteticista de Wilde, o infinito "tornar-se o que se é", e se afasta da poética romântica da musa interior (a torre de marfim) em direcção a um fazer artístico a um tempo irónico e publicamente responsável. A poética da crítica como criação está, portanto, em estreita correlação com a mensagem da encarnação do filho de Deus como imagem da história heideggeriana da queda do ser, ambas baseadas numa força desagregadora ou construtivamente decadente. E tal como a revelação kenótica, a poética crítica tem uma pedagogia, legitimada num só mandamento: o individualismo como forma mais alta da caritas. A caritas vattimiana encerra uma pedagogia do niilismo hermenêutico (não há senão interpretações), e ao mesmo tempo desautoriza a fuga para a eterna indecidibilidade de sentido do método desconstrutivo.

A revelação, para Wilde, é a revelação da "personalidade" sempre e a cada momento. Isto torna-se possível com o tendencial fim do vínculo da arte (sagrado) com a violência, e com uma concepção da arte (e da intencionalidade da produção artística) que implica num retirar-se, num debilitar-se ontológico, quando então nos é dado "fazer a experiência da verdade, não como objeto de que nos apropriamos e que se transmite, mas como horizonte [e simultaneamente] pano de fundo no qual discretamente nos movemos".46 Ao contrário do cristianismo heróico do conto "A imitação da rosa", de Clarice Lispector (in Laços de família), que fala na "alegria possível e a paz, sagradas pela mão de um padre austero que permitia aos seres apenas a alegria humilde e não a imitação de Cristo", aqui a imitação de Cristo é uma alegria humilde - mas decidida nas suas construções débeis. Tal como na formulação central do pragmatismo de C. S. Peirce47, esta alegria contenta-se com que a relevância dos seus significados resida nas consequências destes.

Notas

1 Os principais são The Soul of Man under Socialism e os ensaios coligidos no volume Intentions (traduzido em Portugal com o título Intenções, e no Brasil como A decadência da mentira e outros textos).

2 Linda Hutcheon, Irony's Edge (Routledge, 1995). Para além da crítica literária, poder-se-ia citar, a título de exemplo, a antropologia interpretativa de Clifford Geertz (The Anthropologist as Author) e volumes relativamente recentes em que se cruzam pesquisadores de várias disciplinas: Carruthers, Collins e Lukes (org), The Category of Person (Cambridge U.P., 1985); Peter Carruthers, Introducing Persons - Theories and Arguments in the Philosophy of Mind (Routledge, 1986).

3 Momento em que a preocupação com os "grandes temas" que tradicionalmente constituíram o objeto da investigação filosófica (como as questões do ser, do belo e da verdade, mas também de coisas como "a linguagem" e "a experiência") dão lugar ao exame da linguagem propriamente dita em que estes grandes temas são discutidos nas práticas das "comunidades interpretativas". Para Rorty, a virada lingüística foi uma última tentativa de manter a filosofia como uma disciplina fundamental que fale "de um ponto de vista transcendental" sobre uma temática não empírica (ou seja, sobre condições de possibilidade não-causais): antes "mente" ou "experiência", e agora "linguagem". Suponho que desenvolvimentos atuais da teoria dos atos de fala e a linguagem não estruturada de Donald Davidson terão convencido Rorty de que a filosofia da linguagem atingiu uma dimensão pragmática, desistindo de "tornar a linguagem um tópico transcendental" (Rorty, "Wittgenstein, Heidegger e a reificação da linguagem", em Ensaios sobre Heidegger e outros, RJ: Relume-Dumará, 1998, p. 75). Num outro texto do mesmo volume, "É Derrida um filósofo transcendental?", Rorty faz uma ulterior distinção relativa aos filósofos hodiernamente preocupados com a questão da linguagem, entre aqueles que trabalham num nível subproposicional (aos quais não seria "justo" lançar o anátema de não serem argumentativos, uma vez que não se proporiam a tal), e outros, como Davidson e Quine, que seriam de fato argumentativos porque se preocupam não com a busca de fundamentos - ou a denúncia da sua ausência - para conceitos isolados (e a substituição destes por outros, geralmente neologismos) e sim com o trabalho de operar no interior de debates nos quais é utilizado nas conclusões o mesmo vocabulário das premissas. Neste sentido, seria ocioso ingressar na polêmica dos decretos de falência da "virada liguística".

4 Vattimo chama a atenção para certos usos da metafísica da objetividade, em que se legitimam relações políticas de poder, em Creer que se cree (B.Aires: Paidós, 1996).

5 Sublinhe-se que se tratava dos tempos do anarquismo bombista, da "ação direta" revolucionária, de Ravachol, de Émile Henri - no contexto francês. A palavra "socialismo" mobilizava no contexto de então reações muito mais poderosas do que hoje.

6 Para esta noção, à qual Vattimo chega inspirado no ser-aí heideggeriano, ver mais abaixo, ou diretamente a coletânea Il pensiero debole (Milão: Feltrinelli, 1995).

7 VATTIMO. Op. cit. p. 38.

8 "(...) metafísica, quer dizer (...), o pensamento que identifica o ser com o dado objetivo, com a coisa diante de mim, frente à qual só posso adotar a atitude de contemplação, de silêncio admirado, etc." (id., ib., p. 25)

9 Para uma discussão da kenose em Lévinas, cf. Emmanuel Lévinas, Transcendência e inteligibilidade (Lisboa: Edições 70, 1991).

10 Uma forma de escrever isto poderia ser: não invalidarás (aprioristicamente uma interpretação, um sujeito). A caritas torna-se então caridade hermenêutica.

11 Id., ib., p. 33.

12 Id., ib., p. 38.

13 Id., ib., p. 42.

14 VATTIMO. Fim da modernidade. Lisboa: Presença, 1987. p. 8.

15 VATTIMO. Creer que se cree. p. 22-3.

16 ...one who could play gracefully with ideas.

17 "He who would lead a Christlike life is he who is perfectly and absolutely himself"; Oscar Wilde, The Soul of Man under Socialism, in The Complete Works of Oscar Wilde (Harper & Row - Perennial Library, 1989. p. 1087).

18 Id., ib., 1987.

19 VATTIMO, op. cit., p. 126.

20 Id., ib., 126.

21 Id., ib., p. 24.

22 WILDE, op. cit., p. 1081.

23 Id., ib., 1089 - meu itálico.

24 Cf. O novo mundo industrial e societário e outros textos. Porto: Textos Marginais, 1973.

25 Id., ib., 1088.

26 Id., ib., 1090.

27 Id., ib., 1090.

28 Trata-se, uma vez mais, da salvação entendida como mensagem de secularização da kenose, ou pós-metafísica. VATTIMO, op. cit., 124.

29 WILDE, op. cit., 1090.

30 VATTIMO, op. cit., 77. "A secularização não afeta somente os conteúdos das Escrituras, senão também, inseparavelmente, as estruturas e ordens mundanas. Enquanto o cristianismo se move na ordem mundana de acordo com os princípios próprios desta ordem, e segue, pois, as regras do jogo e não se crê legitimado para as violar em função das suas referências "sobrenaturais", deverá, contudo, com base no mandamento único da caridade e sem fantasias relativamente a leis naturais, encarar também esta ordem como um sistema que se há de fazer mais ligeiro, menos punitivo e mais aberto ao reconhecimento das (às vezes boas) razões dos culpados, para além de ao direito das vítimas" (Id., ib., 116).

31 Oscar Wilde, op. cit., 1091.

32 Oscar Wilde. "A crítica e a arte". In: A decadência da mentira e outros ensaios. Trad. João do Rio. R.J.: Imago, 1992. p. 117.

33 Id, p. 107.

34 Ver A origem da obra de arte, em Caminos de bosque (Madri: Alianza, 1997).

35 Id., p. 108

36 Id., p. 107.

37 "Heidegger destruiu o sentido ilusório da metáfora da reconciliação de história e natureza, enquanto ela implica uma busca de identidade absoluta. Esta metáfora, base de todas as utopias, retoma, nele, as suas verdadeiras dimensões: o homem deve assumir-se na sua finitude" (Ernildo Stein, in Heidegger. Trad. e sel. E. Stein. S.Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 19).

38 VATTIMO, op. cit., p. 39.

39 E não, parece-me, ontologia débil, porque se trata de um processo contínuo. Note-se, a este propósito, que o niilismo hermenêutico não subscreve a idéia do sentido interpretado como uma disseminação imparável, ilimitada, eternamente relegado ao adiamento de uma decisão interpretativa pelo deslizamento metonímico. A kenose pode ser vista como um limite pragmático e interessado à interpretação; não uma presença que se impõe, mas um fato processual sem o qual aquilo que chamamos de interpretar não seria factível em termos comunicacionais (e não há outro contexto para os sentidos de "interpretar" que não um contexto comunicacional).

40 VATTIMO. Fim da modernidade. p. 9.

41 "Não imagino um pensamento puro, desembaraçado de todas essas contingências que são necessárias: nós pensamos a partir de um corpo, de uma inscrição na história, pensamos num tempo, a partir de emoções, de paixões, de sensações... Não acredito nas idéias se elas não puderem ser encarnadas ou se não permitirem uma conversão na existência singular. Uma das formas do niilismo hoje manifesta-se também na obsessão em dissociar a escrita filosófica, e mesmo a escrita tout court, da prática subjetiva da existência. Penso que a filosofia é uma arte de viver, e que é preciso retornar a esta concepção de sabedoria" (Michel Onfrai, "Como se pode ser nietzscheano?", entrevista ao Magazine littéraire, nr. 315, Nov. 1993, p. 81) - que é o que explicitamente faz Wilde em A alma do homem sob o socialismo, ao passar do conhecimento à sabedoria: "'Know thyself'! was written over the portal of the antique world. Over the portal of the new world, 'Be thyself' shall be written. And the message of Christ to man was simply 'Be thyself'. That is the secret of Christ" (Complete Works, p. 1085). Este "novo mundo" socialista, para Vattimo é a própria história do Ocidente enquanto história da secularização, da revelação. E o que Cristo é, é um ser decaído, cuja verdade é o evento da sua queda ou esquecimento eterno.

42 "His object": Wilde ressalta, com o uso anômalo de "objeto", a substituição do "assunto" da arte: já não aquilo que o público pedia que fosse tratado, mas sim a própria visão idiossincrática do autor.

43 WILDE. The Soul of Man Under Socialism. p. 1096.

44 VATTIMO. Creer que se cree. p. 69-70.

45 Id., ib., p. 33.

46 VATTIMO. Fim da modernidade. p. 17.

47 "Charles Sanders Peirce (1878, 1965) formulou pela primeira vez o pragmatismo como se segue: 'Pondere sobre quais efeitos, dos que seja concebível que tenham um aporte prático (pratical bearing), concebemos como advindos do objeto da nossa concepção. Então, a nossa concepção inteira do objeto é constituída pela nossa concepção destes efeitos' (in How to Make our Ideas Clear). Tudo o que o pragmatismo pode ser localiza-se nas interpretações alternativas possíveis da formulação original de Peirce. A máxima pragmática refere todas as fixações de significado às suas consequências. Como diz Peirce (1878, 1965), 'não há uma distinção de significado (meaning) de tal maneira fina ao ponto de consistir nalguma coisa que não seja uma diferença possível de prática' (p. 257)" (Jim Garrison, "Realism, Deweian Pragmatism and Educational Research", traduzido por mim e publicado em <filosofia.pro.br>).

 

BIBLIOGRAFIA

VATTIMO, Gianni.

WILDE, Oscar.

 

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 13 - Julio 2001
www.acheronta.org