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Aquele sujeito que apresenta-se no gabinete analítico, seja como demanda inicial uso drogas e quero parar seja como declaração não necessariamente articulada em demanda, mas a fala em associação livre revela que a dimensão adicta é presente, constitui ou não uma nova condição que requeira uma inovação no ato analítico? É o uso de drogas notadamente, as drogas de efeito psíquico um fator perturbador da ordem erógena que tornas as relações entre pulsão, gozo, prazer, desejo e ordem simbólica alteradas a ponto de obrigar a produção de um discurso específico a propósito deste sujeito?
O relato das aventuras cotidianas do adicto inclui particularidades. A mais evidente e óbvia delas é a intromissão de um elemento que fulgura como um "a mais" para aquele sujeito. Mesmo quando este sujeito é um homem ou mulher atarefado com planos, projetos, obrigações laborais e cumpre contato social intenso e presença na vida familiar. Mesmo assim, há algo que destoa. Há algo que, mesmo sem necessariamente indicar um prejuízo em todas essas atividades, corresponde a um momento privilegiado freqüentemente aguardado sem obstáculo. O momento em que se desvia de seus pares, se o local não é apropriado, dirige-se a algum lugar privado e faz o encontro. Este encontro pode produzir, no retorno aos pares, a dissipação de alguma angústia, de alguma inibição ou simplesmente responder ao tédio, à modorra, à melancolia, ao mal estar. Em local apropriado, acompanhado de sujeitos de demanda similar, faz a presença da substância ou aceita o que lhe é oferecido. Os problemas do mundo, a infelicidade da condição humana, as dores do amor, o grande projeto, o grande poema parecem, inequivocamente, levados a cabo. Dissipam-se os problemas do mundo, a infelicidade permanece longe, as dores do amor perdem a consistência. O projeto e o poema tomam forma. São escritos, efetivados e concluídos na Imaginação. E como uma sombra atemorizante, pairam a vacuidade desta posição, com ares enganosos de verdade insubstituível, e a indicação de que algo persiste lembrando que esta não é uma resposta e, paradoxalmente, o gosto, o interesse, pela repetição da experiência. "Mais uma vez eu não fiz nada", "mais uma vez furtou-me a atenção", "mais uma vez atrasei-me", "mais uma vez bati o carro", "mais uma vez trepei sem saber". Enfim, a pregnância ilusória do efeito da droga é sagrada do que ela vale: nada. Não obstante, uma marca fica. Uma marca de prazer. Uma marca de grandiosidade. Uma intenção de voltar ao encontro. Quem sabe da próxima vez dá certo. A pregnante ilusão nega o nada. E resta a reminiscência regada de prazer, que compele ao reencontro.
Nesta condição, não é obrigatório que se reconheça neste sujeito os elementos mais dramáticos do uso de drogas. Não está evidente a marca da inteira submissão à droga. Os signos de intoxicação crônica, como descritos pela Psiquiatria, não estão presentes. O adicto pode passar como um neurótico. E o diagnóstico do psicanalista desempenha aqui uma função. Por vezes, é apenas o devaneio onde nenhum obstáculo é oferecido ao uso da droga o sinal de que algo é novo nas operações de prazer do sujeito. Isto se revela quando a antecipação do encontro é o grande acontecimento naquele dia ou semana e as outras atividades de prazer, lazer ou obrigação cercam-se de tons cada vez mais opacos.
A repetição desta experiência parece ser o elemento que pode introduzir o sujeito na escravidão, apesar das tentativas vãs de psicanalistas e psiquiatras de procurarem um termo preciso que sustente o prosseguimento do uso. A escravidão é o sucumbir do corpo e da letra à experiência. Como se a carne e a letra que haviam experimentado o prazer com a droga não mais pudessem dizer sim ou não. Um ato não mais calculado irrompe na cena da existência. Trata-se repeti-lo. Se há prazer, bem estar, mal estar, dor, sofrimento não importa mais. A letra não dirige mais e a carne começa a revelar que não está bem. Episódios de confusão mental, manifestações delusionais, diminuição na eficiência dos atos, menor interesse no trabalho, opacidade sexual. Os laços sociais cada vez mais limitados e arrumar a droga torna-se o exercício supremo. Não parece mais haver ali a função de decidir. O obediência ao encontro segue o modelo do instinto. A droga toma o perfil de algo insubstituível.
A suposição é que, apesar da possibilidade de descrever dois momentos fenomênicos distintos, não estão aqui sujeitos uniformemente diferentes. Um não difere do outro em um detalhe, em uma experiência alucinatória original, em algum enlace especial do nó edípico, em nenhuma fragilidade maior do ego e nem em uma disposição particular escrita no ácido desoxirribonuclêico. A suposição é que o encontro, o prazer produzido e a repetição são os imperadores que importam. Não se trata de um destino a ser cumprido. Trata-se de uma condição do existir e não uma transferência e deslocamento de valor inconsciente. Não há como afirmar que o uso de drogas seja sustentado pela fantasia.
No entanto, a multiplicidade de apresentações clínicas do toxicômano e a dimensão do fenômeno facilita que chegue ao gabinete analítico um sujeito que articula a demanda pelo uso de drogas ou assim faz a família e não se encontram as condições acima sugerida. Obviamente, o uso de drogas pode, sim, representar um pedido de amor, um chamado de atenção ou qualquer outra situação que represente um sujeito para outro significante. Não se considera esta referência uma contradição. Por um lado, as drogas têm uma penetração intensa no discurso social e pode, efetivamente, ocupar lugares como os descritos. Por outro lado, identificar um determinado perfil clínico, fazê-lo existir e discriminar o que o diferencia é, no final das contas, um exercício nosológico. Classificar é a ambição de qualquer código ordinário ou científico em representar o Real. E o Real é teimoso. Impossível.
Na verdade, o objetivo deste escrito é procurar investigar se a suposição contida nas perguntas que iniciam este texto, são justificadas pela apresentação clínica do toxicômano. Se ao analista está revelado um obstáculo especial à direção da cura. Se a fantasia não suporta mais uma operação de prazer, onde está o sujeito e o objeto a no toxicômano? É de Lacan (1) a imputação:"...esse fazer psicanalítico implica profundamente o sujeito...". E onde está o sujeito toxicômano? O descarrilhar da fantasia de sua função faz reconhecer alguma novidade no campo onde está o gozo, a pulsão, o desejo? Se a resposta a esta questão é "sim", o ato analítico não pode ser dirigido exclusivamente pelos viéses interpretativo e simbólico. O fenômeno em questão desarticula a estrutura pois, por mais que exista uma fala que fia e sustenta o uso de drogas no campo do Outro, o efeito delas não se faz a partir desta fala. Diz Miller (2): "não podemos em nenhum caso fazer da droga uma causa de desejo. Como máximo podemos fazer dela um objeto de gozo, um objeto da mais imperiosa demanda e que tem, em comum com a pulsão anular o Outro a droga como objeto de acesso a um gozo que não passa pelo Outro e em particular pelo corpo do Outro como sexual".
Este estado de coisas é que permite responder "sim" às perguntas iniciais. Se a estrutura fálica, que sustenta a causa do desejo, já não se apresenta totalmente sucumbida, há, pelo menos, ao lado do permitido ao gozo fálico, o gozo do corpo do outro como sexual, uma fantasmagoria que corresponde ao gozo produto do uso de drogas. Pode ser escrito : o gozo produzido pela droga substitui as relações possíveis do falo ao objeto a e predomina sobre o sujeito do desejo, repetindo-se como uma demanda irredutível e irreprimível.
Se há alguma precisão nesta leitura, a toxicomania não pode ser lida como um sintoma no sentido psicanalítico do termo. Não se trata de uma formação do inconsciente que exibe uma estrutura de linguagem e que se aproveita do ganho de significação e de mensagem que a metáfora permite. Da mesma maneira, conferindo um sentido mais freudiano, não é possível ler a toxicomania como uma formação de compromisso com o sentido de expor um conflito como conseqüência do recalque do representante da representação da pulsão. A toxicomania não é o significante de um significado reprimido da consciência do sujeito, a não ser eventualmente.
Ora: a toxicomania é intratável! Intratável pelo viés psicanalítico? Resta a estes sujeitos apenas o recurso aos procedimentos psicoeducacionais e às estratégias grupais próprias aos grupos de mútua ajuda? A condição toxicomaníaca é perene? Tais perguntas são correlatos lógicos do exposto mas, para a felicidade de alguns e a infelicidade de outros, a resposta a elas é "não". O sujeito do desejo submetido ao gozo da droga é tratável pela palavra. Por uma única razão: seja qual for a estrutura prévia neurótica, psicótica ou perversa, seja qual for o índice de submissão à experiência toxicomaníaca, a estrutura desejante não está desmantelada como demonstra a construção topológica (3) a seguir:
Não obstante, o analista não está autorizado a fazer dessa possibilidade de reconstrução do fantasma um dado presente, notadamente quando a queixa explícita do ser que nos procura é a impossibilidade de deixar de usar a droga (ou drogas) em pauta apesar de reconhecer o prejuízo que traz à sua vida. Não é incomum atrelar-se a esta queixa a percepção de que os efeitos prazerosos que o jogo toxicomaníaco impõe à subjetividade não são mais repetidos. O álcool não mais produz a irresponsabilidade libidinal, a cocaína não mais produz loquacidade eufórica. No lugar: convulsões, mal estar, ideação paranóide e o que mais surgir. E o toxicômano vem ao analista restringindo as três proposições lógicas do tempo a duas: o instante de ver ("estou mal", "não posso continuar") e o momento de concluir: "vou parar", "não uso mais". E fracassa. Diga-se de passagem que tanto as estratégias médicas quanto a dos grupos de mútua ajuda, sancionam este jogo lógico reduzido a dois tempos. Baseiam-se na afirmação de que, seja pelo acaso genômico ou por desígnios de outra natureza, o ser em questão é um toxicômano e que a ele resta manter-se disciplinadamente afastado da droga (ou drogas) que o apraz. O reencontro ser/droga reconstitui a saga sem intermediários. E atentem não faltam relatos de celebridades nas artes e literatura contando exatamente esta história, bem como relatos de pacientes recebidos tanto pelo analista quanto pelos serviços médicos. A ocorrência destas manifestações não deve fazer o analista toma-las como a última expressão da verdade, desobrigando-se da tarefa de instaurar a proposição lógica intermediária: o tempo para compreender. Aqui reside a diferença entre o analista e os outros terapeutas: apostar que a fala, que exige tempo, diacronia, pode contrapor ao curto-circuito da experiência toxicomaníaca, vazio de Outro, o sujeito do desejo inconsciente.
Este tempo para compreender, se á algo que o analista deve reintroduzir no Imaginário do toxicômano, rompendo com a simplificação "vi, conclui" que o anima, é um termo a ser sacado também pelo analista. O analista deve permitir a si um tempo para compreender. Compreender que por mais que o toxicômano, freqüentemente, pareça um neurótico habitual, com histórias sobre o sexo, as decepções amorosas, o trabalho, a família, ele está marcado por uma resposta positiva de gozo, apesar de esvaziada de sentido. Tarrab (4) precisa: "o que o tóxico procura é o esvaziamento de significação e portanto, uma maneira de manter-se fora do dizer. Fora do discurso, na positividade da repetição. Então o que o tóxico busca é oposto à operação analítica.". E isto faz diferença. Um diferença que o analista passa a contar se permite o tempo para compreender. Isto quer dizer: não colocar em ação o dispositivo analítico de imediato. Mesmo porque não é inexato supor que o toxicômano venha atrás do tratamento com a esperança de reencontrar o prazer inicial que perdeu e não está muito disposto a questionar-se em seus prazeres. Se há um sentido para a expressão "palavra vazia", salientada por Lacan no início de seu ensino, ela toma toda a sua dimensão na fala do toxicômano. É um ser que encontrou uma via que prescinde da intermediação. É um detalhe clínico a não ser descuidado.
Assim, é interessante que o analista perceba que o cerne da questão do toxicômano, o que o define e o diferencia: a experiência toxicomaníaca, não é interpretável. Há algo nesta experiência que por ir além das palavras, subjuga os outros prazeres do corpo, operados pelo falo e pelo significante, que não a torna reveladora de conexões significativas metonímicas. O toxicômano é a experiência bruta que ao produzir discurso, produz o estereótipo ou a grandiloqüência. Cassady (5) descreve o estereótipo assim: "A conversa deles continha muitas observações genéricas sobre a Verdade e a Vida...Eles eram bêbados cuja mente, enfraquecida pelo álcool e por uma maneira subserviente de viver, pareciam continuamente ocupados em emitir curtas declarações de óbvia inutilidade, pronunciadas de maneira que fossem instantaneamente reconhecidas pelo ouvinte que, por sua vez, já havia escutado aquilo inúmeras vezes e esmerava-se de um modo geral em assentir para tudo que lhe era dito e então dava seguimento à conversa com um comentário de sua própria autoria, igualmente transparente e carregado de generalidades...Depois de ouvir por vezes incontáveis a repetição sistemática deste papo furado especulativo...e logo já não havia mais mistério na conversa de nenhum deles.". Huxley (6) é grandiloqüente como segue: "Continuei a observar as flores e, em sua luz vívida, eu parecia captar o equivalente qualitativa da respiração... mas antes em um fluxo, repetido, da beleza para uma beleza mais sublime, de um significado profundo para outro ainda maior. Palavras tais como Graça e Transfiguração vieram-me à mente, e isto, sem dúvida, era o que, entre outras coisas, queriam elas significar... A Beatífica Visão, Sat Chit Ananda Existência-Consciência-Beatitude pela primeira vez entendi, não em termo de palavras, não por insinuações rudimentares, vagamente, mas precisa e completamente, o que queria significar essas sílabas prodigiosas.". É melhor o analista estar advertido disto e evitar a voracidade interpretativa conferindo-se um tempo para compreender em função da submersão do sujeito. Este, duplamente alienado, pois há uma fala da droga , como mostram os discursos acima, e esta fala ou é vazia ou aponta claramente que o verdadeiro saber não se dá pelas palavras.
É correlativa da evitação da voracidade interpretativa, o estabelecimento da transferência. A constituição do suporte do sujeito-suposto-saber está problematizada em duas vertentes. Na primeira vertente, a da identificação, está presente a célebre declaração "eu sou toxicômano" que não permite o hiato entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação que favorece a demanda do saber do Outro. Na Segunda vertente, a do gozo, está lá o sujeito que sabe como alçá-lo, como produzi-lo e pouco espera da fala e da presença do outro. Isto quer dizer que a esperança do que não está simbolizado, torne-se acessível pela instauração do significante da transferência, é uma esperança pouco provável quando o analista ouve o toxicômano. Isto é claro, se a hipótese em curso faz sentido. A repetição toxicomaníaca traz novos apelos e estes são colaterais à constituição estrutural original. Se algo desta sobrenadar o muro de linguagem vazia e grandiloqüente, sorte do analista que recebeu alguém que pode escutar desde o início. Em outra alternativa, a mais comum, há que esperar.
Uma vez, então, que o analista tomou os devidos cuidados com a não instauração instantânea de dois pilares fundamentais do dispositivo analítico: a verdade enganchada no equívoco e o estabelecimento do significante da transferência, ele lança mão do que o diferencia dos outros terapeutas. Pede, então, que o sujeito fale, não exige a abstinência mas a recomenda, conversa sobre o que está sendo sucumbido pela experiência toxicomaníaca, não acredita declaradamente nos arrependimentos salientando a positividade tirânica do gozo. Dirigindo a cura por estas trilhas, abre-se a possibilidade do analista colaborar com o surgimento do que está aquém da experiência toxicomaníaca: o inconsciente e a evanescência do sujeito. A castração e a fantasia. Termos que o ser toxicomaníaco cuida em fazer crer que podem não ser contados.
E sem esquecer que oferece uma resposta ao mal estar da civilização que não é, propriamente venturosa. Pois, põe em relevo a falta e a inacessibilidade da Coisa.
Bibliografia:
Lacan, J El acto psicoanalitico. (edição não autorizada) 1987 Buenos Aires.
Miller, JÁ Para una investigación sobre el goce autoerótico. Em Sujeto, goce y modernidad. Fundamentos de la clínica. Organização: Instituto del Campo Freudiano. Atuel-Tya, 1995, Buenos Aires.
Nogueira Filho, DM Toxicomanias. Editora Escuta, 1999, São Paulo.
Tarrab, M Uma experiência vazia. Em O brilho da inFelicidade. Organização; Escola Brasileiro de Psicanálise-Rio de Janeiro. Kalimeros, 1998, Rio de Janeiro.
Cassady, N O primeiro terço. L&PM, 1999, Porto Alegre.
Huxley, A As portas da percepção/ O céu e o inferno. Civilização Brasileira, 1966, rio de Janeiro.