Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O jargão da autenticidade de Lars von Triers
"Dancer in the Dark" e síntese da força
e dos impasses do cinema de Triers
Vladimir Safatle

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Alguns filmes são indispensáveis para a compreensão dos fantasmas que assombram o espírito do seu tempo. Dancer in the Dark corre um sério risco de entrar nesta categoria. Vencedor da palma de ouro do Festival de Cannes deste ano e recém-lançado no circuito mundial, o último filme de Lars von Triers demonstra seu valor não apenas graças as suas virtudes e audácias formais mas, principalmente, devido a seus impasses. Ele é talvez o resultado mais visível de uma maneira muito contemporânea de bater a cabeça contra a parede ao se tentar determinar o significado do que é um ato moral.

Dancer in the Dark é, na verdade, o último vértice da chamada ‘Trilogia Um Coração de Ouro’, que tem em Breaking the waves e Os idiotas seus dois outros polos. O nome da trilogia vem de um conto para crianças que teria influenciado decisivamente a infância do cineasta. Trata-se da velha história de uma garota pobre com um coração de ouro capaz de dar aos outros aquilo que falta a ela mesma. Em suma, um garota lacaniana que sabe que amar é dar aquilo que não se tem. Claro, tudo isto só pode culminar na redenção final através das mãos de um príncipe que a pede em casamento devido à pureza tocante de seu coração.

Esta ética da redenção através de um amor que atende pelo nome de ‘sacrifício’ guia o comportamento das heroínas dos três últimos filmes de Triers. Por exemplo, em Breaking the waves, Bess salva seu marido enfermo da morte transando com desconhecidos e prostituindo-se. Ela aceita ser a protagonista dos fantasmas do marido, mesmo que isto a mate duas vezes; primeiro simbolicamente (ela é expulsa da pequena comunidade protestante da qual fazia parte) e, por fim, fisicamente.

A mesma lógica sustenta Dancer in the Dark. Aqui, Selma (Björk) é uma operária pobre à beira da cegueira e com uma criança sofrendo do mesmo problema. Durante anos ela trabalhou duro a fim de juntar dinheiro para operar o filho. Mas eis que ela é assaltada por um policial, proprietário de seu imóvel e amigo. Ao tentar reaver seu patrimônio, Selma o mata e uma defesa desastrada a conduz à pena de morte. Mas é a partir deste momento que o filme joga todas suas fichas. A melhor amiga de Selma quer usar o dinheiro da operação para pagar um advogado competente que poderá tirá-la do corredor da morte. O impasse então se configura: salvar a vida ou livrar o filho da cegueira? Claro que nossa protagonista escolhe a segunda opção o que dá ao filme todo o seu caráter trágico.

É verdade que, visto desta perspectiva, Dancer in the Dark parece flertar descaradamente com o melodrama, ainda mais se lembrarmos que sua estrutura formal segue as regras de um musical. Mas esta é talvez uma das grandes qualidades de Triers e que acaba colocando-o ao lado de cineastas como David Lynch e Cronenberg. Todos eles são capazes de operar deslocamentos no uso de clichês e formas gastas pela história do cinema a fim de, assim, abrir espaço à experiência de estranhamento. Eis um dos dispositivos maiores da arte contemporânea, cujo eixo de desenvolvimento está exatamente em forçar suas margens ao introduzir instabilidade naquilo que, de tão visto, parecia não poder significar mais nada. O velho Freud já havia percebido a força de tal dispositivo ao analisar a lenta inversão do familiar em estranho típica dos contos de horror. De fato, Triers leva esta lógica ao paroxismo ao perverter o uso corriqueiro das formas narrativas através de um cinismo que ultrapassa a estrutura de seus filmes e alcança a forma mesma com que o cineasta apresenta-se no interior do debate da cultura. Afinal, o que dizer de alguém que, em plenos anos 90, edita um ‘manifesto’ (Dogma) pregando um ‘retorno ao real’ através de um conjunto artificial de regras que mais lembra a lógica dos exercícios estilísticos do nouveau roman. Regras que o próprio Triers será o primeiro a abandonar e que, cúmulo da ironia, farão sucesso em campanhas publicitárias.

Mas o problema é que todo cínico é, no fundo, um nostálgico do discurso da autenticidade, e Triers não foge à regra com seu catolicismo à la Dreyer. Aqui, começam os impasses de Dancer in the Dark.

O tema central da Trilogia ‘Um Coração de Ouro’ é a anatomia de um ato moral. Por exemplo, tanto Bess quanto Selma são mulheres que aparentemente tiveram a força moral de não cederem em seu desejo, mesmo quando isto parecia ser a coisa mais lógica a fazer a partir da perspectiva do cálculo do prazer. Fidelidade ao desejo que está para-além do princípio do prazer porque se realiza em uma ética do sacrifício de si que não pára sequer diante da morte. Como somos todos cristãos no senso forte do termo, ainda é difícil não nos sensibilizarmos com o motivo do sacrifício e de sua redenção.

Mas os limites do jargão da autenticidade de Triers se mostram ao perguntarmos: que tipo de pessoa é capaz de assumir tal ato? Ou seja, no nosso caso, quem é Selma? A resposta é simples: ela é Coração de Ouro: uma pessoa pura, autêntica, bondosa, submergida no seu imaginário, ingênua a ponto de ser incapaz de romper uma promessa de guardar segredo que poderia livrá-la da forca. Se estivéssemos em pleno romantismo alemão, diríamos que ela é uma bela alma que não compreende nada do curso do mundo porque está muito ligada à pureza de seu coração. Como Selma mesma afirma, quando as coisas ficam duras ela dissolve as contradições transportando sua realidade para um musical que se desenrola no teatro de sua vida interior. Quando sua melhor amiga lhe diz que seu filho não precisa exatamente de olhos novos mas sim da presença da mãe, ela resolve o conflito voltando-se às certezas interiores, mesmo que os olhos sejam pagos com uma catástrofe certa materializada em um sentimento de culpa que irá perseguir seu filho pelo resto da vida. De fato, Triers tinha razão em escolher Björk para interpretar Selma. A mesma Björk que há anos se esforça em vender o tipo feminino ‘I’m just a little smart child’, versão prêt-à-porter.

Ou seja, se Triers tem a força de colocar uma questão moral na proa da sua filmografia, ele tem a fraqueza de só conseguir articulá-la através da introdução dos mitos da interioridade e da imanência subjetiva. Fruto de uma época que precisa do jargão da autenticidade para conseguir pensar a moral. Época pronta a dizer, tal como Bess: "eu não sei o que é amar uma palavra, eu só sei o que é amar uma pessoa". Eu não sei o que é amar uma Lei com aspirações universais, eu só sei me afogar no particularismo do meu objeto de desejo. E não deixa de ser engraçado que o cineasta inteligentemente mais cínico da atualidade precise acreditar no ‘evangelho do coração’ pregado pela bela alma. É que os dois fazem um par perfeito onde um justifica os equívocos do outro.

Vladimir Safatle

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 13 - Julio 2001
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