Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Da carne à palavra
Sai na França livro-referencia de
entrevistas com David Cronenberg
Vladimir Safatle

Imprimir página

A história do cinema é cheia de ironias. Por exemplo, quantos poderiam pensar, há dez anos atrás, que o século se fecharia consagrando David Cronenberg como um de seus maiores cineastas? O mesmo Cronenberg capaz de saciar qualquer adolescente fã de filmes gore com a escatologia de Scanners, A mosca ou Videodrome.

Mas o fato é que o Cahiers du Cinema, a bíblia dos cinéfilos, já fez suas apostas e o cineasta canadense está bem cotado na linha de frente. Tanto que a editora ligada a revista acaba de lançar David Cronenberg: um livro de entrevistas em edição de luxo com fotos, documentos, story-boards e outras curiosidades. Organizado por Serge Grünberg, crítico de cinema e professor da Universidade de Paris VIII, o livro foi lançado em meio a uma grande retrospectiva nos cinemas de Paris que cobria os 35 anos da carreira de Cronenberg, com direito à presença do próprio proferindo palestras sobre tudo o que ele fez de bom na vida.

Eis aí um lançamento que nos fornece um bom motivo para o balanço de uma filmografia composta por 15 filmes e um grande conjunto de trabalhos para TV (incluindo algumas incursões na publicidade). Afinal, há algo no universo de Cronenberg que nos incomoda profundamente. Como esquecer, por exemplo, as críticas virulentas contra Crash vindas de paragens tão díspares quanto o feminismo (sempre as feministas!), o marxismo frankfurtiano de Robert Kurz e a linha de frente do conservadorismo moral anglo-saxão?

‘Protegido’ pelo gênero

A primeira matriz do caráter perturbador da obra de Cronenberg está na utilização deslocada das formas. A grande maioria de seus filmes desenvolve-se forçando os limites das formas estabelecidas pela tradição da história do cinema. Eles se aproveitam de estruturas narrativas desgastadas, de gêneros como o horror ou a ficção-científica, a fim de perverter suas referências centrais. Como diz o próprio Cronenberg: "Eu ‘protegi’ meus filmes através do gênero " e, principalmente, através de um uso hábil de metáforas.

Neste sentido, o melhor exemplo continua sendo A mosca: um remake aparentemente banal de um dos clássicos insossos do gênero e que se transforma na história da lenta agonia da perda de identidade através da transformação do corpo. Um desconhecido filme de 1979, Chromosome III, também leva esta lógica ao extremo. Um psiquiatra faz com que seus pacientes somatizem suas raivas e frustrações. Nola, que acaba de se divorciar, vai mais longe e dá a luz a uma série de pequenos monstros assassinos que a vingam de seus familiares. Com este argumento de filme tipo B, Cronenberg cria uma espécie de Medeia produzida em laboratório que revela, na maternidade, uma forma bruta de horror.

Esta necessidade de produzir valor através do não-valor, ou seja, recorrendo àquilo que está fora da esfera do valor esteticamente reconhecido é, sem dúvida, um dos maiores vetores da arte contemporânea. Não é a toa que ela flerta cada vez mais com a pornografia e a cultura pop. E não deixa de ser interessante que estes dois sejam velhos conhecidos de Cronenberg. Quem viu Rage, outro filme injustamente desconhecido, talvez se lembre da atriz principal, Marilyn Chambers: a mesma das orgias intermináveis de Atrás da porta verde. Isto sem falar de Debbie Harry: a cantora do Blondie, protagonista sadomaso de Videodrome.

A sexualidade como lugar de verdade

Mas, para além das estratégias de construção formal da linguagem cinematográfica, que já bastariam para dar a Cronenberg um lugar de destaque na história do cinema, há algo que nos incomoda mais, e esse algo é o conjunto de questões em torno do qual seu cinema gira. Um conjunto fechado que faz com que seus filmes sejam uma espécie de sistema onde uma narrativa acaba nos reenviando à outra para formar algo como um Todo.

Qualquer um que viu ao menos um filme de Cronenberg sabe que, na base de tais questões, está o problema da sexualidade. Neste sentido, o autor de Videodrome é filho de um tempo que descobriu a sexualidade como lugar de verdade, como espaço privilegiado de determinação da identidade do sujeito. A sexualidade coloca em cena um sujeito que precisa passar pelo corpo para dar existência concreta à subjetividade. Uma estratégia que tira de circulação o dualismo mente/corpo pós-cartesiano e seu solipsismo. Pois através do corpo, o sujeito se mostra como abertura à alteridade, como relação fundamental ao outro. O corpo aparece assim como tecido costurado pela história material do desejo do sujeito, de onde se segue as palavras do próprio Cronenberg: "é em direção ao corpo que se deve ir para conhecer a verdade".

Mas se a coisa toda terminasse por aí, não haveria razão para Cronenberg ser tão peculiar. Dependendo de como se compreende a proposição, dizer atualmente que a sexualidade do corpo é lugar de verdade é um pleonasmo. Faz parte da ideologia multiculturalista contemporânea defender o imperativo: "encontre você também sua forma preferida de gozo" (como gay, queer, sadomaso, lésbica etc., etc., etc.). Quer dizer, "faça da sexualidade sua verdade", como se ela fosse uma matéria plástica facilmente adaptável às nossas fantasias.

O problema é que, no universo de Cronenberg, o espaço da sexualidade tem algo de aterrador, incontrolável e de irredutivelmente freudiano. Assim como o espaço do corpo tem algo de monstruoso e pulsional. Há uma historieta sintomática a este respeito. No começo de sua carreira, Cronenberg precisava de dinheiro e resolveu fazer um teste para filmar filmes eróticos. Tempos depois, o produtor o chama no canto e diz, meio sem graça: "Nós sabemos que você tem um senso muito desenvolvido da sexualidade, só não sabemos de que tipo ele é". Quer dizer, é como se ele dissesse "seu problema é que através da sexualidade, você mostra algo que a própria sexualidade quer esconder". Lembramo-nos como, em seus filmes, não há espaço para o erotismo, com seus acordos tácitos de procura por um prazer cada vez mais completo e harmonioso. O que vemos, na verdade, é um gozo que se encontra para além da economia restrita do princípio do prazer e que provoca um colapso no universo subjetivo de certezas dos protagonistas. Gozo que parece só se realizar em uma certa noção de morte: tema maior de filmes como Crash, Gêmeos, M. Butterfly, Videodrome e Almoço Nu.

Aqui, a tentação é grande para explicar essa pulsão, que transforma o sexo em uma via de mão dupla em direção a uma certa morte, através das categorias psicanalíticas. Um universo presente desde o primeiro filme de Cronenberg, Transfer: um curta cuja história é exatamente um analisando que persegue seu psicanalista.

Transformar a palavra em carne

"É necessário que eu transforme a palavra em carne". Através desta afirmação, Cronenberg define a essência de seu cinema. Afirmação que deve ser compreendida em todo o seu rigor. Atrás do corpo, há a carne, e é para lá que Cronenberg quer nos levar.

A carne é o que resta do corpo depois que nós o livramos das imagens que o envolvem. Pois a pele do corpo é composta por imagens formadoras. Aprendemos a ver nosso corpo ao compará-lo com a imagem fascinante do corpo do outro, ao tomar tais imagens como nossas. Ser corpo é estar preso ao olhar do outro. Desta forma, instaura-se um universo especular onde eu sou a imagem de um outro e vice-versa. Retornar à inconsistência da carne é, como já nos demonstrava Merleau-Ponty, sair desse registro imaginário onde imperam relações narcísicas tão presentes no tema do duplo. Tema absolutamente recorrente em Cronenberg, vide as relações narcísicas que estruturam Gêmeos e M. Butterfly: filme onde René Gallimard está tão fascinado pelos seus próprios ideais femininos que é incapaz de perceber que os projeta exatamente em um homem.

Assim o movimento geral dos personagens dos filmes de Cronenberg será sempre o mesmo. Eles são empurrados a escaparem do domínio entediante do Mesmo para encontrar uma experiência do Real. Real que aparece sob a forma de acidentes de carro (Crash), suicídio (Videodrome, M. Butterfly), mutação do corpo (A mosca), ou seja, sob as múltiplas figuras da subjetivação da morte. Se quiséssemos glosar o velho Lacan, diríamos que esses personagens procuram escapar da prisão das imagens de seus fantasmas assumindo o potencial liberador da negatividade absoluta da pulsão de morte.

Mas aqui as coisas se complicam. Pois vale para todos aquilo que Cronenberg falou a respeito de Max Renn, o protagonista de Videodrome: "ele quer ir mais longe, alcançar um ‘para além da carne’ através da carne". Ele quer alcançar o Real através de seus fantasmas e nem sempre a operação dá certo. A subjetivação da morte, ao invés de ser um experiência de descentramento radical que permite ao sujeito emancipar-se dos fantasmas que o colonizam, transforma-se em um fantasma masoquista ainda mais aprisionador. O sujeito continua preso, dizendo tal como Catherine Ballard, a loira perfeita de Crash: "Maybe the next one, baby!". Talvez o gozo venha da próxima vez.

E assim Cronenberg constrói a tragédia do sujeito contemporâneo. A tragédia daqueles que devem aprender a flertar com a morte e suas figuras para alcançar a liberdade possí vel.

Vladimir Safatle

Volver al sumario del Número 13
Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 13 - Julio 2001
www.acheronta.org