Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Um dos centros de "Central do Brasil":
A busca do pai e daquilo que ele constitui
María Lucía Homem

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Quando vi o filme pela primeira vez, saí com uma sensação muito nítida: é um filme sobre o pai. Sobre o Brasil, sem dúvida; sobre o cinismo nos atos e relações, com o qual se convive cotidiana e alienadamente - e a possibilidade de sua quebra; sobre uma mulher, amarga, que se transforma com e através de um menino; sobre esse menino, que ainda espera algo, apesar do desencanto; sobre um país e seu abandono; sobre a central e o sertão do Brasil; sobre quem não tem voz, ou ao menos sobre quem não tem voz/palavra escrita. Mas sobretudo sobre pai: páter, pátria, pai.

Vi Central do Brasil uma segunda vez e essa sensação foi se decantando e se estruturando1: o filme conta a história de um menino que parte ao encontro de seu pai. Nessa viagem, Josué, o menino, tem a companhia de Dora, por ironia ou sabedoria do destino justamente a escrevedora de cartas que prometia a seus clientes que iria colocar essas cartas no correio e não o fazia.

 

Vamos então ao filme, seguindo de forma quase linear algumas de suas cenas.

No início, vemos várias pessoas (vemos de fato seus rostos que nos olham, a nós espectadores do filme) que se dirigem a alguém, que falam a um outro. Percebemos depois que elas estão ditando uma carta. Uma dessas pessoas é Ana Fontenelle, uma mulher que vem falar em nome de seu filho, Josué, ao seu lado. Ela dita para a escrevedora de cartas: ‘teu filho quer te conhecer’. É uma carta ao pai, ausente e distante: ele mora no sertão do nordeste, em endereço não muito preciso. Começa aí a saga que o filme retrata: o herói, um menino, em busca de seu pai, tanto o pai real e imaginado quanto o pai simbólico, aquele que transmite o nome (lembremos que Josué responde sempre ao ser perguntado ‘como se chama’: Josué .... X Y, X por parte de mãe, Y por parte de pai) e ocupa uma posição fundamental e fundante na estrutura familiar.

Mas essa questão sobre o pai vai se complexificando. Ao entrar na casa de Dora (casa que estava vazia e com as luzes apagadas, ou seja, de uma pessoa que mora sozinha), Josué logo pergunta: "você tem marido?". Você é casada, você tem filhos, você mora com alguém? Ele quer saber não só do pai e da relação pai-filho, mas da família e suas inter-relações. Relações entre pessoas que constituem o grupo familiar e determinam sua especificidade estrutural: a de ser a união entre um homem e uma mulher, não uma união qualquer, mas com o potencial de gerar frutos; em suma: casal e filhos.

Josué continua com essa questão - sobre a família e a paternidade - ao longo do filme. Por exemplo, no ônibus que os leva para Caruaru, ele olha os outros passageiros e, fixando um deles, pergunta para Dora: "você acha que aquele cara ali é pai?" A pergunta, então, passa a se dar em um duplo sentido: um menino está viajando para conhecer o seu próprio pai, ele quer saber como é o seu pai; mas também quer saber o que é um pai. E se outras pessoas, outros homens, encarnam essa função.

Nesse sentido, o que vemos se delinear é a busca de um pai simbólico e a configuração da função paterna. "Aquele cara ali é pai, eu acho, ele ‘tem cara’ de pai". É como se a pergunta, dupla, pudesse ser formulada assim: que cara tem meu pai? E que cara tem um pai? É uma questão básica, que todos fazemos no processo de construção de uma identidade - pessoa de qualquer sexo, qualquer cultura, tendo vivido qualquer história. No entanto, é uma pergunta ainda mais urgente e concreta para inúmeros meninos desse Brasil tão grande que moram em cidades maiores ainda, como Rio e São Paulo, e que na maioria das vezes nem sequer conheceram esse ser quase metafísico que é o pai que vive com seus filhos.

Há uma espécie de embate entre a idéia de pai de ambos os protagonistas: Josué idealizando-a e Dora destr uindo-a. Dora fala explicitamente a Josué, tentando alertá-lo para a verdade: "teu pai é um bêbado, menino!" Diz isso espelhada em si mesma, no que ela própria selecionou de sua história com seu pai. Mas Josué não aceita assim tão fácil essa desmistificação e responde ‘atacando’: "você é mentirosa, por isso você não casou". Josué aponta em Dora o que ela própria esqueceu de notar: ela mente, ela é amarga, ela ficou feia.

Surge aí então um outro ponto abordado de várias formas no filme: a relação homem/mulher. O esperado é o casamento; e se ele não ocorre, surge a pergunta, reiterada por Josué: por que não? Dora não teve nem marido, nem filhos (e nem mesmo pai, poderíamos dizer). Mas ela se defende: "E nem a Irene, com toda aquela pintura na cara, não casou". Isto é, a pergunta permanece: por que há mulheres que não se casam, que não encontraram ou não foram encontradas por esse homem, pai em potencial? Talvez por primeiro ser necessária, seguindo uma lógica psíquica, uma "reconciliação com o pai", pai simbólico. Tanto a mulher quanto o homem devem ter elaborado seus conceitos do que é ser homem, ser mulher, e conseqüentemente as funções paterna e materna. Aí enfim pode surgir uma família, estrutura na qual está implícita uma aceitação dessas funções e onde se "aceita " esse desígnio: ter sido filho, ser pai, gerando outro filho, num ciclo de vida constantemente renovado.

O filme segue apontando nessa direção, por vezes sutilmente, através de ‘epígrafes’ que se colocam no meio do texto. Uma delas é a frase pintada na parede de um desses bares de beira de estrada, que compõem o cenário básico de um momento do filme: "Aqui trabalha minha família para servir a sua". Há diversos valores imbutidos nesse átimo de uma cena: o trabalho, a família, a troca; valores que inclusive perpassam toda a trama. Um outro exemplo é o de um trecho quase no final do filme (e muito sutil, que passa quase despercebido): na Vila do João, no ponto de ônibus, havia também uma mulher esperando o ônibus chegar. A primeira pessoa a descer dele é um homem, que a cumprimenta e os dois seguem juntos, formando um casal. Como esse, há outros mini-momentos em que o pareamento homem-mulher se dá de forma rápida e discreta.

Nessa linha de argumentação, que tem como fio condutor a identidade do sujeito, passando pela elaboração da função paterna e de família, tem-se um trecho fundamental no filme: aquele em que Dora e Josué encontram em sua viagem o caminhoneiro. Eles formam um trio: um homem, uma mulher e um menino que não se conheciam anteriormente. Em uma dada cena, os três estão na mesa de um restaurante, na beira da estrada, e são vistos pela garçonete como uma família. Ou seja, é o olhar do outro que nomeia esse agrupamento de pessoas como a estrutura de uma família. Pela primeira vez no filme, e na história de cada um deles, desempenharam esses papéis. A garçonete recolhe o pedido de cada um dos adultos e, dirigindo-se ao menino, diz: "e pro seu filho?". Surge um momento de silêncio, fica-se entre a surpresa e o incômodo do mal-entendido. Nem o ‘pai’ nem a ‘mãe’ conseguem esboçar alguma reação, é o menino que assume o lugar de filho e simplesmente responde: "um guaraná".

Nesse momento, todas as relações simbólicas e afetivas entre os três se alteram. Dora toma sua cerveja e faz o caminhoneiro beber, coisa inusual para ele. Ela diz para o menino: "vai brincar", isto é, vai se divertir, me deixa aqui sozinha com ele. Surge nela uma vontade de conquista, um desejo por aquele homem. Há tanto tempo não tocava em ninguém... Assume ao mesmo tempo uma nova postura de mãe (indiretamente, por ter sido confundida com uma) e de mulher. Pede licença a César e vai ao banheiro, arrumar-se, fazer-se bonita. Até pede emprestado o batom de uma moça. É uma das cenas mais poéticas do filme: Dora aprende a se enfeitar para um homem. E sai da toilette numa quase euforia, contente. Qual não é sua surpresa ao ver que o homem partira. Ela vê somente o seu caminhão se afastando. E a cena se dá toda no silêncio, elemento aliás importante no filme, que aponta para um excesso de emoção que nem a palavra pode dar conta.

Pela primeira vez Dora chora. O sentimento renasce, tanto o desejo (por um homem) quanto sua frustração. É Josué quem ajuda Dora a elaborar a cena, tirando-a da experiência mais real e colocando-a num plano simbólico. Ele mesmo pergunta e responde: "Por que o César foi embora? ... Ele tem medo... Ele é homem veado, né?". Frente ao desejo de uma mulher, esse homem ficou assustado: com medo de se ver enredado nas malhas desse desejo? Com medo de querer também? Dora já podia olhar o outro, estava imersa na aprendizagem de olhar efetivamente para o outro, com sua especificidade, e desejá-lo. Mas não César: ele ainda estava preso no rígido esquema no qual estruturou sua vida e que, inclusive, já tinha sido anteriormente revelado: sua sina era a estrada. Josué, logo na primeira carona, entrando no caminhão, lhe havia feito sua pergunta de praxe: "onde é que tu mora? e a tua mulher?" Ou seja, ao ver um homem, imediatamente Josué lhe questiona sobre a mulher. Ao que esse homem lhe respondera: "Minha mulher é a estrada. Eu não tenho família". Não tem e não terá.

Mas a viagem continua. Depois da carona com o caminhoneiro, Dora e Josué tomam um ônibus que pára numa região entre inóspita e acolhedora: uma montanha toda feita de pedras com uma pequena capela branca. É aí que se realiza o luto simbólico da mãe de Josué: pela primeira vez o menino reconhece a morte dela, ao mesmo tempo em que reafirma seu amor pelo pai, mesmo distante, mesmo desconhecido. Relação entre pai e filho que se constrói através da mãe e das histórias que esta contava sobre o pai: "Minha mãe sempre me dizia que meu pai ia me mostrar o sertão". Ou seja, essa ligação se mantém via linguagem, já que via concreta não havia sido até então possível, uma vez que o menino não convivia com seu pai. E não é por isso que tal relação deixa de existir. Josué a reitera continuamente ao longo do filme, mesmo, e talvez por isso, contrapondo-se a Dora. Diz ele: "Eu gosto do meu pai". Ao que ela afirma, seca e desiludida: "Teu pai não é quem você está pensando".

Há outros momentos em que os dois conversam sobre "seus pais", sobre o pai de Josué, sobre o pai de Dora. É aí que percebemos que não somente Josué está às voltas com essa questão, mas também Dora, e podemos pensar que justamente por esse motivo eles tenham podido fazer essa viagem juntos: ambos irão reconstruir a relação que tinham com a figura paterna. Quando Dora e o menino estão à procura da Rua F, volta a haver um diálogo sobre o assunto. Eles conversam sobre a lembrança do pai: "Tem hora que lembro, tem hora que desmancha na minha cabeça". E só nesse momento Dora conta o cerne da história sobre seu próprio pai: a mágoa por ele não a ter reconhecido e ainda por cima ter confundido com alguma outra mocinha por aí. Que aliás é a ferida básica: o não reconhecimento enquanto filha, o que imediatamente implica na "não existência" ou anulação da figura de pai, uma vez que essa relação (pai/filho) apóia-se basicamente na lógica do mútuo reconhecimento.

E então se dá o diálogo quase definitivo entre eles. Josué pergunta: "Ele [o pai] não vai voltar mesmo não? " Dora nega. Mas Josué insiste: "Eu vou esperar ele". Ou seja, vemos Josué reafirmar sua posição ´a favor´ pai, bancando o lugar do filho que espera pelo pai, até o fim.

E o interessante é que isso se dá antes da cena redentora da imagem do pai de Josué, estrategicamente mantida em suspense até o final. Somente aí, quando Dora lê a carta do pai, nos é revelada sua integridade e sua existência enquanto pai, enquanto homem que assume o lugar de pai na família. E que de fato havia partido em busca da mulher, Ana Fontenelle, que ficara no Rio de Janeiro. Eis as palavras (chaves) do pai: "Me espera que eu volto. E aí vai ficar todo mundo junto." A família unida.

No entanto, tal união da família não se dá no interior do filme, ela é postergada, colocada no a pos teriori implícito construído por seu final. Mas poderíamos destacar dois momentos em que essa estrutura aparece: há duas cenas mais claramente ´familiares´: a primeira já foi discutida - a ´família nuclear´ almoça, Dora, Josué e o caminhoneiro, interrompida porém pela "fuga" de César que parte na companhia de sua mulher ´a estrada´. A segunda é uma imagem, que inclusive é a imagem que fecha o filme: a foto de Dora com Josué, tendo ao fundo uma figura paterna, Padim Ciço - foto do trio sagrado e fixado num momento de alegria.

 

Até aqui a discussão sublinhou a figura do pai simbólico enquanto aquele que transmite um nome e funda uma família. Há ainda um outro eixo da função paterna: pai é também aquele que impõe limite, estabelecendo uma ética. Pai é também o operador dos limites impostos pela lei, aquele que organiza e estrutura as vivências e as relações que de outra forma seriam ou caóticas - numa vertente anarquista - ou corruptas - numa vertente perversa (que aliás se deixam ver, e de forma não sutil, neste país).

Central do Brasil marca uma posição bastante nítida em relação a esse ponto de construção de uma nova ética, que questiona a corrupção, o cinismo e a decorrente passividade que norteia a maioria dos personagens para propor uma nova forma de se situar frente ao outro : ‘humanista’ e onde haja o resgate do afeto que se perdeu no meio do caminho. Isto é retratado no enredo básico do filme, com a história principal e seu desfecho, e também nas tramas paralelas, onde são sublinhados pontos problemáticos e "a-" ou "antiéticos": o fato de Dora não enviar as cartas, quebrando o contrato de trabalho que estabelece com seus clientes; a propina que se paga para o controlador de certa área da estação Central do Brasil; o desrespeito sistemático à lei; a questão do tráfico de crianças (e/ou órgãos) entre países pobres e ricos, etc.

Eu sublinharia, no entanto, somente duas cenas paradigmáticas dessa questão: uma em que a lei passa completamente ao largo da ação, e outra na qual tal lei se enuncia. A primeira logo nos vem à memória, para quem viu o filme: a do cru, curto e grosso assassinato do jovem que furta um walk-man de uma das barracas de ambulantes na estação de trem, que, como se sabe, é uma alusão a uma situação verídica que ocorreu na saída do shopping Rio Sul. A morte passa a ser a solução mais rápida, que funciona como curto-circuito ao lento e por vezes ineficaz funcionamento da lei (juridicamente falando).

A segunda cena é uma cena fundamental, que eu colocaria inclusive como um dos pontos de inflexão do filme: Irene diz a Dora, quando esta assume que ‘vendera’ Josué: "tudo tem limite". Essa é uma fala básica: a lei é justamente o que vem colocar limites e enunciar as regras que delimitam (e limitam) a ação. Ou seja, nem tudo é possível, e mais: nem tudo é permitido. E essa frase reverbera continuamente ao longo do filme: é a música de fundo quando Dora fica parada olhando a agência do correio e por fim se decide a enviar as cartas que lhe foram confiadas, que ela desta vez não tinha rasgado, mas guardado numa sacolinha de plástico, espécie de purgatório que se move com ela à espera de uma decisão. Isto numa pequena cidade do sertão nordestino, quando Dora novamente exerce a função de escrevedora. E desta vez a decisão veio de uma mulher pautada por novos referenciais éticos, que é também uma das histórias contadas pelo filme.

E essa nova ética só foi possível porque também Dora ressignificou a imagem de seu pai e com ela os padrões de atitude frente à lei. Seu pai, de um bêbado imprestável e amoral passou a ser alguém que em algum momento pôde ocupar uma posição paterna: aquele que lhe pôs no colo ao dirigir um trem e de quem ela pôde sentir falta.

É a cena final do filme: vai se afastando pela rua, pela primeira vez sob um fundo de céu azul (e não cinza ou sob espaços fechados mostrados na cidade grande), uma mulher, de batom, de vestido, nas vias de reconciliação com seu desejo, sua feminilidade e a nova idéia de pai e homem que a sustenta: "Tenho saudade do meu pai, tenho saudade de tudo".

Mas essa elaboração ou "reconciliação" com a figura do pai, e mais amplamente com as funções materna e paterna, não é tão simples. E o filme lida de forma estratégica com esse ir-e-vir do ideal paterno, entre sacralizado ou destituído de sua posição (deus ou diabo, talvez, seguindo a mitologia ocidental de forma mais ampla): nunca sabemos se o pai de Josué existe mesmo e se é ou não um "homem de bem" digamos, isto é, se aceita ou não essa posição de ser pai. O filme protela o encontro de Josué com seu pai até o último momento, chegando ao paradigma estruturante da história: esse encontro não se dá (e, dependendo da interpretação de cada leitor da obra aberta que é o filme, talvez se dê algum dia, talvez nunca). De qualquer forma, podemos dizer que esse encontro pai-filho mantém-se em suspense até o final, sendo ao mesmo tempo o ponto de fuga da narrativa, aquilo para o qual ela caminha, e sua base fundante, aquilo do qual ela parte. Entre um extremo e outro vai-se operando uma oscilação entre os dois pólos encarnados pelos personagens Josué e Dora, idealização versus aniquilamento da função paterna, que finalmente alcança um ponto de equilíbrio. E aí então se pode construir um novo pai, humano. E assim uma família possível.

Dora é uma nova pessoa, e esse processo se fez também via Josué. Ela ocupa agora uma nova posição de filha, o que implica também uma nova posição enquanto mulher, no vestido que Josué lhe havia dado ("Vou te dar esse vestido de presente. Você vai ficar muito mais bonita com esse vestido") e usando batom. Ela resgata, dessa forma, a possibilidade de olhar para o outro e de interagir fraternalmente com ele; Dora e Josué são, afinal de contas, amigos e quase irmãos nessa longa viagem às voltas com a imagem do pai - nesse sentido, ocorre um deslocamento de significação ao longo da narrativa: o filme opera via pai, páter, pátria mas também frátria.

Enfim, não há somente um menino e uma mulher em busca de seus respectivos pais, com cujas imagens entram em contato ou se reconciliam, mas em busca do conceito de pai: no que isso tem de instaurador de uma família, com a posição de pai, de mãe e de filho; e de construção de uma ética, situando os limites que norteiam o ato segundo uma lei.

Notas

1 Estruturação apoiada em trechos do filme e também no interessante debate que se seguiu - com o diretor e espectatores atentos - e fez circular idéias e visões que de alguma forma alimentaram este texto.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 12 - Diciembre 2000
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