Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Plagio
Sobre o uso crítico da psicanálise
(a propósito da desleitura de Freud)
Ricardo Goldenberg

 

I

C’e una voce nella mia vita
Che avverto nel punto que muore
Voce stanca, voce smarrita,
Col tremito del batticuore
Voce d’un’accorsa anelante
Che ai poveri labbri si tocca
per dir tante cose e poi tante
Ma piena di terra ha la boca

GIOVANNI PASCOLI

Depois de Kant, a grande tentativa de sistematizar o sujeito da modernidade foi a Metapsicologia freudiana. Do seu conhecido "aparelho psíquico" me interessa mencionar o Super-eu, especialmente para poder falar da voz. O termo Über-Ich foi introduzido por Freud em 1923 1 para dar conta da consciência moral. Na ocasião, o descreve como uma instância diferenciada do Eu que parece tomar conta dele. Kafka, que morreria no ano seguinte, já escrevera sobre "uma natureza que trabalha com a modalidade do vento sem nenhum sentido aparente, segundo longínquas ordens que não se tem o direito de examinar." 2

Não há qualquer inatismo em Freud e também o Super-eu é uma construção. Sua formação é correlativa do declínio do Édipo: a criança renuncia à satisfação de seus desejos incestuosos, marcados pela interdição, e transforma seu investimento libidinal nos pais em identificação com eles, interiorizando assim a interdição. A voz tem uma importância fundamental nesta operação. "O Super-eu não pode negar que, tanto como o Eu, encontra sua origem em coisas ouvidas [...] A energia do investimento, entretanto, não é fornecida a esses conteúdos do Super-eu pela percepção auditiva, a educação, a leitura, mas pelas fontes do Isso." 3 Por outras palavras, a proibição, que uma voz carrega, pode tornar-se uma modalidade de gozo para o sujeito. Mais tarde, quando o conteúdo das proibições não tiver já qualquer importância, restará a voz, viscosa, ainda prendendo o neurótico.

Ainda sem ter esse nome, o futuro Super-eu aparece ligado à fonia, ao som produzido pela voz humana, já desde 1895. No póstumo Entwurf, Freud imagina o recém-nascido reduzido à imanência da informação visceral, devido ao incremento incessante de tensão produzido pelas necessidades vitais. O grito de dor que tal estado provoca, embora reflexo no começo, será o único sinal com qualidade suficiente (o aperto é pura quantidade de estímulos) para abrir as portas a uma transcendência possível da sede, da fome e do frio. O bebê ouve seu próprio choro como vindo de fora marcar aquele mal-estar difuso. O grito, a voz à solta, dará à urgência vital —Not des Lebens— uma espécie de "objetividade", menos por si mesmo que pelo fato de induzir o semelhante a agir em proveito do infans abandonado. Nada mais seu que esse som que lhe escapa do fundo do peito e, no entanto, nada mais alheio. Tornado apelo pela resposta recebida, o grito introduz a dimensão da alteridade. Freud nunca abandonaria esta intuição inicial, a saber, que o único elemento comum às experiências originais da dor e da satisfação, no recém-nascido, é o grito enquanto fonia. Sinal do desamparo radical da criança, o grito instaura ao mesmo tempo a onipotência do outro absoluto de quem ela depende. O grito "encorpa" esta arbitrariedade pura, raiz, segundo Freud, de todas as motivações morais. Nossa "voz interior" merece ser qualificada de unheimlich, e ainda que possa ser reconduzida, empiricamente, a uma origem no exterior (minha voz ao telefone é indiscernível da de meu pai, por exemplo) também se pode dizer que a voz abole a distinção entre um dentro e um fora. Se for verdade que uma imagem vale mil palavras, para resumir o anterior vale mostrar uma das antigas etiquetas dos discos da RCA (que, por falta de scanner, passo a descrever: o cachorro sentado na frente da victrola, com a cabeça inclinada em muda interrogação, sobre uma legenda que diz: his master’s voice).

"A angústia de influência", observa Arthur Nestrovski (a propósito de uma tese de Harold Bloom, que examinaremos a seguir)-, "é o temor do poeta de que sua voz não seja sua, o temor constante da usurpação de seu texto pela voz dos outros." 4 Como surpreender-se que o poeta, ao tornar-se autor de si mesmo —sonho moderno— , esteja assombrado pelo retorno virtual da voz do Outro no seu texto? A angústia de influência é a sensação do poeta (e de qualquer um) de his master’s voice, que não se confunde com suas mensagens, como nos lembra a figura do cachorro de agora há pouco. Sensação que remete o poeta, a cada novo trabalho seu, à origem do sujeito que ele é, e que experimenta como parasitação pela voz do outro poeta, o precursor.

Duvido que os poetas da antigüidade clássica, conhecendo o lugar das musas, experimentassem qualquer angústia de influência. A criação e a originalidade são questões modernas, assim como a prioridade e o plágio, seus subprodutos. E podemos ir ainda mais longe: embora a procriação não seja precisamente uma novidade no mundo, a paternidade, como a conhecemos hoje, como um problema subjetivo, é uma invenção moderna. A orfandade anunciada por Nietzsche transforma o pai, cujo lugar estava antigamente previsto na ordem do mundo, numa incumbência do filho. Estamos divididos entre o desejo de ter um pai e o de sê-lo. Nenhuma das duas posições está garantida. O plágio, a apropriação indevida da obra de outrem —a usurpação de seu nome, ou, antes, o seu apagamento por trás do nosso—, reflete a condição estrutural do sujeito moderno. E a literatura deve ser seu campo de expressão mais fecundo, mas dificilmente o único 5.

 

II

"Plagiarism is a legal distinction, not a literary one."

HAROLD BLOOM, The Western Canon

É neste ponto que desejo iniciar um diálogo com a idéia de que somos, de certo modo, criaturas shakespearianas; ou —o que seria o mesmo— que o Bardo foi nosso "criador" enquanto sujeitos da modernidade. Tese elegantemente defendida por Harold Bloom e retomada, com não menos elegância, por Arthur Nestrovski, ao tratar da ironia. A representação que temos de nós mesmos, segundo esta tese, teria sido "inventada" por Shakespeare e codificada três séculos mais tarde por Freud: "Para nós, uma das maiores dificuldades em ler Shakespeare é, paradoxalmente, que não parece haver dificuldade. Sua originalidade já se transformou na nossa própria condição, e não é mais percebida como tal. Shakespeare inventa as formas modernas de pensar a representação e sua influência é tão disseminada a ponto de se tornar invisível. Se boa parte de sua obra parece apenas dramatizar o que já se sabe, é porque esse ‘o que já se sabe’ talvez não passe de uma outra forma de reencenar Shakespeare, em nossos afetos e em nossas certezas." 6

Creio que se existe alguém de quem se pode dizer que superou a angústia de influência, este foi Cesar Paladión, de cuja originalidade radical nos fala o crítico e literato argentino H. Bustos Domecq:

Antes e depois de nosso Paladión, explica Domecq, a unidade literária que os autores recolhiam do acervo comum, era a palavra ou, no máximo, a frase feita. Apenas os centões bizantinos ou dos monges medievais alargam um pouco o campo estético, recolhendo versos inteiros. Já em nossa época, Pound insere um apreciável fragmento da Odisséia em um dos seus Cantos e é bem conhecido que a obra de T. S. Eliot contém versos de Goldsmith, Baudelaire e Verlaine. Paladión, em 1909, já tinha ido mais longe. Anexou, por dizer assim, um opus completo, Los parques abandonados de Herrera y Reissig [...] Paladión outorgou-lhe seu nome e o entregou para ser impresso, sem tirar nem pôr uma só vírgula, norma à que sempre foi fiel. Estamos assim frente ao acontecimento literário mais importante de nosso século: Los parques abandonados de Paladión. Nada mais remoto, com certeza, do livro homônimo de Herrera, que não repetia um livro anterior. 7

H. Bustos Domecq saúda em Los parques abandonados de Paladión o primeiro ready made literário. Paladión, nos diz ainda o crítico, mergulhava na sua alma à procura de um livro que a refletisse como um espelho, e ao encontrá-lo publicava-o firmado com seu nome, "sem incorrer na fácil vaidade de escrever uma só linha."

Que melhor anfitrião poderíamos desejar para apresentar a tese de Bloom de que "os poetas fortes fazem a história deslendo-se uns aos outros, de maneira a abrir um espaço próprio de fabulação" 8? Todo texto, segundo o crítico americano, é uma leitura de outro texto, cuja finalidade é livrar-se da influência deste último, fingindo ser, ao mesmo tempo, o ponto de origem. O que Bloom denomina "angústia de influência é a sensação paralisadora que todo poeta tem do precursor [...]" 9 Literatura é influência, e o poema é menos um objeto que o resultado da leitura (errada) de poemas e poetas anteriores. Leitura errada (misreading), note-se, de nenhuma leitura certa. Só um Paladión, reescrevendo ipsis literis o texto do Outro, leria bem. Leitor sonhado, que aboliria a ironia junto com o mal-entendido. Seria, também, o mais frustrante, ao não devolver nada ao autor, além da réplica muda de si mesmo, duplo mortífero. Qualquer outra forma de ler será uma tradução, isto é, uma traição, em que as marcas desejantes do leitor terão alterado sem remédio o texto lido.

Mas fazer da "leitura errada" um conceito implica em reter o movimento —do qual a tradução brasileira do livro de Bloom dá bem conta, ao transformar misreading em desleitura 10— que faz da leitura certa, adequada ao que o autor "quis dizer", um mito ou um ideal. Um romance, em suma, do leitor:

As profundezas da influência poética não podem ser reduzidas ao estudo das fontes, ou à história das idéias, ou aos padrões da figuração. A influência poética ou, como prefiro, a "desapropriação" [misprision] 11, é necessariamente o estudo do poeta-como-poeta. Quando um tal estudo se propuser considerar, também, o contexto em que se passa esse ciclo vital, será compelido a examinar as relações entre poetas de uma só vez como casos equiparáveis ao que Freud denomina de romance familiar [...] 12

O que Freud denomina de "romance familiar" é o modo como o sujeito, mediante um mito pessoal, diz o que não pode ser dito sobre ele e sua origem. Este momento de "escrita" do indizível é o momento no qual o paciente inventa seus ancestrais, cria seus precursores. Uma das características do romance familiar do neurótico é que se organiza em torno de um ponto fixo. O "texto" mesmo cria o contexto para fazer existir tal centro. Esta busca de um ponto imóvel de referência é uma constante, também, na história da humanidade. 13 Não me atreveria a afirmar que se trata de uma lei, mas com muita freqüência o ponto buscado se encontra fora do horizonte do romance, como seu ponto de fuga. O não dito, aquilo que foi omitido —e que pode ser recolhido na análise como metáfora do que Freud denominava Unnerkante, o impossível de ser reconhecido—, revela ser o cerne e a fundação da subjetividade de quem nos fala. Um elemento da história da família foi sonegado e brilha pela sua ausência, assinalando o lugar vazio em função do qual se elabora o romance familiar.

Shakespeare, para Bloom, ocupa este lugar ao mesmo tempo central e excluído. "O maior poeta em língua inglesa está excluído deste livro por diversas razões. Uma delas é necessariamente histórica: Shakespeare pertence à gigantesca idade antes das águas, antes da angústia de influência tornar-se um componente central da consciência poética [...]" E, mais adiante: "Shakespeare é o maior exemplo em língua inglesa [...] da absoluta absorção do precursor." Em suma, Marlowe, antecedente literário do Bardo, é tão inferior que não conta como pai. Para todos os efeitos Shakespeare é, literariamente falando, causa sui, precursor dele mesmo. E, claro, pai de todos.

 

III

O Shakespeare de Freud de Bloom

"Freud is essentially prosified Shakespeare"

HAROLD BLOOM, The western canon

A ironia, condição da modernidade, é uma qualidade da linguagem quando se vê como tal 14, ou seja, quando ela mesma reconhece estar entre o mundo e nós, como um muro —que nunca será derrubado, a não ser em sonhos (eles também feitos de linguagem). Digamos da literatura que ela é a vida em cima do muro; e da literatura moderna, que toma o muro por tema, tornando-se irônica.

Na linguagem o mal-entendido é a regra, e a invenção (o termo me parece mais pertinente que o de "descoberta") freudiana do inconsciente começa com a proposta de que o locutor aproveite o desentendimento, não para corrigi-lo, como faria na vida cotidiana, mas para descobrir de que modo aquilo que aconteceu, o equívoco, lhe concerne.

Como observa Leda Tenório da Motta, quando compara Freud e Proust 15, "[não] cabe falar de lapso ou erro mas, pertinentemente, de estilo: a conceituação lingüística de ‘estilo’ consistindo precisamente no caráter produtivo do erro". Eu iria mais longe ainda, notando q ue Freud inventa uma relação inédita com a linguagem, que lhe permite fazer da estética uma ética. O sujeito se reconhecerá no lugar mesmo do equívoco, na diferença entre o que ele sabia do que pretendia dizer e a verdade do que disse. Caso se limite a gozar com palavras de sua divisão de sujeito —"[da] tensão entre o nem totalmente apagado e o nem totalmente confessado" 16—, o prazer estético estará a serviço da censura. Rimos juntos para esquecermos melhor o que ali se disse, para que tudo continue igual na economia libidinal da neurose, evitando-se arranhões no narcisismo. Mas se isso nem sempre é possível na vida cotidiana, na psicanálise é um dever que assim não seja. O caráter produtivo do erro não é, portanto, só estético, mas também ético.

Sem isso, sem a dimensão do ato que está latente no ato falho, a psicanálise agoniza, se não estiver já morta, como escreve Bloom:

Obviamente estou aqui discutindo Freud como escritor, e psicanálise como literatura. Este é um livro sobre o Cânone Ocidental do que, em épocas melhores, chamávamos literatura imaginativa, e a grandeza de Freud como escritor é seu verdadeiro feito. Como terapia, a psicanálise está morrendo, talvez já esteja morta: sua sobrevivência canônica deve estar naquilo que Freud escreveu. 17

O que Freud escreveu, contudo, seja qual for sua importância para as letras ocidentais, está a serviço do dispositivo que permite aquela relação nova com a linguagem a que me referia acima e que proponho denominar discurso do psicanalista. Como discurso, a psicanálise não consiste propriamente no intercâmbio entre os parceiros das sessões; não se trata tanto do que ali se diga ou cale, quanto do engajamento de ambos na dimensão ética das formações que o inconsciente venha a produzir durante e entre os encontros. Freud faz Hamlet comparecer para dizer isso 18: "So conscience doth make cowards of us all". A consciência (moral) é a covardia —apelidada de censura, primeiro e de recalque, depois— do sujeito que opta por se manter na ignorância do desejo inconsciente que se realizaria no seu ato. A coragem, daquela covardia, é fazer da estética das formações do inconsciente uma ética 19.

No seu tratamento de Freud, Bloom não disfarça o mal-estar que o induz (único lugar no livro sobre o Cânone) a tomar como leitura errada uma desleitura. Leitura a ser corrigida pelo crítico, em franca contradição com o princípio do conceito que ele próprio inventara, de que não existe outra leitura que não a desleitura. Lemos ali que defrontar-se com "a peculiar ruindade do segundo parágrafo" —trata-se do que Freud tem a dizer sobre Ofélia—, o fez blink and wince (como traduzir isso?) "quando tomado como uma leitura de Hamlet." Meu itálico sobre a questão. A meu ver Freud não está lendo Hamlet mas abusando dele (se se prefere), antes como pretexto que como texto, para construir laboriosamente a psicanálise. Usurpando os conceitos de outras disciplinas, garimpando a Kultur, Freud inventa uma disciplina nova. A novidade não está, entretanto, na teoria sobre a psique mas no discurso que Freud introduz na Kultur e que não existia antes dele, o do analista. Modo inédito de resposta à palavra do outro. Nada mais, nem menos.

Nem Sófocles interpreta Shakespeare, nem Hamlet interpreta Freud, como quer Bloom. Tanto "Édipo Rei" como "Hamlet", como, por outra parte, o "aparelho psíquico" da metapsicologia, são metáforas para cercar o mesmo real: a estrutura do sujeito como efeito do encontro entre o corpo e a linguagem. No caso de Hamlet, a apropriação indevida está a serviço, junto com Moisés, Édipo, Leonardo da Vinci, Darwin e alguns outros, da elaboração da função paterna, uma das molas mestras da psicanálise. Freud anexa tudo que precisa para determinar o alcance desta função do pai na constituição da subjetividade e na psicopatologia. Não se trata, todavia, de "explicar" a paternidade (explicação que vale tanto quanto qualquer outra: histórica, sociológica, antropológica), mas de produzir um acontecimento —no sentido de Kant: Begebenheit— no discurso dos que passam pela experiência da psicanálise. Acontecimento depois do qual aquela covardia de que faláramos acima não será mais possível.

Bloom, contudo, considera intolerável a expropriação (misprision) freudiana de Shakespeare. Considera-a indigna da estatura de um escritor merecedor do prêmio Goethe de literatura. Por quê? Será que ele se soma à legião dos que mostram que Freud estava enganado em quase tudo, mas mesmo assim era um gênio 20? Provavelmente, não. Bloom se ressente com o fato de Freud renegar seus deveres filiais com respeito a Shakespeare, porque fez deste último o ponto de origem e o motor imóvel da subjetividade ocidental: "[a] autoridade oculta de Freud, o pai que ele não reconheceria." 21 Ou: "esta é a velha estória da influência literária e suas angústias, Shakespeare é o inventor da psicanálise; Freud seu codificador. Porém desler as obras de Shakespeare não era suficiente para Freud; ele tinha mesmo que expor o ameaçante precursor ao ridículo, dispensá-lo e escorraçá-lo." 22

Não que a análise crítica do Shakespeare de Freud esteja errada. Não está. É uma leitura tão instigante quanto cuidadosa e bem documentada. Se Freud lê mal o Poeta, Bloom lê Freud muito bem. A questão é: qual a sobrevida de Freud fora do campo que ele fundara? A psicanálise, e nisso concordo inteiramente com Bloom, não tem nenhuma; ela se torna inócua fora de seu campo. Arriscaria dizer que sem o contexto fornecido pelo discurso do psicanalista, a desleitura freudiana de Hamlet perde seu aço e seu gume. Extraída do discurso que lhe dá sentido, o mesmo que torna possível a psicanálise como experiência, a teoria mesma, que Bloom elogia não pouco enquanto obra escrita, se reduz ao que a vulgata sempre fez do freudismo: um amontoado de clichês.

Bloom bate na porta deste discurso —sem esperar que lhe abram, porquanto está convicto de que não há ninguém em casa—, quando escreve:

Hoje em dia todos acreditamos possuir (ou sermos possuídos por) uma libido, mas não existe semelhante entidade: não existe, de fato, uma energia sexual isolada. Tivesse Freud decidido abastecer a pulsão de morte com destrudo, uma noção que numa época o seduzia, todos nós andaríamos hoje por aí carregando conosco não só nosso complexo de Édipo e nossa libido mas também nossa destrudo. Felizmente, Freud decidiu-se contra a destrudo, mas esse por-um-triz deveria ser instrutivo para nós. Freud, como Wittgenstein advertiu, é um poderoso mitólogo, o maior fazedor de mitos de nosso tempo, digno rival de Proust, Joyce e Kafka como centro canônico da literatura moderna. 23

Uma última palavra. Um verdadeiro mito tem a incumbência desesperada de dizer o indizível. A pulsão (Trieb), por exemplo, que Freud mesmo chamou de "nossa mitologia", é o ponto de articulação entre a res cogitans e a res extensa, livrado por Descartes, literalmente, ao Deus-dará 24. O lugar em que o corpo se anima ou a alma encarna. E o melancólico sabe muito bem que não é "vã filosofia" colocar as coisas nestes termos. Ele conhece melhor que ninguém o significado da palavra "desanimado": corpo abandonado pela Palavra e ao qual nenhuma lei rege, a não ser a de gravitação. É nesta encruzilhada que o enlutado —cuja alma escafedeu-se junto com o morto, deixando-lhe o corpo para trás, como se fosse pedra— encontra a literatura. Porém, das boas metáforas da psicanálise espera-se, como já disse, mais do que uma satisfação estética, espera-se ajuda para levantar da cama.

Notas

1 Os três próximos parágrafos, ligeiramente modificados, foram reproduzidos do meu Ensaio sobre a moral de Freud, Salvador: Ágalma, 1994, pp. 43 e ss.

2 O Castelo, qualquer edição.

3 Assim escreve Freud em O Eu e o Isso, in Obras completas, BsAs.: Amorrortu, vol 19, 1976, p.53 (trad. de Etcheverry).

4 Arthur Nestrovski, Ironias da modernidade, S.Paulo: Ática, 1996, p.115

5 A peça de Strindberg, O pai, é um bom exemplo literário do lugar do pai na modernidade. Nela a paternidade passa a ser uma questão de crença e a se sustentar da palavra do outro que a confirma ou a nega. A peça trata de um marido que se desmonta até a loucura quando sua mulher o lembra que homem nenhum pode ter certeza de ser o pai de seu filho (no caso,trata-se de uma filha). Não seria difícil ver nesta peça uma metáfora da criação artística enquanto tal, especialmente, da relação entre o artista e sua obra. Por outro lado, nas apresentações das coletâneas dos trabalhos de Strindberg (não precisamente escritas por psicanalistas), raramente faltam alusões aos três casamentos desgraçados e à misoginia do dramaturgo. Tampouco deixa de mencionar-se nelas o desejo de Strindberg, que nada tem de inconsciente, de ser reconhecido pelo público como autor (criador, pai), que se realiza na(s) peça(s) publicada(s) e encenada(s): o menino pobre que chegou a ser indicado para o prêmio Nobel, etc.

6 Nestrovski, op. cit., p. 36. Leia-se também, de Harold Bloom: "Shakespeare, Center of the canon" e "Freud: A shakespearean reading" in The western Canon, the books and school of the ages, New York: Harcourt Brace & Co., 1994.

7 Borges e Bioy Casares, "Homenaje a César Paladión" in Crónica de Bustos Domecq, BsAs: Losada, 1992. Nota: H. Bustos Domecq é o pseudônimo com que Borges e Bioy Casares escreveram, durante mais de vinte anos, contos e crônicas satíricas em jornais e revistas de Buenos Aires.

8 Harold Bloom, A angústia de influência, São Paulo: Imago, 1991 (trad. A. Nestrovski)

9 Nestrovski, op. cit. p.108

10 Eu, porém, teria preferido "tresleitura", alternativa sugerida (e descartada) pelo tradutor, precisamente por preservar a dimensão do erro.

11 Novamente, misprision, como a méprise francesa —a cuja raiz etimológica o Oxford Dictionary remete o vocábulo—, acarreta o sentido de engano, equivocação: "erro em ter ou tomar uma coisa por outra" (Petit Robert). O uso moderno do termo se restringe ao direito e se usa para designar aquele que omite informações vitais no esclarecimento de um crime e obstaculiza desta feita o acionar da lei. Bloom, segundo Nestrovski, trouxe o termo do inglês elizabetano, onde teria o significado de expropriação.

12 Bloom, op.cit. p.36

13 Tudo que Umberto Eco escreveu até agora, enquanto romancista, se refere a esta busca incessante do ponto fixo. O nome da rosa trata dele na linguagem; O pêndulo de Foucault, do centro de gravitação da Terra e A ilha do dia anterior, da descoberta da longitude, que possibilita a navegação ao dar aos navegantes a coordenada que faltava para situarem-se nas cartas.

14 Cf. Nestrovski, op. cit., pp.7 e ss.

15 Leda Tenório da Motta, "Comédia freudiana, comédia proustiana" in Catedral em Obras, São Paulo: Iluminuras, 1995.

16 Ainda Leda.

17 Bloom, "Freud: A Shakespearean Reading" in The western canon, op. cit. p. 377

18 Cf. meu Ensaio..., op.cit., pp. 53 e ss.

19 Pelo menos é assim que eu entendo, antes pela minha experiência de paciente que de analista, o Wo es war soll ich werden freudiano. Ibid.

20 Freud não soube ler a Bíblia (o Moisés, baseado em Sellin é um absurdo histórico); não conhece bem a física de seu tempo (a teoria da energia livre e ligada parece uma paródia de Helmholtz), nem a filologia (as "palavras antitéticas primitivas" foram derrubadas por Benveniste); descuida suas fontes históricas (o abutre, sobre o qual baseava a interpretação do romance familiar de Leonardo da Vinci, era, na verdade, um milano) e, além disso, sua antropologia é imaginária (a horda primordial de Darwin). Devemos acrescentar à lista que tampouco soube ler seu Shakespeare direito?

21 Bloom, ibid. p.372

22 ibid.

23 Bloom, op. cit. p. 383

24 O Cogito é a experiência da convicção de que afora a evidência de que sou porquanto duvido (cogito, ergo sum), nada mais é certo. Não tenho como garantir a verdade daquilo que a ciência ensina e os sentidos mostram. O saber se separa da verdade, e no que tange a esta última estamos em absoluto à mercê da boa fê divina, porque se Deus quiser não teríamos como determinar se dois e dois não são de fato cinco. O evangelho cartesiano anuncia duas novas, uma boa e uma má. A boa é que Deus não nos lograria porque Sua perfeição o impede de exercer a maldade contra nós. A má é que não temos como saber se Ele existe. Deus decaído que entra em cena só como conector lógico (tertius comparationis) ligando a mente ao corpo, a res cogitans à res extensa.

 

BIBLIOGRAFIA

Harold Bloom, The western Canon, the books and school of the ages, New York: Harcourt Brace & Co., 1994. A angústia de influência, São Paulo: Imago, 1991 (trad. A. Nestrovski)

Borges e Bioy Casares, "Homenaje a César Paladión" in Crónica de Bustos Domecq, BsAs: Losada, 1992

Sigmund Freud, Obras completas, BsAs.: Amorrortu, vol 19, 1976, (trad. de Etcheverry)

Martial Guerault, Descartes selon l’ordre des raisons, Paris: Aubier-Montaigne, 1956 e reed.

Ricardo Goldenberg, Ensaio sobre a moral de Freud, Salvador: Ágalma, 1994.

Sade, A filosofia na alcova, revisão da tradução Eliane Robert Moraes, Salvador: Ágalma, 1995.

Arthur Nestrovski, Ironias da modernidade, S.Paulo: Ática, 1996

Leda Tenório da Motta, "Comédia freudiana, comédia proustiana" in Catedral em Obras, São Paulo: Iluminuras, 1995.

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