Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Neoliberalismo e Universidade: reflexões sobre a formação na interface psicología/educação
Denise Mancebo - Marisa Lopes da Rocha

 

RESUMO

São muitas as possibilidades de discussão das tensões e impasses que vêm se produzindo na interface psicologia/educação. Privilegiaremos neste trabalho o desafio colocado aos profissionais que tomam este campo de análise e intervenção com o intuito de desenvolver micropolíticas que busquem a afirmação da dimensão pública do exercício da cidadania. Através de análises das políticas de eficiência, produtividade e qualidade total que vêm sendo implementadas na educação superior, pretendemos refletir sobre algumas das conseqüências construídas junto à rede pública de ensino no estado do Rio de Janeiro, entre elas o fechamento progressivo do mercado de trabalho para o profissional de psicologia. Discutiremos, ainda, as atualizações desencadeadas por estas "novas" medidas, considerando o cotidiano da vida universitária no estado do Rio de Janeiro e a própria formação acadêmica do psicólogo. Buscaremos, ao final, levantar alternativas sócio-políticas às práticas de formação, destacando os fatores constitutivos da pesquisa-intervenção.

Palavras-chave: Políticas para a Educação Superior - Formação em Psicologia - Pesquisa-intervenção

ABSTRACT

NEOLIBERALISM AND UNIVERSITY:
REFLEXIONS ABOUT FOMATION IN PSYCHOLOGY AND EDUCATION

There are many possibilities of discussion about the tensions and obstacles that are produced in the interface psychology/education. We will privilege in this work the challenge placed to the professionals that take this analysis field and intervention with the aim of developing micropolitics that search the assertion of the public dimension of citizenship. Through analyses of the politics of efficiency, productivity and total quality that are being implemented in higher education, we intended to contemplate some of the constructed consequences in public schools in Rio de Janeiro, among them the progressive closure of the labor market for the psychology professional. We will discuss, still, the modernizations unchained by these " new " measures, considering the day to day of the university life and the psychologist's own academic formation. At the end, we seek to raise social and political alternatives to the formation practices, highlighting the constituent factors of the research-intervention.

Key-words: Politics for Higher Education - Psychology Formation - Research-intervention

 

NEOLIBERALISMO E UNIVERSIDADE:
REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO NA INTERFACE PSICOLOGIA/EDUCAÇÃO

 

Introdução

O tecnicismo, enquanto pedagogização da vida coletiva, não é um fenômeno da década de 90. O que hoje vivemos sob a designação de "políticas neoliberais" vem sendo gestado ao longo da era moderna, sob a égide do racionalismo cientificista. Este aponta para a autonomia técnica do conhecimento, para a objetividade da ação e para a necessária constituição de categorias e modelos fundamentados em princípios com estatuto de leis naturais, universais, que permitem, no cotidiano, legitimar e ordenar as práticas profissionais nos diversos setores, entre os quais a educação.

No entanto, se podemos localizar aspectos do ideário neoliberal desde longa data, é a partir dos anos 70 que este "novo" rearranjo da modernidade passa a ganhar contornos nítidos e próprios, apresentando-se como uma alternativa política, econômica, social, jurídica e simbólico-cultural para a crise do mundo capitalista. A estratégia política de reforma cultural passa a se constituir numa necessidade global de estabelecimento de um novo sentido comum às sociedades, fornecendo coerência à vida social e legitimando propostas e fórmulas técnicas, elaboradas, quase sempre, num registro economicista e pretensamente neutro para a melhoria da qualidade institucional e, mais particularmente, da educação.

As estratégias neoliberais, enquanto medidas radicais para a crise do capitalismo, só ganham visibilidade, no Brasil, a partir da nossa década, com as medidas de enxugamento econômico, redução de gastos no setor público, desregulamentação visando ao não-intervencionismo estatal no mundo dos negócios, subordinação às exigências internacionais de globalização da economia. Em decorrência deste receituário mais geral, assistimos à retração financeira do Estado na prestação de serviços sociais, incluindo educação, saúde, pensões, aposentadorias, dentre outros.

Na educação, as políticas neoliberais vêm sendo direcionadas, ainda, para despotencializar as lutas através das quais muitos agentes resistiam e procuravam privilegiar o espaço público como palco de negociações e reivindicações dos direitos individuais e coletivos. A perspectiva do ideário neoliberal na ordem da produção educacional e cultural se circunscreve na modificação dessas bases que representavam um relativo consenso, para legitimar os princípios ligados à empresa, ao lucro e à competitividade. Deste modo, no campo educacional, mas também em outras esferas da sociedade, a ética pública vem sendo gradativamente desmontada em função da ética do livre mercado, vinculada ao mundo empresarial, pressupondo o esvaziamento do domínio político dos movimentos sociais.

Em relação ao papel do Estado, principalmente em países periféricos como o Brasil, onde as noções de direitos sociais, igualdade de oportunidades, movimentos solidários se constituíram em conflitos frente às arbitrariedades dos poderes dominantes, identificamos uma dupla intervenção: a fragilização do Estado nos setores das políticas públicas e o fortalecimento do disciplinamento social. Deste modo, o que se verifica é o estímulo dos indivíduos à concorrência econômica no livre mercado e o controle das aspirações de ordem política, social e cultural.

Diversos autores têm assinalado (Silva, 1995; Gentili, 1995), na atualidade, o desenvolvimento de uma verdadeira guerra cultural envolvendo os antigos ideais com poder de mobilização social e os ideais neoliberais. Estes últimos são apresentados, não raramente, como uma "nova realidade" e como a única forma possível de saída das crises que se apresentam. Diversas categorias existentes para a definição e organização do mundo social - sistemas que nos autorizam ou impedem de pensar, perceber e formular - são reordenados. Esses sistemas - "epistemes", para Foucault (1981), ou ainda, para utilizar a sugestão de Popkewitz (1991), "epistemologias sociais" - são reconstruídos e, por sua força simbólica e cultural, fora deles o mundo parece não ter mais sentido.

Conteúdos culturais e políticos relacionados às modernas noções de cidadania, bem comum, democracia e educação pública, são substituídos por outros, produzidos no compasso da ética do mercado e do livre consumo, como a competitividade, a rentabilidade e a eficácia. A noção de sociedade de cidadãos com direitos, que negociam e lutam por seus interesses coletivos e pela democratização da vida econômica e social, é revertida, em favor da imagem de uma sociedade de consumidores em competição. Sujeitos sociais são idealizados dentro de um perfil cuja autonomia é escassa para a compreensão e intervenção críticas no mundo social e a solução de suas questões aflitivas é deslocada do espaço público, social e político para o âmbito da iniciativa individual e intimista (Mancebo, 1996, p.14).

Constrói-se, assim, um território no qual a dimensão pública da cidadania está excluída, uma vez que as situações de tensão presentes no cotidiano são remetidas ao próprio sujeito e a participação política é incentivada somente numa acepção que a transfigura em submissão às burocracias constituidoras do Estado.

O mesmo se passa no campo da educação. Um novo sentido do educativo é modelado, ao mesmo tempo que significados divergentes são ocultados e considerados disfuncionais. A ênfase no individualismo e na competição tomados como ingredientes necessários ao bom desenvolvimento da aprendizagem, o pragmatismo traduzido por tarefismo utilitário e tomado como a real produção acadêmica, a concepção dos estudantes como consumidores em necessária e permanente competição são somente alguns aspectos, dos mais visíveis e dolorosos, desta "moderna" ordenação.

Na realidade, o que percebemos é uma perspectiva de estender as relações mercantis básicas do capitalismo a áreas sociais, o que implica a passagem da educação ao setor de serviços, "livre" do conteúdo político. Os conhecimentos repassados ou produzidos e as tecnologias assimiladas ou utilizadas constituem-se como bens culturais, delineando "rankings", vantagens/desvantagens e hierarquias de uns sobre os demais. A qualidade educativa, tão cara aos movimentos dos educadores como um direito social coletivo, passa a ser algo naturalizado no mercado dos saberes e legitima a exclusão no interior do processo de ensino-aprendizagem. Neste contexto, as idéias de excelência e competência tomam relevo nos ambientes escolares. Mobilizam a competitividade entre alunos, profissionais, centros de formação e de serviços em busca dos fomentos, das gratificações e do aumento da produtividade, fortalecem a padronização, a velocidade estéril das produções "requentadas" e hierarquizam.

As mudanças governamentais que vêm sendo implementadas na educação, em todos os níveis, apresentam-se, não raro, sem visibilidade quanto ao modelo e à lógica que preconizam. O diagnóstico que justifica as reformas aponta a gestão - em especial, a pública - como responsável pela crise educacional. Os impasses que vivem as escolas e a educação de um modo geral deixam de se vincular à perspectiva político-pedagógica, constituindo-se em questões de cunho técnico-gerencial. Em decorrência, a alternativa para a superação dos problemas encontra-se na implementação de novas tecnologias educacionais e técnicas administrativas. Distanciados das análises coletivas e da relevância social e desconsiderando a discussão das políticas de produção do conhecimento, dos critérios que servem de base para as ações, das diferenças histórico-sociais construídas no cotidiano das práticas institucionais, os educadores encontram-se excluídos das possíveis alternativas de transformação da realidade educacional.

Neste sentido, é de fundamental importância o redimensionamento dos referenciais de ação de especialistas e pesquisadores que atuam no contexto educacional, na busca de mudanças efetivas de âmbito institucional. O especialismo na escola é um dos aspectos que precisa ser redimensionado, pois sua ocorrência só vem fortalecendo o exercício das relações verticais e reforçando uma "desimplicação" dos educadores no que tange aos objetivos das suas ações, ao que deve ser modificado, assim como aos meios e às condições políticas favoráveis às transformações. As divisões antagônicas e irreconciliáveis entre teoria X prática, pesquisador X técnico, liberdade X determinismo, fragilizam a produção de práticas coletivas e facultam a manutenção dos " experts" de gabinetes como responsáveis pelas análises e propostas educacionais. Nesta rede de relações, nesta realidade diversificada e complexa com a qual nos defrontamos, dificilmente encontrar-se-ão alternativas educacionais, enquanto o educador não estiver implicado efetivamente nas várias etapas que envolvem a transformação do ato educativo.

Munidas destas preocupações e análises, vimos desenvolvendo atividades de pesquisas e extensão na rede pública de ensino do Rio de Janeiro, visando a uma maior compreensão das práticas dos profissionais de psicologia vinculadas à atuação no campo educacional. Deste modo, pretendemos com nossas investigações balizar análises sobre os referenciais da formação acadêmica do psicólogo e sugerir mudanças nesta formação de modo que possam contribuir para o enfrentamento das políticas públicas agenciadas na atualidade.

 

Examinando as práticas de formação nos cursos de psicologia do Estado do Rio de Janeiro

Pesquisas levadas a cabo no Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1) vêm evidenciando algumas questões adicionais ao quadro político e educacional na atualidade, quando se trata da análise da formação nos cursos de psicologia. Nos referimos especialmente à investigação realizada por meio de entrevistas com professores e supervisores na área de psicologia escolar em oito grandes centros universitários do Rio de Janeiro (UFF, UERJ, PUC, USU, UGF, UFRJ, UNESA e UICL) (2) que, nos últimos cinco anos, estiveram responsáveis pelas disciplinas e/ou estágio supervisionado relativos às práticas psicológicas na escola.

Entre os diversos fatores que foram levantados como complicadores para a atuação do psicólogo na escola encontra-se a própria tradição de formação dos cursos de psicologia, onde a ênfase recai no referencial clínico, envolvendo diferentes práticas terapêuticas, especialmente a psicanálise. Em críticas levantadas nas entrevistas, depreendemos que outros campos de trabalho para o psicólogo que demandam práticas institucionais, como é o caso da escola, acabam sendo abordados como trabalhos alternativos, secundários e de fácil adaptação frente aos conhecimentos e técnicas clínico-individualizantes. Tal enfoque ganha ressonância nas tradições higienistas das próprias escolas que requisitam o trabalho do psicólogo, enfatizando os especialismos e a psicologização das problemáticas, o que significa a adoção de uma perspectiva técnica, pragmática e funcional das questões que constroem o cotidiano do fazer pedagógico. É interessante ressaltar que nos Serviços de Psicologia Aplicada (SPAs) de grande parte das universidades analisadas, só são imediatamente reconhecidas como estágio curricular as atividades caracterizadas como de atendimento.

Quanto à priorização de uma perspectiva clínico-terapêutica na academia, convém ainda sinalizar um outro argumento presente nas entrevistas: o do "status" social conferido aos profissionais da cura (inclusive no que tange à remuneração) e a concomitante desvalorização tanto da escola como dos profissionais da educação em nosso país. Pudemos também constatar que em muitos cursos de psicologia o preenchimento da cadeira e do lugar de supervisão na área escolar não é feito segundo os interesses temáticos e as questões que norteiam a formação dos profissionais que assumem temporariamente tais práticas. Estas disciplinas são ministradas por professores não afeitos às problemáticas envolvidas na ação escolar que, não raramente, acabam por fazer uma adaptação dos programas segundo sua própria formação, além de ser comum uma alta rotatividade de responsáveis por estas cadeiras. Deste modo, a regra encontrada foi a grande variabilidade de programas e enfoques, dentro dos próprios cursos que oferecem as disciplinas para mais de uma turma e de um semestre para o outro. A rotatividade docente e o improviso que marca esta área de formação do psicólogo é sobremodo prejudicial para a formação dos futuros profissionais, especialmente se considerarmos que manter-se atualizado e produzindo conhecimentos em um campo de intervenção envolve grande investimento de tempo para a construção permanente de questões-desafios que as práticas cotidianas nos impõem. Outro fator complicador, evidenciado por docentes envolvidos com as práticas escolares, encontra-se nos pré-requisitos exigidos para a(s) disciplina(s) obrigatória(s) e para o(s) estágio(s) em psicologia escolar que, quando existem, são desarticulados de questões de âmbito coletivo, institucionais ou mesmo escolares, que facilitariam o fortalecimento de outros referenciais, que não o estritamente clínico, para a formação do aluno. As próprias atividades de sala de aula são apontadas como desvinculadas das desenvolvidas nos SPAs. Por fim, constatamos que a maioria dos cursos de psicologia não desenvolvem pesquisas que aprofundem reflexões sobre o processo formativo escolarizado, nem oferecem estágio em práticas vinculadas à educação.

As investigações realizadas no campo, em escolas da rede pública municipal e estadual do Rio de Janeiro, não nos apresentaram um quadro mais satisfatório: o predomínio do enfoque clínico-assistencial tem levado os psicólogos a individualizar as ações e reflexões sobre o processo educacional, identificando conflito-desvio, normalidade-disciplina e desenvolvendo, nas escolas, relações tutelares, através das práticas de diagnóstico e de aconselhamento de alunos, familiares e educadores para melhorarem seus desempenhos frente aos modelos convencionalmente estabelecidos como ideais. Esta tradição "psi" articulada à pedagogia nova e à pedagogia tecnicista, que privilegiam a ação de especialistas, faz com que a escola se constitua num conjunto de casos, em detrimento da análise de questões sócio-institucionais. Mesmo quando o trabalho afirma um cunho dito preventivo - ênfase na dinâmica das relações -, ainda assim, na maioria das vezes, traz as marcas das relações de assujeitamento construídas nas práticas assistenciais, através dos vínculos de dependência que o psicólogo atualiza com o educador, com o educando ou com os familiares. Isto se dá na medida em que é justamente na ordem da hierarquia, das dicotomias teoria e prática, professor e aluno, ensino e aprendizagem, que se constroem as segmentações entre as políticas educacionais de gabinete, as condições cotidianas do trabalho escolar e a própria formação dos profissionais da educação. A tríade políticas educacionais/formação universitária/trabalho escolar não se propõe à construção de análises do dia-a-dia educacional, ou, quando o faz, é somente na condição de atrelá-la a interesses específicos, alheios à complexa realidade escolar e na ausência das necessárias análises das implicações institucionais. Sob este enquadre, a realidade multifacetada e complexa da população usuária dos serviços educacionais passa a ser responsabilizada pelos desencontros que se estruturam entre seu próprio desempenho e as expectativas de normalidade e prescrições dos manuais.

Nas escolas, pudemos constatar a generalização de solicitações de atendimento, expectativas de curas individualizadas, descompromisso com as transformações, professores submetidos às práticas de tutela, impotentes, isolados, assoberbados de trabalho. Em relação ao psicólogo dito escolar, evidenciamos uma formação que identifica "ser psicólogo" com o desenvolvimento de uma atuação terapêutica, desvinculada de análises da realidade educacional e das práticas sócio-institucionais veiculadas; evidenciamos ainda um desconhecimento das polêmicas que atravessam as políticas de ensino que dão sentido aos projetos de educação, não facultando, portanto, o redimensionamento das solicitações, a problematização do modo como as instituições educacionais se atualizam e constroem singularmente o processo de escolarização. Em síntese, uma complicada aliança entre um modo de pensar/fazer educação e um modo de pensar/fazer psicologia, cujo efeito se traduz na manutenção dos índices de fracasso escolar, na redução da dimensão pública do exercício da cidadania e no fechamento do próprio mercado de trabalho, uma vez que a presença do profissional de psicologia na escola não traz contribuições para as questões que atravessam a educação contemporânea.

Um último aspecto merece ser examinado, no que diz respeito a uma dificuldade adicional para aqueles que insistem em enfrentar uma formação desencorajada e uma realidade naturalizadora de fracassos existente nas escolas: a legislação em vigor na rede pública de ensino do Rio de Janeiro. Em 1984, a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro contava com 350 professores exercendo a função de psicólogo. Nessa época, foi feito o enquadramento no cargo de psicólogo dos 288 profissionais que estavam nesta função até 1979. Os restantes, mesmo sem enquadramento, continuaram como professores, mas exercendo a função de psicólogo. A Lei Orgânica Municipal de 1990 complicou ainda mais a situação, ao determinar que o psicólogo deveria ter exercício privativo na Secretaria Municipal de Saúde, cabendo a esta Secretaria o planejamento e coordenação das atividades dos profissionais a ela subordinados, fechando, deste modo, o mercado de trabalho para o psicólogo em escolas da rede pública. A Lei de Diretrizes e Bases, Lei 9394 de dezembro de 1996, também não expandiu a atuação do psicólogo no espaço escolar. Ela só se refere a uma interseção entre psicologia e educação na "Educação Infantil", ao tratar do desenvolvimento integral da criança até os 6 anos, quando circunscreve os aspectos físico, psicológico, intelectual e social e, no capítulo "Da Educação Especial", também vinculado à criança de 0 a 6 anos, quando se refere ao apoio especializado, sem, no entanto, explicitar qual. Ainda em relação à legislação, é interessante ressaltar que os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), que foram criados em 1984, resultantes de um convênio entre o governo da Prefeitura e do Estado do Rio de Janeiro, embora não impeçam o psicólogo de atuar nas escolas, também não prevêem sua participação no cotidiano de suas atividades. Deste modo, hoje, no Rio de Janeiro, somente podemos encontrar algum tipo de ação do psicólogo escolar na rede pública do estado, porque, na Legislação geral da Secretaria Estadual de Educação, ainda se prevê uma Equipe de Apoio Pedagógico.

A reversão da complexa situação aqui delineada em linhas muito gerais - que engloba uma política universitária competitiva, individualista e desvinculada de uma análise crítica da realidade educacional e que encontra campo fértil na formação específica do psicólogo, desde a sua gênese, baseada num enfoque clínico-assitencial naturalizador de desvantagens sociais - é tarefa árdua e plena de armadilhas de captura. No entanto, é importante assumir o desafio de novas práticas no sentido de resistência a esta realidade, que parece se apresentar, por vezes, como única e inevitável. Neste sentido, o ponto de partida está em revalorizar o domínio público e as agendas democráticas e de cidadania, no interior das quais a universidade pode ensaiar novos estilos de intervenção, assumindo um compromisso radical com a promoção de sociedades justas e igualitárias (Patto, 1993; Rodrigues et all, 1992, Rocha, 1996).

A abertura da universidade a distintos saberes e práticas é uma decorrência lógica do item anterior, cabendo destaque à fertilidade de uma maior aproximação e aliança, sem paternalismos e arrogâncias, em relação aos movimentos sociais que têm construído novas análises e resistências face ao projeto governamental e hegemônico (Mancebo, 1998).

Por fim, temos tentado exercitar uma outra cultura política universitária que, em última instância, pleiteie diferentes qualidades de vida pessoal e coletiva mais assentes na autonomia e no autogoverno, na descentralização e na democracia participativa.

Para tal, um dos dispositivos que tem se mostrado útil, particularmente aos que têm ousado uma atuação diferenciadamente crítica na interface psicologia/educação, tem sido a pesquisa-intervenção.

 

A pesquisa-intervenção enquanto estratégia de ampliação do espaço público e do exercício de outra cidadania na escola

A pesquisa-intervenção tem se constituído num fértil instrumento em nossa trajetória na busca de uma prática de ação/formação sócio-política. Enquanto dispositivo, a pesquisa-intervenção dá ênfase às micropolíticas agenciadas no cotidiano pedagógico, aos movimentos do dia-a-dia, onde a relação pesquisador/campo é dinâmica e determinada pelos rumos dos trabalhos a serem desenvolvidos, sendo uma ação do próprio grupo envolvido. Assim, construímos planos coletivos de trabalho com as equipes das escolas, com o objetivo de colocar em análise as condições de produção do cotidiano da vida escolar onde surgem as queixas e os impasses. As generalizações dos padrões de normalidade e dos projetos educacionais são, então, contextualizadas, e práticas alternativas podem ganhar consistência com o estatuto de provisoriedade, já que a realidade está em mudança o tempo todo. Esta postura vem possibilitando discutir o lugar de especialista que atualiza a relação pedagógica hierarquizada onde se estabelecem os dualismos saber/poder, mestre/aprendiz -, rompendo com as práticas de dependência a que estão submetidos os educadores e os alunos, de um modo geral (Rocha,1994).

Nos trabalhos que vimos desenvolvendo na própria universidade, a organização de um núcleo interinstitucional UERJ/UFF(3) foi importante como elemento aglutinador de professores, alunos e psicólogos com interesses em questões relativas aos processos educacionais. O núcleo vem favorecendo estudos e análises de questões que contribuem para redimensionar a formação, sendo discutidos os trabalhos que vêm sendo realizados junto à rede pública de ensino, em comunidades e organizações não governamentais e as mudanças nas próprias relações tradicionais de supervisão e formação do psicólogo.

Em nosso cotidiano de trabalho, as análises dos modos como estamos implicados com as questões educacionais têm sido de fundamental importância, pois vêm dando condições à equipe de mobilizar questões do ensino tradicional que se atualizam através de nós, colocando em discussão os saberes que são propriedade dos técnicos. Isto se dá no que tange a alunos e estagiários no interior da universidade e também no que diz respeito às comunidades com as quais trabalhamos. Do mesmo modo, a coletivização das análises e das atividades contribuem para a resistência à competitividade e ao individualismo atravessados no nosso modo de fazer/pensar capitalístico, afirmando uma prática participativa que busca, antes, desconstruir o que, na moral da subjetividade moderna, relaciona liberdade ao direito de ser submetido e garantido pela lei (Guattari, Rolnik, 1986).

Finalmente, a problematização da formação do psicólogo nas suas relações com a sociedade politicamente organizada vem se constituindo num aspecto importante a ser enfrentado, cujo desafio não está apenas na preparação técnica para o trabalho profissional junto à educação, mas na formação ético-estético-política que faculte o redimensionamento das bases institucionais da escola. O desafio se coloca, então, em como transformar a escola em território que venha abrir espaço para a invenção e construção de uma nova cidadania.

 

Notas

1 - Referimo-nos a duas investigações: "História dos cursos de psicologia no Rio de Janeiro: a cultura psicológica nas instituições de ensino superior", já concluída, sob a coordenação da Professora Deise Mancebo e "A escola entre a macro e a micropolítica e as implicações com as práticas psicológicas" coordenada pela Professora Marisa Lopes da Rocha.

2 - Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC), Universidade Santa Úrsula (USU), Universidade Gama Filho (UGF), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Estácio de Sá (UNESA) e Universidades Integradas Celso Lisboa (UICL).

3 - Desde 1997 vimos desenvolvendo um Centro de Estudos aberto à comunidade, com encontros mensais, coordenado pelas professoras Marisa Lopes da Rocha (UERJ), Heliana B.C. Rodrigues (UERJ) e Katia Aguiar (UFF) com a perspectiva de congregar alunos e profissionais interessados em discutir as diversas faces de um pensar/fazer psicologia e educação comprometidos com a transformação da realidade sócio-política e institucional.

 

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