Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Crítica da ideología estética em psicanálise.
Um estudo sobre o fin de análise
(*)
Christian Ingo Lenz Dunker

Introdução:

Em trabalhos anteriores, venho discutindo as transformações pelas quais a psicanálise passa quando é exercida em momentos históricos e contextos culturais diferentes daqueles em que emergiu originariamente. Isso implica examinar tanto a noção geral de transmissão da psicanálise quanto as particularidades clínicas e éticas envolvidas. As relações entre psicanálise e sociedade são pensadas neste caso menos a partir do discurso explícito sobre a civilização, vale dizer, eventualmente da psicanálise como uma teoria crítica, e mais a partir da influência das transformações culturais sobre o contexto clínico. Escolhi como tema para tanto o problema do término do tratamento.

O assunto vem despertando interesse no campo lacaniano especialmente pela sua incidência no modelo de formação de analistas e pela exigência que traz consigo de explicitar as condições éticas do tratamento e suas eventuais vicissitudes. Para além das implicações institucionais, onde a questão acaba ganhando contornos normativos implícitos, interessa saber algo sobre a regulação ideológica dos fins que atravessam o agir psicanalítico.

O que chamo de ideologia estética, neste contexto, não se refere ao campo das aproximações entre psicanálise e arte, no qual, a pesquisa psicanalítica vem se demonstrando bastante frutífera. Penso que a estética como ideologia depende muito mais de um movimento sistemático de migração de formas de saber, de julgar e de apreender questões não estéticas como se elas assim o fossem. Além disso, o próprio movimento não aparece explicitado como tal. Para ampliar a angulação do tema bastaria mencionar a colonização de nossos juízos políticos, éticos e até epistêmicos pela esfera do gosto subjetivado, tão presente nas sociedades do capitalismo tardio. Tal colonização, no caso da psicanálise, especialmente a de extração lacaniana, traz três consequências fundamentais: a crença em uma autoridade autêntica (seja um texto, seja seu intérprete privilegiado), a tendência a normatização do estilo clínico dos analistas e a recusa em admitir ou enfrentar diferenças em questões de método e de organização corporativa.

O propósito deste estudo é mostrar como tais consequências se tornam presentes na esfera do final do tratamento psicanalítico. A importância estratégica de tal questão para determinar dimensões como as da formação de analistas, ética da psicanálise, instituições de psicanalistas, e, principalmente, de qual tratamento psicanalítico se fala, torna o tema escolhido convergente com a idéia que quero defender.

Éticas freudianas:

O campo da ética define-se, desde os antigos, pela adequação entre os meios, os fins e o agente de uma determinada ação. O fim delimita, desta forma, tanto a orientação de um processo quanto o seu fechamento. Neste último caso, o fim é sinônimo de objetivo, meta ou finalidade e representa-se em um dado acontecimento ou estado de coisas. Na acepção de fim como orientação ou sentido de um ato, encontramos uma ligação com a idéia de irrealização, de vir a ser ou ainda de um horizonte em perspectiva. Fala-se em vontade quando o fim de um processo é objetivável e em desejo quando ele não é.

No caso do tratamento psicanalítico, a dupla conotação da idéia de fim está presente. Há um conjunto de acontecimentos que precipitam o encerramento das sessões de análise, ou seja, o momento de sua conclusão ou desenlace. Há, por outro lado, o sentido ou orientação do que se passou que permanece indeterminado pois é capaz de ser continuamente modificado pelo sujeito que o atravessou. A distinção feita por Freud (1937c) entre análise terminável e análise interminável é útil para clarificar o problema. A análise é terminável no sentido da dissolução da transferência que a suporta e da remoção dos principais sintomas, angústias e inibições que acometem o analisante. Por outro lado, a análise é interminável pela impossibilidade de tornar o inconsciente inteiramente consciente e pela exigência pulsional que não é completamente redutível ou capaz de sublimação. Em suma, a análise termina mas não acaba. Por que deveríamos supor então que ela se orienta por uma única ética, já que se admite uma duplicidade de seus fins ?

O conjunto faz sugerir que o problema do fim da análise deva ser pensado de forma incompleta, isto é, levando-se em conta sua não totalização por meio do reconhecimento de um resto não analisável. Assim como há o umbigo do sonho, que não pode ser decifrado, haveria o umbigo da análise, ponto limite de suas pretensões.

Essa dicotomia, que limita e amplia as pretensões clínicas de uma análise, pode ser considerada em termos éticos uma vez que são os modos de relação entre sujeito e inconsciente que estão implicados, e, portanto, o desejo, bem como os modos de relação com a pulsão e, portanto, com o gozo. De fato, as condições em questão na análise interminável e na análise terminável não são exatamente da mesma ordem. Num caso, a análise tem seu sucesso avaliado por condições clínicas precisas, no outro por um dado modo de ser no mundo. Isso faz lembrar a distinção proposta por McIntire (1991) entre éticas da excelência e éticas da eficácia. A ética exigida para dar cabo de tarefas específicas, por meio de habilidades orientadas e papéis bem desempenhados, implica um tipo de virtude que os gregos chamavam agathós, ou seja, saber fazer e fazê-lo bem. Esse tipo de virtude opunha-se à areté, atributo daqueles que se exercitavam em atividades que tinham seu fim em si mesmas. Neste caso, importa menos o que se faz e mais o que se é ao fazê-lo. Na areté, o rei, juiz ou artista se qualificam, se enriquecem ou se transformam na medida em que transformam o mundo e os outros.

De fato, a análise interminável propõe um aprofundamento contínuo na relação com o inconsciente, um trabalho de decifração inesgotável em que sempre se poderá saber mais sobre os modos de manifestação do desejo. Alguns analisantes referem-se a este trabalho como uma satisfação intrínseca à análise, na qual a excelência da elaboração sempre poderá ser aprofundada, pois trata-se de um fim em si mesmo. A análise, no que ela tem de interminável, parece assim estar gerida pela aretè.

Por outro lado, o trabalho da análise pode ser considerado à luz da sua eficácia na remoção dos sintomas e no alívio do mal estar psíquico. Neste caso, a ética da psicanálise se aproxima da esfera do agathós: ela é um meio para realizar um fim. É inegável, neste sentido, que a psicanálise é também uma terapêutica, como tal capaz de ser avaliada em sua eficácia.

A tensão entre estas duas formas de ética está presente em vários aspectos das recomendações técnicas sugeridas por Freud. Por exemplo, na contenção do furor curandis, o desejo de curar o paciente a qualquer custo, sensivelmente prejudicial ao tratamento, na valorização da análise pessoal como meio essencial para tornar-se analista, na idéia de que a cura vem por acréscimo e que, portanto, não se deve colocar como finalidade e, sobretudo, na importante indicação de que ao analista cabe uma formação e não um treinamento. Formação (Bildung) é um conceito forte no ideário romântico alemão, presente em Goethe e Hegel, que aponta justamente para uma possível conciliação entre eficácia e excelência no âmbito da cultura universal. Por isso a formação não poderá nunca ser assimilada a uma meta, um objetivo, pois perderia a contradição que lhe dá causa.

Há também indicações claras de que a ética da excelência pode ser perigosa quando hegemônica no horizonte de um tratamento. O antigo lema da medicina "Eu o tratei, Deus o curou", é outro dos conselhos freudianos. Seu sentido aponta criticamente para a excessiva confiança no ser do analista e indiretamente para o narcisismo envolvido.

Essa dualidade dos fins em psicanálise aparece também em Ferenczi, um dos pioneiros no enfrentamento da questão:

" … nenhuma análise sintomática pode ser considerada concluída se não for, simultaneamente ou em seguida, uma análise de caráter." (1927:12)

O produto dessa análise do caráter não implica apenas remover, reduzir ou solucionar conflitos e seus compromissos mas também mudanças "em nível de um modo de vida e de seu comportamento" (1927:16). Ora, tais mudanças exigem um crivo de consideração que a tradicional eficácia não pode oferecer. Sugere-se, no entanto, a existência de um possível "estilo de vida pós-analítico" de definição problemática e alcance clínico complexo, pois, ao contrário do sintoma, o caráter é algo de que dificilmente os sujeitos se queixam.

Constata-se assim uma mútua limitação da ética da eficácia e da excelência no interior do tratamento. Tensão que se reflete no problema do fim da análise e permite entender o aparente paradoxo da terminabilidade.

A tese da tensão de éticas na clínica converge ainda com uma diferença importante entre a psicanálise e outras perspectivas psicoterapêuticas calcadas na sugestão. Freud (1905a) divide os tratamentos, segundo as categorias da estética de Leonardo da Vinci, entre aqueles que operam per via di porre e os que o fazem per via di levare. Pela via de porre, trata-se de acrescentar algo, como na pintura ou no hipnotismo e nas práticas de sugestão. Nelas supõe-se que a terapia introduz algo novo no sujeito, algo que ele não possui e que lhe seria entregue como positividade, enriquecendo-o com mais saber, autocontrole, autoconfiança, etc. Esse seria, não o sentido, mas o objetivo do tratamento. Finalidade que traduz a objetivação do eu onde pode ser verificada: capacidade de reflexão, adaptação, estabilidade relacional e de humor, disposição ao trabalho e ao amor.

Pela via de levare, trata-se de retirar ou subtrair algo, como na escultura e na psicanálise:

"A terapia analítica, ao contrário, não quer agregar ou introduzir nada novo, senão restar, retirar, e com este fim se preocupa com a gênese nos sintomas patológicos e a trama psíquica da idéia patógena, cuja eliminação se propõe como meta." (1905a: 250)

Se há objetivo, aqui ele não se expressa de forma positiva, mas negativa. É importante notar que em ambos os casos, acrescentando ou retirando, a ética em questão se fundamenta na eficácia. Isto porque trata-se apenas de uma divergência quanto aos meios ou vias e não quanto aos fins, que entendidos como objetivos, permanecem homogêneos nos dois casos, apesar de inversos.

No entanto, o critério freudiano da via de levare tem o inconveniente de reduzir a psicanálise à sua dimensão terapêutica. Reduzida a esta dimensão, não há como postular algo como a interminabilidade da análise.

É preciso salientar, ainda, que ao final de uma análise produz-se também um novo analista. A análise permite elaborar o desejo de tornar-se analista e oferece as condições para que este se autorize por si mesmo. Logo, pressupõe-se que a ética da psicanálise seja transmitida nessa experiência. Se a ética da psicanálise se compõe de eficácia e excelência e, se ela é transmissível sob transferência, conclui-se que o que é transmitido não é apenas negatividade (eficácia) mas positividade (excelência). Ora, se a ética da psicanálise transmite-se na experiência analítica e se esta comporta alguma positividade, sob forma de um saber fazer, por exemplo, então ela é algo que se acrescenta ao sujeito e com isso viola-se o pressuposto freudiano da via de levare.

Esta violação do pressuposto sugere duas formas de solução: ou acrescenta-se algo ao modo das práticas de sugestão e neste caso teríamos de aceitar alguma forma de visão de mundo psicanalítica, o que representa um deslocamento da contradição, ou acrescenta-se algo impróprio à universalização ou coletivização sob forma de um ideal.

Foi esta segunda via que Lacan tomou, aparentemente, para desenvolver de modo mais sistemático o tema do fim da análise.

Os fins próprios e os fins impróprios de uma análise:

Para Freud, uma análise deveria conduzir o analisante a um encontro com o rochedo da castração. Em outras palavras, deveria levar à constatação da divisão subjetiva como raiz do desejo de um ser falante. Lacan retoma esta idéia e procura elucidar o que aconteceria depois disso. Para tanto, depois de Édipo em Tebas é preciso pensar em Édipo em Colona e em Antígona. Ocorre que cada aprofundamento da noção de fim da análise corresponde a um avanço na ética psicanalítica. Isto porque a constatação do desejo em associação com a castração, presente no Édipo Tebano, dá lugar ao reconhecimento de si, o me phynai, em Colona, e ao reconhecimento do ato de desejo em Antígona. O rochedo, forma geológica da natureza, índice da heteronomia, a ser contemplada como limite, cede lugar à humanização e ao ato decidido.

O centro da ética muda de foco, do produto (objetivo), passa-se ao agente e deste, à ação. No conjunto, preserva-se, entretanto, o caráter negativo do projeto, a via de levare freudiana: perda de gozo, destituição subjetiva, irrealização dos ideais, reconhecimento da inexistência da relação sexual e da falta-a-ser. Ocorre que agora tais atributos se aplicam à esfera do mais além do terapêutico. A ética da excelência parece impor-se e abarcar a da eficácia, movimento que se ilustra na substituição da técnica psicanalítica pela ética e pela valorização da noção de desejo do analista como motor da análise.

Esse movimento teve por efeito confundir finalidade e finalismo, orientação e objetivo. Toda finalidade transforma-se assim em sinônimo de ideal, como tal alienante e recusável.

Soller (1993, 1995), uma das comentadoras mais lúcidas a enfrentar o assunto, parte exatamente deste ponto para argumentar que a questão não deve ser recusada pela sua perigosa proximidade com o plano dos ideais. Ela aborda o assunto do ponto de vista do horizonte ético que o subjaz, mostrando como este comporta, pela própria estrutura do dispositivo analítico, uma promessa. Isto pode ser lido tanto na vertente dos benefícios testemunháveis por uma análise quanto pela demanda que atravessa o tratamento; promessa de controle e domínio de si na psicologia do ego; promessa de integração e unidade em Melaine Klein; ou de autenticidade se pensarmos em Winnicott. No caso da psicanálise de Lacan, tal benefício se encontraria anexado à esfera do saber: saber sobre a castração, sobre a divisão subjetiva, sobre o desejo, enfim, saber sobre os limites do saber e sobre sua irredutibilidade à verdade.

Mas, trocando em miúdos, como se poderia discernir tal projeto ético no momento da conclusão da cura. Momento indissociável dos meios que lhe dão fim. As teses de Lacan a este respeito variam ao longo de seu ensino. Podemos pinçar algumas das mais significativas:

a) momento em que se chega ao limite extático do "Tu és isto" (Estádio do Espelho, p. 103 e Seminário XI, 1964);

b) momento em que o advento da fala verdadeira permite a realização, pelo sujeito, de sua história em relação com o futuro ( Função e Campo da Fala, p. 303);

c) momento em que a satisfação do sujeito encontra meios de se realizar na satisfação de cada um com os quais se associa numa obra humana ( Função e Campo da Fala, p. 322);

d) momento de subjetivação da própria morte (Variantes do Tratamento Padrão, p.350);

e) momento de reconhecimento da castração [F (a)] no desejo masculino e [A barrado (j )] no desejo feminino (Observações sobre o Informe de Daniel Lagache, p. 690);

f) momento em que se efetivou a travessia do fantasma (A Lógica do Fantasma, 1967);

g) momento da destituição subjetiva ( Proposição de 9 de Outubro, 1967);

h) momento em que se reduz o analista à condição de objeto a (L'Etourdit ,1972);

i) momento em que ocorre a identificação com uma forma especial e reduzida de sintoma (a sua letra), chamada também de Sinthome (Seminário XXIII, 1976).

A explicitação das consequências teóricas e clínicas de cada uma destas formulações está fora do âmbito deste trabalho. O que interessa destacar é que nenhuma delas permite uma aferência fenomênica para além do contexto transferencial no qual eventualmente são úteis. O mais próximo que encontramos disso em Lacan é o seu reconhecimento, apesar de oscilante, dos chamados fenômenos maníaco-depressivos do final de análise, isolados por Balint.

Das proposições levantadas, quatro referem-se a condições do sujeito (a, d, e, g); duas a relação com à alteridade, representada pela história, pela cultura e pela palavra (b, c); uma inclui o analista (h) - poderíamos acrescentar a idéia de dissolução da transferência neste caso - e duas são proposições que aludem à superação do mal estar psíquico (f, i). No conjunto, podemos constatar a convergência para diferentes aspectos do campo ético. As proposições que versam sobre o sujeito enfatizam o agente, as que versam sobre a relação com a alteridade e com o analista tocam nos meios e as que aludem ao mal estar tocam na questão dos fins ou do produto. Todas as afirmativas, entretanto, sustentam-se na idéia de que a direção da cura dirige-se à extração da verdade do processo, logo, referem-se ao seu sentido. Os termos se ajustam aos lugares propostos por Lacan no Seminário XVII (1970) para definir a estrutura de um discurso (agente, outro, produção e verdade).

Mas que tipo de proposições são empregadas por Lacan em suas nove afirmações ? Não se tratam de descrições de estados de coisas nem de juízos que especificam particularidades. Ora, se pomos em primeiro plano o fato de que o tratamento psicanalítico se funda, e não apenas se inscreve, em uma ética os juízos em questão deve ser acolhidos como máximas, isto é, representantes sintéticos de um processo que comporta dentro de si distintas possibilidades. Elas incidem sobre o tratamento como horizontes possíveis de sua conclusão. Máximas são regras ou princípios de ação adotados como válidos, por vontade própria. Não são leis, uma vez que são juízos centrados na particularidade do sujeito, enquanto leis pretendem alcançar a universalidade na qual este sujeito se inscreve. Há, basicamente, duas formas de fazer a passagem de uma a outra. Ou se postula um princípio universal, ao qual a máxima deve se constranger, caso do imperativo categórico kantiano, ou se postula que o princípio particular pode ser estendido a uma comunidade de vontades, o que ocorre, por exemplo, no caso dos juízos estéticos. A diferença crucial é que na primeira situação a validade da máxima é aferida por um tribunal, que assume valores intrínsecos como fundamento, por exemplo, a razão ou a liberdade. No caso da extensão da máxima, a validade é obtida por valores extrínsecos, dados por um consenso normativo.

A questão toda é saber então se os enunciados de Lacan sobre o fim de análise são capazes de serem deduzidos por um sujeito qualquer e assim propiciar um avanço do saber sobre o assunto ou se eles devem ser necessariamente validados por um coletivo humano, parcial, que os legitima indutivamente por meio de uma afinidade estética. Em outras palavras: o final de análise depende de uma corporação de psicanalistas para que se aprecie sua validade? A leitura das máximas envolvidas necessitaria assim de um interpretador privilegiado? Observe-se que se a resposta for afirmativa, isso muda completamente o próprio estatuto da teoria ou do ensino psicanalítico. Passa-se de uma teoria aberta à assimilação do não-sabido a um campo cujo objetivo é preservar e multiplicar procedimentos na esfera das convenções. Quando tais convenções apresentam-se indevidamente como se fossem teorias, isto é, quando o que deve ser apresenta-se como o que é, estamos diante de uma doutrina, palavra cuja extração teológica é imediata.

Se, no entanto, a resposta é negativa, quer pelo veio das idealizações residuais, quer pelo veio da universalidade pretendida pelo esforço teórico, nada que possa ser traduzido coletivamente na esfera de critérios universais para delimitar o que se obtém ao final de uma análise pode ser estabelecido. Critérios são formas de objetivar o sentido ou o produto de um processo. Como observou Nogueira (1997), a experiência analítica, como experiência de um sujeito, por definição não poderia alcançar este grau de objetividade. Quando falamos, descrevemos ou teorizamos sobre o próprio processo, o ganho epistêmico não se confunde com o ganho normativo. Isso se aplica também quando pensamos que o que se obtém ao final de uma análise é um analista.

O critério terapêutico da remoção ou redução dos sintomas, inibições e angústias é igualmente impotente para elucidar o que se passa no mais além do terapêutico. Ora, a ausência de tais critérios é um fato interessante no cenário da cultura administrada e da regulamentação burocrática e anônima de nossos tempos. Preserva-se assim um lugar para a singularidade do sujeito, o que é pertinente com o projeto clínico da psicanálise. Permite-se ainda que as variações históricas e culturais das formas de sofrimento e demanda encontrem acolhimento na clínica em questão.

Todavia a pressão por tornar objetivo e apreensível tais critérios se dá a ver não só na esfera da representação social da psicanálise, mas também, e, principalmente, no âmbito das corporações psicanalíticas. Isso se reflete no contínuo deslocamento de práticas e saberes, inicialmente voltados para o entendimento do tratamento, para a progressiva função de legitimação de posições políticas e agenciamento de poder correlatos. Combina-se assim o que há de pior na ética da eficácia: seu utilitarismo em que os fins justificam os meios, com o que há de pior na ética da excelência, sua tendência ao personalismo autocrático. Obtém-se ao final um discurso muito bem adjetivado por Canguilhem: "ética sem controle, medicina sem método e teoria sem rigor". Ora, assinalar que se trata, neste movimento, de ideologia é trivial; importa saber qual é a textura dessa ideologia. Em outras palavras, como teoria e prática escamoteiam sua apresentação, de modo que a contradição não se torne evidente.

O problema é interessante porque certas premissas da psicanálise de Lacan dificultam as vias mais tradicionais, a saber, positivização controlada da ética, fenomenalização dirigida da teoria, regulação pela eficácia normativa e cultivo da autoridade. Além disso, o veio crítico da leitura lacaniana da psicanálise dos anos 50 e 60 é exatamente orientado contra tais procedimentos. Portanto, de que modo se poderia ultrapassar tais objeções e ao mesmo tempo legitimar a propriedade do saber-fazer psicanalítico? Em outras palavras - uma pergunta que circula em diversas instituições lacanianas -, como nos transformamos naquilo contra o qual nos insurgimos ?

Lacan com Kant:

Em Televisão, Lacan é convidado a responder três perguntas que resumem o interesse da razão nos termos kantianos: que posso saber, que devo fazer e o que me é permitido esperar. Perguntas às quais Lacan responde diretamente: posso saber aquilo que possui de alguma forma estrutura de linguagem. Quanto ao que fazer, assinala: "É o que faço: da minha prática extrair o Bem-dizer, que já acentuei." (1974:72)

Finalmente, quanto ao que esperar, a assertiva é bem menos pretensiosa: "espere o que lhe agradar" (p.73), diz ele ao entrevistador. A colocação alude aparentemente à pequena ingerência do tratamento psicanalítico sobre a formação de ideais na pessoa. Sugere-se ampla liberdade quanto a este aspecto. Comparando com as respostas anteriores, o contraste é patente: a pergunta epistemológica é respondida em terceira pessoa; a questão ética, em primeira pessoa; ambas, em tom conclusivo. Quanto ao que esperar, a manobra retórica inverte a pergunta e relativiza o âmbito de seu encaminhamento para o interlocutor. O recurso é compreensível se assimilamos o que se pode esperar do contexto de uma análise, que é aparentemente de onde as duas perguntas anteriores são respondidas, isto é, se temos em mente o que esperar de um tratamento e depois de um tratamento.

O problema do que esperar remete virtualmente ao que poderia ser o fundamento de nossas crenças. A objeção lacaniana indica que não há nenhum fundamento para elas. No âmbito da psicanálise, há apenas o desejo, e desejo sujeito às relatividades que ele implica. Arruina-se assim o que poderia ser uma tábua de salvação para os critérios objetivados de fim de análise. Ou seja, isso não passa por uma comunidade que teria por objeto crenças semelhantes, nem nos textos, nem em seus emissários, nem em seus interpretadores privilegiados ou em suas corporações. Não que isso não ocorra, mas não pode ser legitimamente explicitado como justificativa para a adesão dos espíritos. A exclusão do argumento de fé acarreta, em última instância, uma aliança com a razão como princípio capaz de prestar contas sobre o fazer psicanalítico.

Uma parte significativa do trabalho teórico de Lacan, como se sabe, é dedicada à crítica dos ideais normativos e utilitaristas que, por assim dizer, teriam colonizado a psicanálise. Recusa dos ideais alienantes, da primazia do ego como instância autônoma e do desenvolvimentismo naturalizante, compõe arestas fundamentais deste programa crítico. Paralelamente, ganha força a tese da substituição das questões técnicas pela procura de fundamentos éticos para a prática psicanalítica. Tal projeto é anunciado em "Direção do tratamento e os princípios de seu poder" de forma clara:

"Está por formular-se uma ética que integre as conquistas freudianas sobre o desejo: para por em sua cúspide a questão do desejo do analista" (1958:595)

Ao tematizar o desejo do analista, Lacan critica uma doxa analítica da época que procurava pensar o analista como ser sem desejo, neutro, operador imparcial de uma técnica anônima e adquirida por intermédio de uma iniciação padronizável. No entanto, tal desejo, diz o fragmento, estaria localizado na "cúspide", ou seja, na extremidade aguda - na ponta da ética. Infere-se que o desejo do analista não é um conceito primário, um fundamento da ética, mas a sua consequência ou seu horizonte de conclusão.

No seminário A Ética da Psicanálise define-se melhor o que comporia o solo da ética psicanalítica; solo, aliás, que não lhe seria exclusivo, mas que permitiria até estabelecer proximidades quanto à implantação cultural da psicanálise:

"A ética da análise não é uma especulação que incide sobre a ordenação, uma arrumação, do que chamo serviço dos bens. Ela implica, propriamente falando a dimensão que se expressa no que se chama de experiência trágica da vida." (1960:376)

A experiência trágica da vida é algo que se expressa em diferentes épocas, não sendo assim nem privilégio nem invenção da psicanálise. De Boécio a Nietszche, de Lucrécio a Cioran pode-se até traçar as origens e os afloramentos circunstanciais desta tradição ética. Entretanto o que parece marcar tal tradição é a insidiosa associação com o esteticismo, tanto em termos temáticos quanto estilísticos. Esteticismo que entendemos aqui como apropriação de questões éticas, epistemológicas, políticas, etc. com referência aos critérios usualmente aplicáveis à esfera das obras de arte.

Sabe-se que Lacan considerava o seminário da ética como não concluído, o que pode ser parcialmente atestado pelo último capítulo, intitulado posteriormente de: "os paradoxos da ética". Paradoxo que acusamos no tratamento quando dizemos que ele é um meio para chegar a um determinado fim e ao mesmo tempo um fim em si mesmo. Mas a idéia de que este é um seminário não terminado combina muito bem com o teor mesmo do assunto e já nos alerta para o equívoco que seria abordar a questão no plano, por exemplo, de uma axiomática.

Neste mesmo seminário, podemos destacar três asserções positivas de Lacan acerca da ética da psicanálise: (1) é uma ética do bem dizer (2) que tem em seu centro a expansão do universo da falta (3) que implica na elevação do objeto à dignidade de Coisa. Essas três proposições combinadas, a partir da interpretação da tragédia de Antígona, aproximam a ética da psicanálise de uma ética trágica. Mas caberia perguntar então se a adesão ao modelo de Antígona, como figura principal do desejo do analista, não esquece que a tragédia é antes de tudo um gênero estético e que, portanto, ao aderirmos à ética trágica, estaríamos recebendo junto uma estética.

Corrobora tal impressão o fato de que os três grandes exemplos comensuráveis com a ética psicanalítica derivam do domínio estético, a saber: a tragédia de Antígona, o problema da criação em Heidegger e o tema do amor cortês na literatura provençal. Uma leitura menos avisada sugeriria assim que a ética da psicanálise é no fundo uma espécie de estética aplicada, com fortes infiltrações românticas. Contra esta suposição, pesam as afirmações de um capítulo deste seminário reservado à função do belo no qual Lacan argumenta que " … o belo tem por efeito suspender, rebaixar, desarmar, diria eu, o desejo. A manifestação do belo intimida, proíbe o desejo." (p.290). O belo para se tornar desejável precisa de certos coadjuvantes, como o ultraje, a dor ou o engano. O belo em si é reduzido à categoria de um bem (Sache), mercadoria por excelência da economia narcísica. Neste sentido ocupa um lugar semelhante ao que Lacan chama de "a ordem dos poderes", cuja máxima é: que o trabalho não pare, quanto ao desejo fica-se na espera.

Ora, se a ética da psicanálise é avessa ao serviço dos bens, conclui-se que ela é avessa também ao campo da estética, admitindo-se em consequência uma estrita separação entre estas duas esferas. Percebe-se no entanto que a idéia de uma ética do bem dizer, apesar de cativante, é extremamente frágil em termos de uma eventual assimilação a uma ética do belo dizer. A separação que enfatizo colocaria a psicanálise, pelo menos parcialmente, na contramão de uma estilística da existência, de uma experiência de auto-enriquecimento e, de modo mais geral, contra o ideário romântico de autocultivo estético da interioridade. Mas como pensar uma ética da excelência fora deste quadro ? Como não fazer das virtudes analíticas, se é que elas existem, dons analíticos autojustificados ?

Nesse momento da obra de Lacan, podemos dizer que seu grande interlocutor filosófico não é mais Hegel, mas Kant. A releitura do conceito de superego, empreendida neste período, segue em linhas gerais a indicação de Freud (1924c) de que este age como um imperativo categórico. A descoberta do dualismo significante/gozo que atravessa a lei superegóica, realizada em "Kant com Sade" (1963), está intimamente ligada aos termos kantianos de colocação do problema, isto é, como desligar a lei moral do objeto patológico? Como fundá-la em um universal racional?

Substitua-se a linguagem por este universal e o objeto patológico pelo gozo e encontramo-nos no centro do paradoxo da ética proposta por Lacan. O conceito de fantasma, contemporâneo a estas formulações, implica exatamente a descoberta deste objeto patológico como ponto máximo de reificação do sujeito e de causa de seu desejo.

No entanto, se a incorporação dos termos kantianos se mostra eficaz no terreno da Crítica da Razão Prática (1973) vale a pena examinar os pressupostos da chamada terceira crítica, a Crítica do Juízo (1973), na qual encontramos a procura dos fundamentos do juízo estético como elemento do programa, para melhor entender esta crítica do esteticismo em Lacan. O problema pode ser assim colocado: quando eu enuncio que algo é belo, meu juízo ultrapassa minha subjetividade, na esfera da qual isto apenas me é agradável, e visa a solidariedade com os outros sujeitos. Por isso Kant denominava tais juízos de juízos estético-reflexionantes, pois eles sugerem algum grau de objetivação coletiva do gosto individualizado. Mas esta solidariedade só poderá ser alcançada se eu puder me destituir como sujeito que enunciou tal juízo.

O problema central da estética do belo em Kant é como passar de juízos estético-subjetivos (ex. Esta rosa me é agradável) para juízos estético-reflexionantes (Esta rosa é bela). A diferença entre as duas formas de juízo costuma ser embaralhada, principalmente depois que o senso comum viu-se sem condições para sustentar juízos do segundo tipo. No entanto, a pretensão e os ganhos em termos de legitimação e autoridade na esfera do gosto continuam presentes. Isso se exemplifica, por exemplo, em afirmações cujo enunciado inicia-se com expressões como "Eu gosto…", ou "minha preferência é…", mas cuja enunciação prende-se a "Todos gostam…" ou "A preferência coletiva que deve ser …", ou seja, imperativos estéticos, que do ponto de vista do enunciado eclipsam a posição do sujeito.

O fundamento do juízo estético está, resumidamente falando, na elevação da subjetividade particular à condição de universal ou de um equivalente intuitivo desse universal, uma vez que supõe que para ser legítimo deve ultrapassar os interesses do agrado de quem o enuncia.

Neste sentido, um autor da teoria crítica como Eagleton mostrou como o juízo estético em Kant é o protótipo e paradigma de toda ideologia moderna:

"Os juízos estéticos são assim ‘impessoalmente pessoais’, uma espécie de subjetividade sem sujeito, ou, como Kant coloca, uma ‘subjetividade universal’. Julgar esteticamente significa declarar implicitamente que uma resposta inteiramente subjetiva é aquela que qualquer indivíduo pode necessariamente experimentar, ou que produzirá acordo espontâneo em todos eles." (1993:72)

O juízo estético propõe uma comunidade de gosto (Gemeinschaft) como totalidade virtual, escondendo os interesses de quem o enuncia. Como diz Lebrun, "…o conceito kantiano mais próximo da comunidade estética é o de "Igreja visível", que apresenta o reino de Deus na terra" (1993:526) e por isso o sujeito do enunciado estético acredita-se ainda, ele mesmo, na sua particularidade e simultaneamente falando por todos. O mesmo autor assinala a convergência desta questão com o surgimento do tema da intersubjetividade na filosofia. O sujeito do enunciado estético constitui-se assim em autoridade autêntica, isto é, uma autoridade que emana da sua ipseidade ampliada.

A intersubjetividade postulada em tal comunidade é problemática, uma vez que não pode ser legitimada por aquilo que ela funda. Em outras palavras, não posso pretender a universalização do meu gosto ancorando-o numa comunidade prometida e sempre adiada que enfim a referendaria.

Em oposição a esta linha interpretativa, Ferry (1994) argumenta que o senso comum invocado pelo juízo estético kantiano não é nem um consenso de fato nem uma pura idéia reguladora, nem o particular nem o universal, mas a singularidade, contida por exemplo na noção de estilo. Para tanto, o autor acentua a importância de uma finalidade indeterminada constituinte desse senso comum. Em outras palavras, a viabilidade dos juízos estéticos depende da sua capacidade de distanciamento em relação à ideologia que introduziria, na pura contingência, uma determinação.

A comunidade de gosto soa assim como uma boa representação de certas corporações de psicanalistas, fundadas na autoridade autêntica, na homogeneidade estilística e na solução estética para o tema do final de análise. Por outro lado, a solução antiassociativa ou grupalista para a questão não garante qualquer imunidade contra a replicação do mesmo argumento.

A linha argumentativa kantiana permanece estranhamente atual em nossos tempos. Os principais projetos éticos contemporâneos guardam uma proximidade com suas premissas. Vale lembrar o eco que a comunidade estética parece fazer com a tese de Habermas da comunidade de fala, com o relativismo pragmático de Rorty e sua noção de solidariedade, bem como a idéia de tradição na hermenêutica de Gadamer. Talvez a preponderância contemporânea de éticas fundadas segundo um raciocínio inicialmente estético aponte para uma transformação da ideologia na qual estamos imersos. Dizemos, com isso, que as formas de sustentação e ocultamento da realidade social migram progressivamente de discursos universais, generalistas e econômica ou religiosamente orientados para discursos que valorizam a idiossincrasia do indivíduo, sua relatividade e particularidade esteticamente constituída. Certas análises da cultura que importam conceitos psicanalíticos como, a de Zizek (1995), e, mesmo entre nós, a de Freire Costa (1984), destacam especialmente este movimento de estetização da subjetividade, acentuando sobretudo as noções de narcisismo e de imaginário. Zizek chega a postular que um modo privilegiado de pensar criticamente a cultura a partir da psicanálise seria por meio do exame do cinema. Isso porque a psicanálise estaria em posição estratégica para pensar a estetização de nossa vida social. Isto, é claro, se ela não for incorporada a esta mesma estetização.

Assinalada a crítica de Lacan ao fundamento estético da ética psicanalítica, visto o fortalecimento deste projeto na ideologia contemporânea, verifiquemos, agora, como de fato tal ideologia se apresenta no discurso da psicanálise de nossos dias , especificamente com relação ao tema do final do tratamento.

 

Estética do fim da análise nos pós-lacanianos:

A época do pós-lacanismo pode ser caracterizada por dois grandes momentos. No primeiro, podemos dizer que a controvérsia gira em torno da fixação e organização de um corpus de textos legítimos que comporiam a base da doutrina e linhas fundamentais de comentário e interpretação de acesso a ela. O segundo momento privilegia o desenvolvimento de doutrinas relativamente autônomas bem como a extensão do âmbito de reflexão a domínios não imediata e diretamente abordados por Lacan. Nesse desenrolar, o tema do final de análise foi afetado diretamente por uma circunstância extra-teórica: a aparição e consolidação de corporações psicanalíticas, de extração lacaniana, que teriam de resolver o espinhoso problema da formação de novos analistas. Espinhoso porque diversas indicações na obra de Lacan e sucessivas experiências institucionais por ele patrocinadas tinham como cerne ligar a experiência do fim de análise a aparelhos de pesquisa, propagação e legitimação de saber fundados em organizações psicanalíticas. Além disso, a autoridade que impregnava os textos de Lacan sobre a clínica, sobre a metapsicologia e sobre a ética se via naturalmente transportada para suas teses sobre instituições psicanalíticas sem que se percebesse como clareza a distinção que separa estes campos. Assim, a questão do final de análise tornou-se simultaneamente a questão da forma de organização de psicanalistas. As diversas cisões, coalizões e desmembramentos institucionais que caracterizam o período pós-lacaniano talvez possam ser compreendidos também à luz da complexidade deste problema.

Escolhemos trabalhar esta vertente de nossa questão a partir das posições de autores ligados à Associação Mundial de Psicanálise. Isto se justifica pela presença significativa deste grupo no Brasil e em São Paulo mas também porque há nele, características que o tornam especialmente sensível à penetração do que chamei de ideologia estética, a saber: subserviência à doutrina institucional, discurso tendente à homogeneização (com segregação de diferenças) e forte personalismo estético de lideranças.

Comecemos pelo discurso "oficial" sobre o assunto contido em relatório da AMP (1995), voz do que se pode chamar circuito de garantia e legitimação da conclusão do tratamento analítico. Para esta posição, o final de análise só pode ser pensado na sua relação com um dispositivo proposto por Lacan em 1967 - o passe. Tal dispositivo, quando pensado em termos institucionais compreende sucintamente três etapas:

a) relato da análise, feito por um analisante a dois passantes (nomeados pela Escola);

b) relato do relato da análise feito pelos dois passantes a um júri (Cartel do Passe);

c) anúncio da aprovação ou desaprovação do passe (nomeação como Analista de Escola).

Fazer com que analistas falem, de modo sistemático, de suas análises é um movimento original e de grande interesse para o avanço da pesquisa psicanalítica. Introduz um arejamento clínico substancial para a questão. No entanto, o risco de tal procedimento é proporcional aos eventuais ganhos. No fundo, quando um analista fala sobre ou julga outra análise, ou relato desta, a possibilidade de que este extrapole os limites de sua apreciação estética do que é uma análise e do que não é torna-se iminente. Em outras palavras, parte-se de um juízo subjetivo e procura-se transformá-lo em um universal objetivável. Este universal é na verdade é um mero consenso coletivo, uma vez que não há critérios, o que nos impede, então, de dizer que estamos diante de um juízo de estrutura estética? Juízo que tem como particularidade eclipsar o sujeito que o enuncia, e, consequentemente, seus interesses.

A questão se torna mais aguda quando se desconhece o fato elementar de que a expressão "psicanalista" quando aplicada fora do contexto do dispositivo de tratamento é um mero traço de identidade, como tal sujeito às mesmas vicissitudes de qualquer outro grupo humano. Mas este desconhecimento faz com que se procure deslocar, sem as mediações eventualmente necessárias, a ética da psicanálise para a ética das organizações psicanalíticas. Como observa Kupermann:

"Uma sutil estratégia, na qual problemas referentes à organização institucional e burocratização dos poderes é traduzida para a esfera de uma ética transcendental" (1995:31)

Ocorre que a expressão "ética transcendental" é uma forma explícita de violação de pressupostos, isto implica que ela não pode apresentar-se diretamente como tal. Por isso propus que para este movimento de justificação guiado pelo uso livre de conceitos teóricos, aplicados à esfera das corporações, a expressão ideologia estética. Mas vejamos então como ela se manifesta no discurso sobre o produto do passe.

Os informes dos cartéis do passe (AMP, 1995) assinalam como características do final do tratamento transformações subjetivas divididas em dois grupos: relativas a travessia do fantasma e, as relativas ao sintoma. Quanto à vertente do sintoma, parece haver razoável consenso na verificação da emancipação da coerção transferencial e de sua satisfação adjuvante, a instalação da posição de luto decorrente e no consentimento quanto ao reduto incurável do sintoma. Os aspectos ligados à ética da eficácia mostram-se assim os menos polêmicos.

Quanto à vertente do fantasma, que implica mais diretamente os temas da demanda, da pulsão e do chamado "componente libidinal da análise" (p.151), as posições são mais controversas. Fala-se, por exemplo, na "existência de um fim estruturado como um clarão, para surpresa do sujeito" (p.166).

Quanto à posição do Outro, dividiu-se o acesso ao significante de sua falta [S (A barrado)] em três modos de manifestação do impossível: o indemonstrável, o indecidível e o incompleto. Esses três modos indicariam a forma como o sujeito se dá conta da inconsistência do gozo do Outro. Ao atravessar seu fantasma, que é o que provê este gozo de consistência, o sujeito abalaria as condições que tornam possível a transferência (sujeito suposto saber) e a formação de sintomas (o objeto a). Paradoxalmente estes três modos de inconsistência são apresentados como tipos de crenças deixadas pela análise. Textualmente: "o sujeito não acredita mais na ficção mas reconhece nela sua aposta" (1995:160). Posteriormente, esse aspecto do problema é ampliado:

"…percepção do resto de gozo com o qual o sujeito vai se satisfazer, o resto de fixação que faz surgir uma série de ‘quatro in’: ininterpretável, incurável, inconsistente, indecidível, cuja causa é a não-relação sexual." (AMP,1998:117)

Ao todo, portanto, nada menos que seis vertentes procuram sinalizar os limites da eficácia do tratamento psicanalítico. Seis versões da presença do mais além do rochedo da castração freudiano. Mas a solução para este resto de gozo justifica ainda que se fale em um "saldo cínico" da análise, pois o sujeito não acredita mais no fundamento de sua aposta e mesmo assim a mantém.

Chega-se assim à transformação das máximas lacanianas sobre o final do tratamento em um sistema de crenças fortemente vinculado à perseveração da corporação de psicanalistas. Fala-se do final de análise desembocando em um "desejo pela Escola", em "lógica da política analítica", em dimensão "política, clínica e epistêmica do passe", em "beatos do fim de análise", em "causa analítica" (identificada à causa da corporação), em "autoridade autêntica" (Miller, 1998:13). São expressões que sugerem que se acrescente algo ao sujeito ao final de sua análise, próprio como vimos, da ética da eficácia sugestiva, uma vez que fala-se em crenças. Tal eficácia é, contudo, duplamente ilegítima, já que, como mostramos, o mais além do terapêutico se regula pela ética da excelência.

Além disso, o que se acrescenta é francamente atravessado pela intersubjetividade estética quando se liga ao "reino de Deus na terra", ou seja, à corporação de psicanalistas e seu sistema de crenças correlato. Ora, por que tal sistema de crenças não pode ser apresentado como tal ? Isso teria como consequência imediata a assunção de que a ética de tal corporação psicanalítica está fundada na sugestão, o que seria inadmissível como programa declarado. Para contornar esta dificuldade a unidade da doutrina desdobra-se em unidade política e esta em unidade de crenças. A tendência ao fechamento em torno do Um, e a consequente recusa da multiplicidade, mostra-se assim necessária para que se passe do consenso estético para a verdade doutrinal. Mas como se poderia ainda objetar que a ética assim colocada se distancia da sugestão e viola, em segundo nível, o pressuposto freudiano da via de levare ?

Uma solução possível para este impasse seria argumentar que a ética que se transmite ao sujeito não acrescenta algo ao sujeito da mesma maneira que a sugestão. Ora, a sugestão opera justamente segundo o esquema da intersubjetividade estética supondo uma comunidade de coincidentes como horizonte e eliminando ou incorporando a dissensão no seu interior. Não é por acaso que as últimas e mais sólidas formulações de Freud sobre a sugestão encontrem-se justamente no artigo sobre a "Psicologia de massas e análise do eu" (1921c), mais precisamente na tese que na sugestão o ideal de eu do sujeito é recoberto pelo objeto. Portanto, a ética da sugestão, própria da corporação psicanalítica, assim considerada, não é nem redutível, nem comensurável à ética do tratamento psicanalítico. A proposta de Lacan de fazê-las convergentes sob a temática do fim da análise continua um desafio; desafio que passa pelo reconhecimento das diferenças implicadas e pela eventual pesquisa sobre um solo comum que poderia eventualmente resolver tal contradição. A ideologia estética, longe de solucionar o problema, simplesmente faz que não o percebamos com clareza.

A ética da psicanálise pode ser agora contrastada com as teses sobre o final de análise numa perspectiva crítica. É possível ler a destituição do sujeito e o esvaziamento do gozo como experiências estéticas, prenunciadas pelo clarão e pela revelação da verdade última de que não há verdade a não ser a da ficção. Não há ideal último senão o ideal do fim dos ideais.

Vemos que a ética da psicanálise, nesta leitura, foi francamente colonizada pela estética, traindo a separação originalmente proposta por Lacan entre estes dois campos e convergindo com o movimento ideológico de nossos tempos. De fato, é preciso reconhecer no cultivo do indizível, do intratável, do indemonstrável, do inconsistente, do indecidível traços característicos do que Eagleton (1993) chamou de estética negativa, associada ao pós-modernismo, a saber: a colocação do desejo no lugar dos ideais transcendentais, o pessimismo libertário e o relativismo cético.

A idéia de que se poderia verificar certas crenças no sujeito e fazer disso invariantes do final do tratamento não perde seu peso se estas crenças recaem sobre negatividades. Ela mostra, ao contrário, a positividade da crença na falta: falta-a-gozar no caso do fim de análise dos homens e falta-a-ser no final de análise de mulheres, acrescenta o referido informe da AMB (1995:160).

A comunidade estética se veria assim traduzida pela comunidade de analisados. Ao invés da crença iluminista do consenso dos gostos e da reunião do particular ao universal, a tese psicanalítica supõe que o gosto não pode ser universalizado, mas a tese é em si mesma universalizável. Trata-se nesta linha apenas de inverter os sinais do objeto estético, negativizando-o, sem, no entanto, alterar a estrutura da questão.

Em paralelo a este movimento, podemos assinalar, no discurso lacaniano contemporâneo, o uso de fórmulas algébricas e geométricas como mera retórica visual, vale dizer, de persuasão estética sem os ganhos que as formalizações assim orientadas podem oferecer. A conhecida crítica ao discurso lacaniano pode ser acolhida neste sentido como uma pertinente crítica, não apenas ao estilo, mas à estilização, ao valor conferido ao "belo dizer". Assim, eventuais diferenças de comentário ou interpretação da doutrina transformam-se em questões de hegemonia estilística. Em decorrência disso a própria clínica psicanalítica pode se tornar o lugar para a reprodução da ideologia estética.

Igualmente, o barroquismo repetitivo tradicional deste estilo, menos do que um sintoma da cultura intelectual brasileira, pode revelar ainda uma conhecida legitimação estética das formas de alienação no discurso psicanalítico.

O risco maior na estetização do final de análise é a "falicização" das subjetividades assim engendradas. Sua utilização, portanto, como instrumento de justificação para uma política, aliás bastante contemporânea, que, na ausência de justificativas éticas, engendra-se por critérios de gosto e da primazia da vida privada. A autoridade estética é neste sentido cruel, pois justamente não pode ser imediatamente questionada sem ser percebida como uma hegemonia equivalente e de igual textura.

Notas

(*) A primeira versão deste ensaio foi apresentada no Congresso Interamericano de Psicologia, PUC-SP, 1997 na mesa redonda Teoria da Sociedade e Cura Psicanalítica

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- Função e Campo da Palavra e da Linguagem em Psicanálise (1956)

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 10 - Diciembre 1999
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