Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Vetores para uma cartografía freudiana
Monah Winograd

"Enquanto se ocupava com isso, a pesada lâmpada de peltre, suspensa por correntes acima de sua cabeça, a oscilar continuamente com o jogo do navio, projetava-lhe raios volúveis e sombras de linhas na fronte enrugada, até quase parecer que, enquanto ele assinalava linhas e rotas nas cartas encarquilhadas, algum lápis invisível também traçava linhas e rotas na carta profundamente marcada de sua testa.

Mas não era apenas naquela noite isolada que Acab, na solidão de seu camarote, meditava sobre suas cartas. Tirava-as quase todas as noites; quase todas as noites algumas marcas de lápis eram apagadas, para surgirem outras em seu lugar. Pois, com as cartas dos quatro oceanos à sua frente, Acab estava tecendo um labirinto de correntes e redemoinhos, com vistas à mais precisa concretização daquela monomaníaca idéia que acalentava na alma."

— Moby Dick, Herman Melville

O Problema

Nos últimos anos pudemos acompanhar de perto, pois os jornais noticiavam-nas com uma freqüência estonteante, as "descobertas" das neurociências e da genética, esta última celebrando o andamento veloz de seu mais ousado projeto, o Projeto Genoma Humano. Trata-se de um mapeamento e de uma análise completos de cada um dos genes contidos em cada cromossoma humano. Os que estão empenhados neste projeto acreditam poder determinar no corpo humano, no código genético, o modo possível e a direção futura de sua existência. Ou seja, decompõe-se a célula, o gene, o cromossoma, na tentativa de estabelecer uma cadeia causal, provando que o ser humano, inclusive seus modos de conduta, podem ser definidos como uma história natural, como o resultado de uma fabricação que determina, de antemão, suas potencialidades.

Seguindo a mesma direção, as neurociências não hesitam em afirmar que o pensamento pode ser definido a partir de bases neurobiológicas, procurando estabelecer uma identificação pura e simples entre um fenômeno mental e sua tradução em termos de neurônios, sinapses, etc. O que faz problema não é tanto a correlação que pode ser assim estabelecida, mas o pressuposto implícito de que esta correlação é de tipo causal, ou seja, de que os processos neurobiológicos (assim como o código genético) seriam as causas materiais do pensamento, dos estados de espírito, do comportamento e mesmo dos diversos modos de existência do ser humano. Daí, para a intervenção direta — produtora de alterações, tanto no funcionamento neuroquímico do cérebro, quanto nos genes — foi um passo. O conhecimento do modo de funcionamento do corpo humano teria se desenvolvido de tal forma que, hoje, seria possível alcançar a felicidade ingerindo medicamentos com regularidade: alterar os níveis de serotonina no cérebro tornou-se a solução universal para os problemas existenciais do homem.

A reação a estas descobertas foi, e ainda é, basicamente, de dois tipos: ou bem anuncia-se a morte de todos os saberes que, como a psicanálise, operam com outros registros além do corpo material e biológico; ou bem ataca-se a intervenção direta no corpo, como se esta ameaçasse a própria dignidade humana. Como se as alternativas fossem somente duas: ou render-se às evidências científicas e admitir que o corpo — neuronal e genético — determina as formas de pensar e agir dos homens, ou inflamar-se contra todo e qualquer materialismo, afirmando que apenas o espírito importa.

Não há dúvidas de que intervenções no corpo, como as terapias genéticas e neuroquímicas, produzem efeitos verificáveis empiricamente, tanto no registro físico, quanto no registro psíquico. Porém, por serem verificáveis somente empiricamente, tais efeitos não podem ser indicados ou previstos, sobretudo no registro psíquico, como pretende a ciência: observar e verificar a união entre corpo e pensamento não conduz necessariamente à submissão de um ao outro por um modo de relação causal.

Por isso, a psicanálise é novamente chamada a fazer valer a fineza e a pertinência de seus conceitos, contribuindo de modo decisivo e interessado neste debate. A discussão de Freud com a neurologia do final do século XIX parece retornar à pauta do dia em caráter de urgência. Com evidências cada vez mais detalhadas, atribui-se ao corpo humano a explicação natural da formação, dos comportamentos, do pensamento e das transformações históricas dos seres humanos — o pensamento (entenda-se todo o campo simbólico e imaginário, por definição produto e produtor do humano) corre o risco de ser reduzido a apenas um epifenômeno do corpo, operações ou processos cerebrais, bem como determinadas configurações de genes.

Embora raramente abordado em si mesmo e por si mesmo, o problema da relação entre o psíquico e o somático permeia praticamente toda a elaboração freudiana, figurando claramente em, pelo menos, dois textos fundamentais: A Interpretação das Afasias (1891) e Projeto para uma Psicologia Científica (1895). Nestes textos, Freud declara abertamente sua preocupação em elaborar, no quadro de uma linguagem científica específica, um conceito de psíquico independente do conceito de fisiológico. Ao levar em consideração a significação dos conteúdos psíquicos, ele coloca em questão a identificação — estabelecida já naquele momento e reeditada na atualidade — entre os processos psíquicos e o funcionamento fisiológico do cérebro; identificação operada, no final século XIX, pela tese fisicalista, cujos representantes mais eminentes eram Helmholtz e Brücke. Contudo, colocar em xeque a identificação entre psíquico e somático não resulta necessariamente no descarte das correlações entre estes dois registros. Freud recusa tanto a redução de um registro ao outro, quanto a suposição de uma autonomia entre eles. O psíquico e o fisiológico são concebidos como séries paralelas:

"Verossimilmente, a cadeia dos processos fisiológicos no sistema nervoso não está em relação de causalidade com os processos psíquicos. Os processos fisiológicos não cessam mal se iniciam os psíquicos, pelo contrário, a cadeia fisiológica prossegue, só que, a partir de um certo momento, a cada seu elemento (ou a cada um dos elementos isoladamente) corresponde um fenômeno psíquico. O psíquico é assim um processo paralelo ao fisiológico ('a dependent concomitant').".

Se os processos fisiológicos — portanto, o corpo em sua materialidade — são a condição de possibilidade dos processos psíquicos, estes últimos, por sua vez, não se reduzem aos primeiros e nem são independentes: são dois "registros" diferentes articulados entre si. Ora, se as séries são paralelas, não pode haver eminência do físico sobre o psíquico, ou vice-versa: o que afeta o corpo, afeta necessariamente o espírito, e qualquer ação no espírito é necessariamente ação no corpo. Depender do corpo é uma coisa, ser apenas um epifenômeno dele é outra — nem materialismo reducionista, nem metafísica. Mas, então, é preciso perguntar: de que natureza é a relação entre psíquico e somático? Como Freud resolve, se é que o faz, com que conceitos ou noções ele o faz e em que momentos de sua obra?

Neste ensaio, pretendo traçar os primeiros traços, os rabiscos iniciais de um mapa complexo que, uma vez desenhado, permitirá uma visão global do pensamento freudiano e de suas vizinhanças, segundo o ponto de vista do problema das relações entre somático e psíquico. Problema que, de resto, atinge o próprio exercício da clínica psicanalítica, não se restringindo somente a especulações teóricas. Por exemplo, como entender as doenças psicossomáticas? Como pensar as influências da análise no processo incessante de individuação? Como explicar os efeitos da experiência psicanalítica nos indivíduos, levando em consideração as "descobertas" da neurobiologia? São questões que acompanham silenciosamente o movimento realizado nas páginas que se seguem.

O primeiro destes movimentos foi o de retração. O campo psicanalítico é vasto, formado por diversos outros subcampos que se aproximam e se afastam entre si, de acordo com suas configurações internas, e cujas fronteiras nem sempre são facilmente discerníveis. Minha intenção cartográfica será circunscrita especificamente ao pensamento de Freud, com o desejo de que, assim como o capitão Acab, com o auxílio dos mapas, pode encontrar sua Moby Dick para nela se perder, também eu e o leitor possamos navegar pelos mares freudianos, perdendo-nos mais do que encontrando-nos. Neste ensaio, alguns textos fundamentais não serão trabalhados, nem nosso mapa abrangerá a totalidade da obra. Proponho apenas duas linhas ainda míopes, dois vetores ainda cegos, que testemunham o segundo movimento, uma pequena expansão.

O órgão anímico

Sobretudo no início de sua obra, Freud preocupava-se em descrever o modo de funcionamento "normal e patológico" do sistema nervoso e da atividade psíquica. Seu contato com pacientes que apresentavam alterações no funcionamento psicofísico, sem lesões aparentes, colocara-o frente a um problema insolúvel para a medicina e a neurologia de sua época. No final do século XIX, a especificação das variações somáticas ligadas a este tipo de afecções fundava-se em especulações e, mesmo sem verificação empírica, a premissa era sempre a da determinação do psíquico pelo somático. Ainda que as variações físicas correspondentes à uma afecção qualquer fossem desconhecidas, sua existência não só era suposta, como era necessariamente determinante. Neste contexto, Freud lança mão do que aprendera com seus professores, na tentativa de contribuir para o conhecimento "científico" da mente humana. Mas, pouco à pouco, distancia-se deles para apresentar seu ponto de vista singular.

A juventude de Freud contribuía para sua simpatia por métodos de tratamento inaceitáveis para a tradição positivista. Ao contrário de seus mestres, Freud via no hipnotismo uma alternativa possível para os "doentes" que não encontravam alívio através dos tratamentos clássicos. Mais especificamente, o hipnotismo permitia eliminar sintomas cujas causas não eram visíveis, mas apenas especuladas. Contudo, a simpatia de Freud por este novo método de tratamento justificava-se, mais profundamente, por uma posição própria e diferenciada relativamente às relações entre o sistema nervoso e a atividade psíquica. Embora assumisse como válidas as descrições fisiológicas empreendidas por Brücke e Meynert, partilhando e apropriando-se delas, Freud levava às últimas conseqüências o que aprendera sobre o paralelismo psicofísico.

No ano de 1888, publica um artigo entitulado 'Histeria', num Dicionário de Medicina Geral, no qual é possível entrever algumas de suas concepções sobre as relações entre sistema nervoso e psiquismo. Já na parte I, pode-se encontrar uma passagem na qual, surpreendentemente, Freud declara que a histeria baseia-se inteiramente em modificações fisiológicas do sistema nervoso, ainda que não esteja relacionada a nenhuma alteração anatômica. Adiante afirma, aparentemente contradizendo-se, que as afecções físicas próprias da histeria (paralisias, ataques, etc.) não refletem uma possível perturbação orgânica, pois não correspondem ao que usualmente acontece nestes casos. Trata-se, em verdade, de alterações no decurso e na associação das representações. Em resumo, a histeria revela modificações (por causas não-orgânicas) na distribuição normal das magnitudes estáveis de excitação sobre o sistema nervoso. Mais ainda, nestes casos, o influxo dos processos psíquicos sobre os processos físicos do organismo estaria aumentado, devido a um excedente de excitação (o famoso fator traumático), exteriorizado através de inibições e estimulações, e deslocando-se livremente no sistema nervoso.

Ora, nestas poucas páginas é possível perceber — além das referências que denunciam sua tênue e polêmica filiação aos mestres Brücke e Meynert (como, por exemplo, a noção de associação de representações e a suposição da passagem de magnitudes estáveis de excitação pelo sistema nervoso) — o modo como Freud pensava as relações entre as séries psíquica e somática. A cada configuração somática das forças em ação no sistema nervoso, ou segundo o punho de Freud, a cada 'estado encefálico' corresponderia um 'estado de alma', sem que a relação seja causal: as relações são recíprocas e as séries estão enlaçadas. É isto que permite o deslizamento e a indecisão, embaraçosos para o leitor, entre a utilização de termos psicológicos e fisiológicos: são dois modos de descrever um mesmo processo.

Se era realmente este o seu ponto de vista, nada mais coerente do que considerar o método hipnótico como uma possibilidade interessante no tratamento de algumas afecções. Em seu 'Prólogo a tradução de H. Bernheim, De la suggestion', também de 1888, Freud apresenta o problema de como o hipnotismo deveria ser considerado, se como um fenômeno psíquico (desencadeado a partir da 'sugestão') ou como um fenômeno físico e fisiológico. Como era de se esperar, ele não assume nenhuma das duas posições. Ao contrário, empenha-se em descrever, tanto os processos fisiológicos, quanto os processos psicológicos envolvidos e justifica seus argumentos concordando com Bernheim sobre o equívoco em classificar os fenômenos hipnóticos como puramente fisiológicos ou puramente psíquicos. Trata-se, na verdade, de um processo de dupla face que implica, simultaneamente, variações psíquicas e fisiológicas. A especificação, de acordo com sua natureza, dos mecanismos em ação na hipnose deve, portanto, ser considerada um falso problema: "Creio, então, que é preciso desautorizar a pergunta sobre se a hipnose mostra fenômenos psíquicos ou fisiológicos, e submeter a decisão a uma indagação especial para cada fenômeno singular.". Ou seja, de acordo com o registro de incidência da investigação, um determinado fenômeno (no caso, especificamente o hipnotismo) será psíquico ou fisiológico, mental ou corporal — o que faz da decisão por um determinante último uma questão irrelevante.

Finalmente, as relações entre o anímico e o corporal são o mote principal de ainda outro texto, escrito em 1890 para um manual de medicina (Die Gesundheit). Versando novamente sobre o polêmico tratamento hipnótico, Freud revela explicitamente seu ponto de vista sobre o próprio hipnotismo, a medicina de seu tempo e, sobretudo, o paralelismo psicofísico. A passagem é bastante clara e revela a atitude singular de Freud frente ao modo como seus colegas médicos pensavam a vida anímica:

"É verdade que a medicina moderna teve ocasião suficiente de estudar os nexos entre o corporal e o anímico, nexos cuja existência é inegável; mas, em nenhum caso, deixou de apresentar o anímico como comandado pelo corporal e dependente dele. Destacou, assim, que as operações mentais supõem um cérebro bem nutrido e de desenvolvimento normal, de sorte que resultam perturbadas toda vez que esse órgão se enferma; (...). A relação entre o corporal e o anímico (no animal, tanto como no homem) é de ação recíproca; mas, no passado, o outro flanco desta relação, a ação do anímico sobre o corpo, encontrou pouca honra aos olhos dos médicos. Pareciam temer que, se concedessem certa autonomia à vida anímica, deixariam de pisar o terreno seguro da ciência.".

Adiante, vemos a neurose ser surpreendentemente definida como uma afecção do sistema nervoso em seu conjunto, embora não tenha sido possível comprovar alterações cerebrais visíveis — em resumo, são alterações funcionais do sistema nervoso. Ora, se as relações entre o anímico e o corporal são supostas como recíprocas, a neurose (entendida como um modo diferenciado de atividade psíquica) implica necessariamente uma variação na configuração material dinâmica do sistema nervoso, mesmo que não possa ser verificada empiricamente. Mais uma vez, o problema da verificação empírica deve ser descartado na medida em que, como vimos, a premissa é a de que trata-se de dois modos possíveis e legítimos de descrição de um mesmo acontecimento.

Contudo, a argumentação de Freud pretende demonstrar que se, de um lado, estas alterações do sistema nervoso em seu conjunto podem ser causadas por variações fisiológicas, por outro lado, elas também podem ter como causa imediata variações nos processos anímicos — este seria especificamente o caso da histeria. A premissa desta formulação é a suposição de que o pensamento provoca variações e exteriorizações corporais (além de alterações no sistema nervoso) de acordo com o conteúdo das representações. Por si só, isto já justificaria a retomada do pólo deixado de lado pela 'medicina moderna' do final do século XIX, trazendo para o primeiro plano a questão da ação recíproca entre o corporal e o anímico.

Neste ponto, devemos perguntar: de que modo a articulação entre o físico (no caso, especificamente o sistema nervoso) e o psiquismo será pensada por Freud? Como se dá, segundo sua perspectiva, a passagem de um registro ao outro?

Em 11 de janeiro de 1893, Freud faz uma conferência, no Clube Médico de Viena, sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, na qual se sublinha, classicamente, a preponderância dada ao fator traumático na etiologia da histeria, o que revelaria a forte influência de Charcot nas formulações freudianas. Porém, mais do que na simples especificação do fator traumático, a importância deste texto está na apresentação de algumas idéias básicas (sustentáculos da própria postulação de um fator traumático na etiologia da histeria) das quais derivará o delineamento de um modelo de funcionamento ou de aparato psíquico. A primeira destas idéias a ser expressa na argumentação do texto é a correlação entre uma impressão psíquica e o acréscimo, por vias sensoriais, de uma 'soma de excitação' no sistema nervoso. Noutras palavras, a cada impressão psíquica corresponderia uma variação neurofisiológica. Uma vez que, em todo indivíduo, existiria o afã de tornar a diminuir esta soma de excitação, o sistema nervoso reagiria, por vias motores, no sentido da descarga da quantidade recebida. Desta reação depende "o quanto restará da impressão psíquica inicial", ou, em termos fisiológicos, o quanto restará da soma de excitação recebida anteriormente pelo sistema. A reação adequada seria aquela que descarrega a mesma soma recebida. Até aqui, tudo parece ter sido importado de Brücke e Meynert: o sistema é impactado desde fora por uma soma de excitação, correspondente a uma impressão psíquica, e trabalha no sentido da descarga desta excitação por vias motoras — modelo reflexo.

Porém, para Freud, a reação adequada é sempre da ordem da ação, mesmo que esta ação seja a enunciação de palavras. Se o acréscimo de excitação no sistema for pequeno, a reação será somente alterações leves no próprio corpo, como chorar, insultar em resposta, etc. Por outro lado, quanto mais intensa for a impressão psíquica recebida (o termo utilizado por Freud é "trauma psíquico", mesmo quando ele se refere à soma de excitação adequadamente descarregada), maior será a reação. Ainda, quando o processamento motriz ou por palavras estiver impedido, o mecanismo psíquico pode reagir fazendo tramitar a excitação pela cadeia associativa. Ou seja, de certo modo, o pensamento e a fala, não só são formas de descarga, como são disparados por somas de excitação, não necessariamente provenientes do mundo externo, que impactam o sistema nervoso e nele tramitam. Novamente os processos fisiológico e psíquico são paralelos e interdependentes: cada evento psíquico corresponde a um evento fisiológico, e vice-versa, o que permite que o processamento associativo seja considerado como uma forma possível de descarga.

Ao se referir aos mecanismos psíquicos de descarga, Freud utiliza o termo "afeto" para designar a quantidade em tramitação e a que é descarregada. Isto leva a supor ser o afeto um modo de expressão psíquica das excitações recebidas e em trânsito no sistema nervoso. Tanto que, um ano depois, Freud afirma, adiantando um dos pilares de toda a sua construção conceitual posterior, que, nas funções psíquicas, deve-se distinguir um monte de afeto ou uma soma de excitação que possui todas as propriedades de uma quantidade — embora não seja mensurável, pelo menos naquela época —, capaz de aumento, diminuição, deslocamento e difusão pelas vias mnêmicas, "(..) como o faria uma carga elétrica pela superfície dos corpos.". A imagem não parece ser ingênua ou casual. Com efeito, neste momento, a correlação ostensiva dos processos psíquicos com os processos fisiológicos permite a conclusão de que o monte de afeto seria, de fato, a expressão psíquica de uma carga elétrica (a soma de excitação), difundindo-se pelo sistema e, correlativamente, pelas vias associativas. Se é assim, parece impossível separar os acontecimentos psíquicos de seus correspondentes (neuro)fisiológicos e vice-versa — o cérebro torna-se a fábrica da alma.

Mas, se o paralelismo e as conseqüentes relações recíprocas entre as séries física e psíquica destacam-se quase espontaneamente do texto freudiano, o problema de como esta relação ocorre permanece em aberto: como se chega de uma série à outra? Embora, aparentemente, este problema perca terreno ao longo da elaboração da psicanálise, neste momento, ele é minimamente resolvido com a noção chave de limiar.

Em resumo, até aqui, as hipóteses básicas de Freud sobre o funcionamento do sistema nervoso e do psiquismo são as seguintes:

1.no sistema nervoso há uma quantidade de excitação em circulação, sendo que, a cada impressão psíquica recebida, corresponde um acréscimo nesta quantidade;

2.a fonte desta excitação é, tanto externa, quanto interna ao próprio organismo do qual o sistema nervoso é parte:

3.o sistema funciona no sentido da descarga das excitações recebidas, o que pode ser feito por vias motrizes, por processamento por palavras ou associativo — no caso das excitações de fonte exógena, basta qualquer reação que diminua em igual quantidade a excitação "psíquica" correspondente. No caso das excitações de fonte endógena, só valem reações específicas, ou seja, reações que impeçam que a excitação nos órgãos terminais correspondentes permaneçam sendo produzidas, não importando o gasto de energia exigido para este fim;

4.a soma de excitação pode ter expressão psíquica como afeto e é capaz de aumento, diminuição, deslocamento e difusão nas vias mnêmicas;

Uma apresentação sobre o mecanismo normal de tramitação da excitação recebida pelo sistema e das condições de sua transposição para o registro psíquico decorre da investigação sobre a angústia, em 1894. Neste momento, porém, as formulações de Freud referem-se exclusivamente às excitações sexuais, seja no plano somático, seja no plano psíquico. Diferenciando a angústia histérica, diretamente relacionada aos processos anímicos, da recém-definida neurose de angústia, Freud conclui que, nesta última, a angústia tem sua fonte em fatores físicos da vida sexual. A impossibilidade de transpor a tensão sexual física para o plano psíquico acarretaria um acúmulo exacerbado desta tensão e a conseqüente descarga motora através de taquicardias, hiperventilação, tremores, etc., caracterizando o estado de angústia.

Sua hipótese é a de que, para que uma excitação endógena se faça notar psiquicamente, ela deve atingir certo limiar, a partir do qual será valorizada, entrando em relação com certos grupos de representações que põem em cena a solução específica. Dito de outro modo, no caso da tensão física sexual, ela deve atingir um certo valor, uma certa quantidade acumulada, para que desperte a libido psíquica. Uma vez transposto este limiar, o grupo de representações sexuais presente no psiquismo seria dotado de "energia", ou seja, o estado psíquico de tensão libidinosa seria gerado e levaria ao esforço de cancelar esta tensão. Nota-se que não se trata aqui de 'transformação' de energia física em psíquica, mas de valorização psíquica de uma excitação recebida pelo sistema, isto é, a expressão psíquica de uma excitação física depende do grau de intensidade por ela atingido. Portanto, a noção de limiar parece ser bastante coerente com o paralelismo freudiano, resolvendo, ao menos provisoriamente, o problema da relação entre as séries, do ponto de vista do sistema nervoso.

Os prazeres da carne

Esquematicamente, o primeiro vetor de nosso mapa derivou da hipótese de Freud de que o sistema neuropsíquico é impelido a agir ao receber excitações endógenas e exógenas (é bom lembrar que o pensamento, entendido como processo associativo entre idéias, é considerado uma forma de agir). Pelo desdobramento da idéia de um paralelismo psicofísico, este vetor resultou na noção de limiar, com as formulações sobre as variações no modo de funcionamento do sistema nervoso, tendo em vista suas correspondências na atividade psíquica. O segundo vetor, composto de uma inflexão do primeiro e de uma retroação, inicia com a análise fenomenológica das variações observadas no exercício da sexualidade; englobando a formulação do conceito de pulsão sexual, em 1905, e retornando sobre seu ponto de partida, com a noção de apoio, sofrendo uma nova inflexão. Investigarei a seguir dois pontos de parada temporários deste segundo movimento de Freud, a saber, a dupla face do conceito de pulsão, tal como ele aparece em 1905, e a noção de apoio:

I. O termo alemão Trieb, pulsão, tem conotações e significados múltiplos. É uma espécie de força "interna" que impele à ação, algo como uma tendência, inclinação, vontade intensa, ânsia; mas é também uma força de origem biológica cuja meta é determinada, como a pulsão de mamar, no bebê. Antigo e pleno de sentidos, o termo designa, de modo geral, algo que propulsiona, incita, impele, põe em movimento, não deixa parar, enlaçando quatro momentos, do geral ao singular:

a)princípio geral do vivo;

b)força que se manifesta biologicamente, colocando os seres de cada espécie em ação;

c)estímulos e sensações manifestos no corpo somático do indivíduo, como se algo da biologia da espécie o impulsionasse, e;

d)algo que se manifesta para o indivíduo, representado subjetivamente como uma espécie de vontade ou imperativo pessoal.

Elevado à categoria de conceito no pensamento freudiano, o Trieb receberá, desde a primeira montagem, em 1905, sua mais célebre definição: é um conceito fronteiriço entre o psíquico e o somático. Uma fronteira é a parte de um território que entesta com um outro território, uma linha divisória não necessariamente fina. Nos trechos em que é vigiada e controlada, a fronteira é uma faixa de terra de largura extensa, pertencente simultaneamente a ambos os territórios, como uma zona de interseção. A pulsão, definida como fronteiriça, manifesta tal interseção ao guardar a dupla face de suas conotações: é somática, pois opera como uma força "biológica", derivando das excitações corporais endógenas e psíquica, mas é, simultaneamente, psíquica, pois se manifesta para o indivíduo como a representação desta força. Este é um dos aspectos que fazem com que os ensaios de Freud sobre a sexualidade, e conseqüentemente sobre as variações na atividade da pulsão sexual, sejam "(...) a parte da doutrina que faz fronteira com a biologia (...)", portanto, um de seus escritos que traz novamente à luz a problemática das relações entre somático e psíquico.

Tal problemática é expressa nas seguintes formulações, ainda restritas à pulsão sexual:

a)a pulsão sexual é natural aos homens e aos animais, assim como a pulsão de nutrição. Especificamente nos humanos, as moções sexuais estão entre as menos "dominadas pelas atividades superiores da alma" e, por oposição aos animais, não estão submetidas a nenhuma espécie de ciclo — a pulsão sexual é uma força constante, fluída e intensa que exige uma ação.

b)em sua origem, a atividade sexual se apoia nas funções orgânicas à serviço da conservação da vida;

c)o objeto sexual, aquilo que atrai sexualmente, é variável e não se confunde com a meta sexual, a saber, a ação para a qual a pulsão impele, a obtenção de prazer, a satisfação, e não a reprodução. Num primeiro momento, o prazer visado é o "prazer de órgão", local, pontual e eminentemente corporal;

d)os indivíduos apresentam diversas variações — cujos fatores podem ser contingentes ou constitucionais, embora a psicanálise só possa se ocupar dos primeiros — tanto com relação aos objetos sexuais eleitos, quanto com relação à meta sexual (entendida, neste caso, como a união dos genitais);

e)originariamente, a pulsão sexual é "perversa" em todos os indivíduos, ou seja, o que determinará a escolha dos objetos é entre outras coisas, os "diques do recalque", quais sejam, o nojo, a vergonha e a moralidade, que direcionam, restringem e determinam os caminhos de obtenção de prazer, circunscrevendo a sexualidade dentro das fronteiras consideradas normais, ou, por uma variação qualquer, configurando-a de modo diverso.

Os pontos (d) e (e) introduzem uma dimensão a mais, além das articulações da pulsão ao somático, evidenciadas em (a), (b) e (c): os fatores ditos contingentes e o estabelecimento dos "diques do recalcamento", que, unidos, determinarão um circuito pulsional preferencial, os objetos escolhidos e, de modo mais geral, a constituição da própria sexualidade. Noutros termos, a sexualidade (diferente da pulsão sexual "em si", pois engloba o conjunto das fantasias, identificações e escolhas objetais do indivíduo) constitui-se como tal desde fora, pois nada há, na pulsão, que especifique sua direção preferencial. Pelos encontros entre a força pulsional, com seus aspectos constitucionais singulares em cada indivíduo, e a exterioridade, a sexualidade (conjunto de idéias e atos) vai gradualmente ganhando forma, com a regulação dos prazeres e dos modos de sua obtenção. Por exemplo, segundo Freud, as zonas erógenas são marcadas e delimitadas nos corpos tanto por uma espécie de predisposição natural a algumas partes do corpo, como a boca ou o ânus, quanto pela ação de um outro indivíduo sobre este corpo, cujo modelo básico são os cuidados maternos, desde a amamentação até a higiene. Contudo, tal ação de um outro sobre o corpo do indivíduo ultrapassa o simples contato corporal, pois é determinada por um regime de signos (morais, por exemplo) particular e específico a um contexto histórico e cultural dado. Em resumo: um dos aspectos em jogo no conceito de pulsão sexual é a constituição da sexualidade, não apenas como o conjunto de ações que visam a obtenção de prazer, mas, sobretudo, como a implantação da subjetividade nos corpos.

 

II. Nota-se que o problema da relação entre o somático e o psíquico está, neste momento do pensamento freudiano, deslocado para a questão bastante complexa das origens e do estatuto da sexualidade e da atividade sexual, nos humanos. É importante atentar para o fato de que, nos ensaios sobre a sexualidade, não é o surgimento da pulsão sexual como tal que é interrogado, mas o aparecimento da exteriorização sexual na primeira infância. Desenhando uma espécie de vetor retroativo, a noção de apoio (só plenamente introduzida por Freud em 1915, ao efetuar a revisão do texto para sua 3a. edição) resolverá minimamente este problema:

"A atividade sexual se apoia [anlehnen] primeiro numa das funções que servem à conservação da vida, e só mais tarde torna-se independente delas."

"Esta [a exteriorização sexual infantil] nasce apoiando-se numa das funções corporais importantes para a vida; (...)."

Jean Laplanche propõe que a noção de apoio seja pensada como uma espécie de emergência, representada graficamente por um esquema composto de duas flechas, a da autoconservação e a da sexualidade, que, após um momento inicial de conjunção, separam-se progressivamente. Operada no plano da autoconservação, a intervenção de um outro indivíduo é a responsável pelo surgimento da excitação sexual e pela diferenciação progressiva da pulsão sexual, instalando a sexualidade. A idéia de sedução seria, portanto, um elemento chave da noção de apoio, aquilo que a torna fundamental para o pleno funcionamento da máquina conceitual freudiana, "salvando-a" de um encontro com a biologia.

Há, contudo, um complicador: no mesmo ano de 1915, em que as frases citadas acima foram incluídas no texto original de 1905, Freud escreve noutro texto, que "em sua primeira aparição [as pulsões sexuais] se apoiam nas pulsões de autoconservação, das quais somente pouco a pouco se desligam; (...)". Mas, em que sentido deve-se compreender esta idéia de que as pulsões sexuais apoiam-se nas de autoconservação? A primeira possibilidade é entendê-la em termos genéticos e de modo literal: as pulsões sexuais decorrem, nascem, derivam, emanam, provém das pulsões autoconservativas, temporalmente anteriores.

A segunda possibilidade, mais fecunda, é pensar o apoio como a relação inicialmente conjuntiva entre autoconservação e prazer. O apoio da sexualidade na autoconservação conotaria, então, uma espécie de qualificação e categorização afetiva originária, segundo o prazer ou desprazer sentido corporalmente. Esquematicamente, num primeiro momento o prazer era obtido de modo local e associado às funções corporais próprias à manutenção da vida, como a alimentação e a higiene, que, por sua vez, implicam a intervenção de um outro indivíduo. Num momento seguinte, o prazer adquire autonomia, podendo ser obtido, ainda localmente, por auto-estimulação, mas já sobredeterminado pela intervenção de um outro. Estes dois momentos estão incluídos no que Ferenczi chama de estágio autoplástico, no qual o indivíduo, ainda sem condições de uma ação efetiva no mundo externo, retorna sobre seu próprio corpo como fonte de prazer. Somente num terceiro momento, a sexualidade (fantasias, escolhas objetais etc.) ganha forma, entre outros fatores, pela inserção gradual do indivíduo num regime simbólico e imaginário — é o estágio aloplástico, no qual já é possível um processo de pensamento, e conseqüentemente, a intervenção direta no mundo externo com vistas à obtenção de prazer.

O que está subterraneamente em jogo na noção de apoio é a constituição do psiquismo em sentido lato, uma vez que a demarcação das zonas erógenas e a autonomização do prazer relativamente às funções orgânicas participam da montagem do aparato psíquico, com seus sistemas inconsciente, pré-consciente e consciente e suas instâncias, isso, eu e supereu. Mais do que uma discussão sobre o que é inato e o que é adquirido, ou sobre as origens da pulsão sexual e da sexualidade, a noção de apoio parece evidenciar o ponto de vista freudiano segundo o qual o indivíduo deve ser concebido "biopsíquicamente". Os tipos de encontros pelos quais o indivíduo passa em sua história estabelecem modelos, padrões imaginários que funcionam como lemes e direcionam escolhas.

Referências Bibliográficas

BRUNO, P. "Sur la formation des concepts freudiens de psychique / physiologique" in Lieux du corps, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 3, primavera 1971, Paris: Gallimard

Changeux, J.-P., O Homem Neuronal, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1985

FERENCZI, S., 'Fenômenos de Materialização Histérica' in Ferenczi - Obras Completas, vol. III, São Paulo: Martins Fontes, 1993

FREUD, S., A Interpretação das afasias, Lisboa: Edições 70, 1977

FREUD, S. 'Histeria' (1888) in Sigmund Freud - Obras Completas, Buenos Aires: Amorrortu, 1995 (os textos listados abaixo referem-se, todos, a esta edição. Indicaremos apenas o ano de sua publicação e volume no qual se encontram)

HAANS, L., verbete: Pulsão, Instinto: Trieb in Dicionário Comentado do Alemão de Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1996

LAPLANCHE, J., Freud e a Sexualidade, O Desvio Biologizante, Rio de Janeiro: Zahar, 1997

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 6 - Diciembre 1997
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