Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Sobre os conceitos de público e privado, e suas relações com a psicanálise
Nadja Nara Barbosa Pinheiro

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Nos últimos anos, os modos de relações estabelecidos entre as esferas pública e privada têm sido foco de reflexão freqüente. Nossa intenção, no presente artigo, é a de promover uma articulação entre os modos de relação assumidos entre essas esferas e a teoria psicanalítica e o exercício de sua clínica. Para tal, iniciaremos focalizando a passagem do século XIX ao XX, para nele explicitarmos como a relação público / privado, nesse momento histórico, permitiu a emergência de uma subjetividade clivada relacionada intrinsecamente com uma concepção de homem identificada a um sujeito do desejo inconsciente. Noções estas, tão bem capturadas e trabalhadas por Freud na construção de sua obra.

Posteriormente, nossa atenção se centralizará na atualidade, momento no qual, como alguns autores apontam (Baudrillard, 1981; Debord, 1977; Freire-Costa,1994, 2002) essas esferas, interpenetradas e confusas, não podem mais exercer uma função ordenadora nem da sociabilidade e nem das individualidades. Assim, observa-se a emergência de uma concepção de homem identificado a um objeto de manipulação de determinantes externos. O que nos leva a questionar se essa nova configuração social e subjetiva seria indicativa de uma necessidade de reflexão sobre os aportes teóricos que sustentam a clínica psicanalítica na atualidade.

Encontros e desencontros na modernidade: os domínios público/privado e construção da subjetividade.

Partindo das transformações políticas, sociais, filosóficas e econômicas que se apresentaram nas principais capitais européias entre os séculos XVII e XIX, destacaremos a seguir três aspectos específicos e importantes para nosso estudo em particular:

- o estabelecimento, contemporâneo à emergência dos Estados Absolutistas e o concomitante processo de secularização do mundo, de uma cisão do campo social em dois espaços distintos: o público e o privado, elucidando os seus domínios de competência e suas formas de inter-relação ;

- o processo de consolidação da esfera privada através do qual a privacidade recebeu uma valorização não desfrutada anteriormente, conquistando meios e formas de expressão cada vez mais contundentes reveladas por inúmeras produções artísticas, cientificas, arquitetônicas e filosóficas;

- o processo de sobreposição entre os imaginários público e privado, tributário e concomitante às transformações econômicas (capitalismo industrial), sociais (técnicas disciplinares) e ideológicas (utilitarismo) e suas conseqüências para a estruturação subjetiva.

Nesse percurso, dois autores serão utilizados de uma forma próxima. A tese de Luiz Cláudio Figueiredo (1996), segundo a qual podemos compreender os processos de constituição da subjetividade moderna como sendo pautados nas lutas e acomodações impetradas entre as esferas pública e privada, nos fornecerá as bases necessárias para traçarmos, inicialmente, o caminho de instauração, no campo social, da cisão entre essas duas esferas, na modernidade, e as transformações sucessivas que sobre elas pesaram entre os séculos XVI e XVIII.

Posteriormente, Richard Sennett (2000) e sua interpretação de que podemos considerar o evidente desequilíbrio contemporâneo entre as esferas pública e privada como tributário de um longo processo histórico, cujas raízes remontam ao período do Antigo Regime, nos ajudará a evidenciar, no século XIX, que pontos de toque e de interseção público/privado se encontravam presentes no contexto cultural novecentista, impondo conseqüências decisivas para a estruturação da dividida e ambígua subjetividade emergente no início do século XX.

O campo social dividido: entre o público e o privado.

Segundo Dumont (1981), podemos detectar alguns pontos de referência cruciais para o entendimento do desenvolvimento das sociedades ocidentais na modernidade. Entre esses momentos, nos interessa destacar a ascensão dos Estados Absolutistas na Europa, no transcorrer do século XVI, e o concomitante declínio do poder, principalmente ideológico, da Igreja. Tal fato possui uma importância particular para nosso estudo, pois, a partir dele, novos sistemas de inteligibilidade do mundo puderam ser construídos. Na medida em que uma perspectiva religiosa impõe uma concepção dogmática, e, portanto, autoritária, na qual a Verdade já aparece como um dado íntegro e completo que impede o exercício reflexivo de uma consciência autônoma, a superação dessa perspectiva possibilitou ao homem exercer a reflexão crítica e construir novas e diversas formas de pensamento. A partir desse momento, não havia mais uma Verdade, porém múltiplas propostas de alcançá-la, as quais procuraram, cada uma a seu modo particular, ocupar o lugar hegemônico anteriormente ocupado pela religião.

Justamente esse momento histórico é identificado por Figueiredo (1996) como sendo aquele no qual podemos encontrar a efetuação da cisão do campo social em duas regiões: a pública e a privada. O autor argumenta que, ao findar o Renascimento, nas principais capitais européias, as constantes lutas políticas e religiosas deflagradas promoveram uma instabilidade social crescente e penosa para seus habitantes. Procurando aplacar as guerras e recuperar a estabilidade, os Estados Absolutistas lançaram mão de inúmeros dispositivos sociais ordenadores os quais, embora tenham conseguido re-ordenar a vida social, transferiram a instabilidade externa para a interioridade pessoal: ou as pessoas obedeciam às leis régias, ou se mantinham fiéis às suas convicções internas. Qualquer que fosse a escolha, o resultado produzido era, constantemente, a culpa, por se estar traindo, ou a confiança do rei, ou as suas próprias crenças particulares.

Tal contradição se tornou evidente na crescente diferenciação operada entre as esferas da privacidade (particular a cada indivíduo) e a da publicidade (comum a todos os habitantes da cidade). De tal forma que à privacidade, correspondendo às relações familiares, especificamente às convicções éticas e religiosas, reservava-se um certo grau de liberdade, já que cada um se encontrava livre para escolher suas próprias crenças e definir suas próprias atitudes. Já, no espaço público, referente às ações políticas, a ordem absolutista demandava que cada indivíduo se submetesse, quase que totalmente às ordens do soberano. Assim, na verdade, o que encontramos é uma distinção entre dois domínios: o da consciência, organizando o mundo familiar e privado, e o da ação política, organizando a coletividade. Com isso, público e privado eram constituídos por diferentes organizações as quais se aplicavam a diferentes objetos, produzindo, em decorrência, a necessidade de se traçar limites estáveis entre ambos. Assim, à privacidade resguardava-se o direito à liberdade, contanto que essa liberdade ficasse restrita à individualidade e às relações familiares. Uma vez atingindo os limiares públicos, a liberdade individual findava para fazer valer o direito de todos.

Claro está que tais conformação e acomodação não ocorreram de forma pacífica. Porém, conflitos diversos foram sendo produzidos de forma a adequar o comportamento de cada indivíduo à essa organização social específica. O autor ressalta que, sob o regime do medo instaurado pelo poder absolutista, a reação mais corriqueira e prudente tenha sido, durante todo o século XVII, a de se submeter à ordem pública em detrimento da liberdade individual, ainda que fosse, em última instância, uma forma de preservar o indivíduo e a sua liberdade privada a qual permanecia, dessa forma, impossibilitada de encontrar formas concretas de expressão para além de seus restritos domínios.

Processos de consolidação da privacidade: onde os domínios se tocam.

No embate dessas forças, as relações público/privado sofreram uma transformação importante a partir da emergência dos Estados Constitucionais em substituição às monarquias absolutistas. Tal substituição implicou em uma crescente consolidação da esfera privada, na medida em que a função primordial do Estado passou a ser a garantia das leis e dos direitos naturais individuais. Nesse período, a principal função da ordem pública e jurídica apareceu como sendo a preservação e a proteção dos espaços da privacidade. A interferência do Estado nos assuntos particulares devia se ater ao mínimo necessário para resolver os conflitos emergentes, em prol da liberdade da privacidade. O liberalismo clássico aparece, dessa forma, fundado na possibilidade de limitar os poderes do Estado, ao mesmo tempo em que assegurava a vigência de uma liberdade privada que ia, aos poucos ganhando cada vez mais terreno, em termos de possibilidade de expressividade.

Em sintonia à inteligibilidade da época, o movimento Iluminista se concentrou na expectativa de trazer a público tudo aquilo que ficara sem possibilidades de se expressar durante os Estados Absolutistas. Para Figueiredo (1996), tal movimentação iniciou, ao lado do romantismo, o processo que culminará com a interpenetração das esferas pública e privada, na medida em que vai tornando possível o desvelamento paulatino da privacidade através de inúmeras manifestações e expressões culturais:

Os motivos do esclarecimento e os da expressão autêntica reúnem-se na crítica às representações convencionais tanto nas suas propostas políticas (uma forma de democracia direta), como nas pedagógicas (a educação pela experiência viva), como nos escritos autobiográficos (as confissões) (FIGUEIREDO, op.cit.,p.112).

Aquilo que podemos inferir a partir daí é que o projeto iluminista, de proporcionar meios de expressão às experiências privadas, e do romantismo, de trazer à baila as vivências íntimas e singulares de cada um ao longo de suas histórias de vida, uniram-se, no intuito de promover uma crescente consolidação da privacidade. Segundo Figueiredo (op. cit.), as experiências privadas, que cresciam sob a proteção do regime liberal, dos espaços privilegiados para o cultivo da subjetividade, do anonimato das grandes cidades, dos clubes e das sociedades secretas foram, aos poucos, conquistando os espaços públicos, revelando e dando expressividade àquilo que ficara, provisoriamente, privado de meios e de efeitos públicos.

Analisando o desenrolar desses movimentos em três países distintos – Inglaterra, França e Alemanha – o autor nos permite identificar algumas práticas que, no século XVIII, começam a preparar o terreno sobre o qual, no século XIX, poderemos destacar os pontos em que público e privado se tocam e se interpõem:

- os romances do século XVIII, que tratam brilhantemente da vida familiar, doméstica e afetiva de seus personagens, consolidando, de uma forma nunca antes vista, o espaço da privacidade que ia se tornando cada vez mais conhecido e fortalecido. Esse é o caso, como aponta o autor, dos romances de Richardson, Fieldman e Stern;

- a filosofia empirista, desenvolvida essencialmente na Inglaterra, sustentada em um ideário iluminista, trouxe, para o centro do pensamento epistemológico, as questões da experiência privada do sujeito percebedor no processo de construção do conhecimento pelas vias da percepção, ainda que a objetividade do mundo não tenha sido, a principio, posta em questão.

- a utilização, na França, por razões culturais especificas, de práticas privadas como instrumentos de crítica política e social, na medida em que se contrapunham ao poder absolutista dominante, explicitando a diferenciação entre uma atuação verdadeira, na privacidade, e uma representação falsa em público.

- a fundação de algumas organizações secretas, tais como a maçonaria, que ocupavam uma posição intermediária, uma vez que suas ações se estabeleciam tanto na esfera pública, através da intervenção pretendida nas decisões políticas, quanto na esfera privada, já que seus membros formavam uma espécie de família protegida pelo anonimato.

- a construção de inúmeros cafés, salões literários e clubes, que trouxeram uma nova forma de organização e de intercomunicação entre as esferas pública e privada, na medida em que, nesses espaços, estranhos se encontravam e partilhavam entre si momentos de intimidade, não mais resguardados pelos limites de seus lares, mas nos espaços comunitários abertos à visibilidade pública;

- a filosofia kantiana a qual postula, de forma radical, a participação criticista e definitiva do sujeito no processo de construção do conhecimento. Na medida em que Kant define como fundamental, nesse processo, a síntese operada pelo nouneno e as formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e as categorias do intelecto na formação do fenômeno, a inteligibilidade do mundo se consolida na esfera privada. - a publicação, na Alemanha, de revistas paracientíficas que privilegiavam o aspecto psicológico, englobando os afetos, sentimentos, a volição, como, por exemplo, a Revista de Psicologia Experimental, fundada em 1783, por Moritz;

- a publicação, na França e na Alemanha, de inúmeras autobiografias as quais, dando publicidade à privacidade, consagravam objetivos tanto iluminista (esclarecer aquilo que ficara sem meios de expressão) e românticos (conceder expressividade às experiências privadas), como, por exemplo, A juventude de Heinrich Stilling – história verdadeira,de Heinrich Stilling;

- a fundação, por Lavater, da ciência da fisiognomia, a qual pretendia estabelecer as relações entre uma característica privada – o caráter – e uma característica pública – a fisionomia.

Todas essas manifestações culturais, a rigor, indicavam a fertilização do solo sobre o qual a interposição público/privado se consolidará, através de uma crescente e gradativa interpenetração.

A sobreposição dos imaginários público e privado : onde os domínios se interpenetram

Como pudemos observar, durante todo o século XVIII, a privacidade estava em ascensão e em franco processo de consolidação, evidenciando-se em vários aspectos da vida política, social e cultural. Tal movimento expansionista trouxe, contudo, para o século XIX conseqüências importantes: por um lado forças coercitivas e limitadoras emergiram objetivando controlar, domesticar, administrar e disciplinar os arroubos da privacidade. Por outro lado, opondo-se a essa ameaça, algumas estratégias de preservação da privacidade ameaçada foram impetradas permitindo, inicialmente, que o espaço familiar passasse a ser concebido como refúgio idealizado em contraposição ao caos público, e, em um segundo momento, promovendo o deslocamento do campo privado da esfera familiar para a interioridade individual.

Importa salientar que todas essas novidades trouxeram, em decorrência, novas formas de se conceber e vivenciar as relações entre as esferas pública e privada no transcorrer do século dezenove as quais produziram efeitos definitivos para sua organização, na atualidade. Essa é, também, a concepção proposta por Sennett (2000) para quem havia três forças de transformação em atividade no século XIX que tiveram o poder de alterar a vida pública e suas relações com a esfera privada:

- uma dupla transformação operada pelo capitalismo industrial (incentivando a privatização da família e o fetichismo das mercadorias);

- uma transformação em termos de credibilidade pública operada por uma nova secularidade (impondo uma ordem imanente);

- uma transformação do próprio comportamento público ligando a experiência pública à formação da personalidade.

Segundo Sennett (2000), podemos encontrar as raízes da indeterminação das fronteiras entre público e privado em mudanças históricas que tiveram início com a queda do Antigo Regime e a subseqüente implantação de uma cultura capitalista secular e urbana. Em sua argumentação, o autor parte do princípio que, durante o Iluminismo, havia um equilíbrio entre as esferas pública e privada, cuja função era a organização daquilo que chamaríamos, hoje, de universo das relações sociais. O primeiro impacto que tal equilíbrio recebeu partiu da implantação do sistema capitalista industrial, o qual acabou proporcionando novas formas de se compreender as noções de ‘público’e ‘privado’, assim como novas formas e modos de as pessoas se posicionarem no interior desses domínios.

O capitalismo industrial se desenrolou em duas direções: implicou em uma modificação no contexto familiar e em uma modificação na relação entre os indivíduos e os bens materiais de consumo. Uma vez que a ordem capitalista era desconhecida pela maioria das pessoas, a esfera pública começou a se apresentar como um sistema caótico contra o qual as pessoas deveriam se defender, como por exemplo, o crescente recolhimento das pessoas do espaço público para a intimidade familiar. A família passou, então, a ser considerada como o espaço no qual a ordem e a organização eram conhecidas e facilmente identificáveis e compreensíveis.

Ou seja, a família passou a assumir a função de ser um refúgio idealizado contra os perigos da publicidade. De uma forma exemplar, no seio da família, as pessoas acreditavam poder encontrar segurança, autoridade, distribuição das riquezas, tudo sem intromissão externa. Assim, os princípios organizadores da esfera privada passaram a corresponder a padrões morais e éticos a partir dos quais a esfera pública poderia ser mensurada, avaliada, e comparada. O espaço público, que no Iluminismo era visto como um conjunto de relações sociais, passou a ser considerado como moralmente inferior ao espaço familiar, privado. Tal concepção permitiu que a legitimidade da ordem pública pudesse ser questionada, tomando-se os princípios ordenadores da família como padrões a serem estabelecidos também na esfera pública.

Um outro ponto importante, apresentado por Sennett (2000), para a compreensão das formas que as relações públicas e privadas assumiram no século XIX, diz respeito à suposta homogeneização das classes sociais, operada pela implantação da produção em massa, implementada pelo advento do capitalismo industrial. Tal movimento, na verdade, criou uma dificuldade nas pessoas de se relacionarem com estranhos quando estavam em público. Anteriormente cada classe social possuía características determinadas em relação à vestimenta, aos modos de falar e de se comportar em público. Tais características permitiam que houvesse uma fácil identificação da classe social a qual uma pessoa pertencia. Essa identificação fazia com que o relacionamento entre estranhos fosse algo seguro. Tal segurança, contudo, se desestabilizou no momento em que uma nova forma de produção industrial possibilitou a criação de roupas em grande escala, ou seja, diversos segmentos sociais passaram a adotar um padrão de vestuário através do qual se tornou impossível identificar a classe social a partir do vestuário. Assim, quando em público, as pessoas já não sabiam mais definir o estranho a partir de suas roupas. Lidar com o estranho através do afastamento foi a estratégia adotada para se viver nas grandes cidades. Movimento que acabou tornando as pessoas cada vez mais isoladas em meio à multidão.

O interessante nessa operação é que, embora as pessoas soubessem que essa homogeneização entre as classes sociais fosse aparente, elas começaram a comprar essa idéia, e mais ainda, passaram a dotar os objetos de consumo de qualidades humanas. Assim, o modo de vestir deixou de ser referente e identitário de uma classe social, para expressar a interioridade individual. Ou seja, o modo de se vestir, os objetos que se compra passaram a ser designativos da personalidade íntima daquele que os detém.

Como segunda força em atuação no século XIX a qual impulsionou uma transformação em termos de imprimir uma confusão entre os imaginários público e privado, Sennett (2000) destaca a implantação de um novo sistema de credibilidade. Segundo o autor, a substituição de um sistema de credibilidade transcendente por uma crença imanente e secular acabou determinando uma superposição do imaginário privado sobre o público. Para entender tal transposição, o autor sugere uma compreensão particular do termo secularidade que difere daquela usualmente empregada que identifica secularidade como oposta à religiosidade. De uma forma específica, Sennett (op. cit.) propõe que o termo secularidade deva ser entendido como o conjunto de imagens mentais e de símbolos que tornam compreensíveis as coisas e as pessoas (p. 36).

A passagem do século XVIII para o século XIX foi marcada por uma mudança importante no conceito de secularidade. No século XVIII, embora a transcendência religiosa tenha perdido sua força como ordem organizadora a partir da qual o mundo se tornava compreensível, ainda era reinante uma transcendência secular. Dessa forma, no século XVIII, o mundo, os objetos do mundo e os fenômenos eram compreensíveis a partir do lugar que ocupavam dentro da ordem da Natureza, a qual, portanto, lhes era transcendente. Porém, o século XIX foi marcado por uma radicalidade específica, a secularidade perdia sua força transcendente para se tornar um sistema imanente a partir do qual a sucessão dos fatos e dos fenômenos passou a ser o próprio sistema ordenador do mundo.

O secularismo que surge no século XIX [.....] baseava-se em um código imanente, de preferência ao transcendente. Sensações imediatas, fatos imediatos, sentimentos imediatos já não tinham que se encaixar em um esquema pré-existente para serem entendidos. O imanente, o instante, o fato eram realidades em si e por si mesmos (SENNETT, 2000,p.36-7).

Desta feita o homem não abdicou de crer, porém mudou seu foco: de uma crença transcendente passou a crer na Ciência, imanente. O centro passou a ser o próprio homem e as experiências pessoais imediatas. Estas permitiram que o entendimento do mundo tomasse a subjetividade como paradigma conceitual para a existência social, possibilitando que, a partir daí, as formas individuais e singulares das vivências internas ganhassem meios de expressividade cada vez mais valorosos e seguros. Nesse sistema ordenador tornou-se possível, então, uma interposição entre os imaginários público e privado, uma vez que a crença imanente promove a ruptura da distinção entre o sujeito percebedor e o objeto percebido, entre o exterior e o interior, entre o subjetivo e a alteridade. Essa crença secular foi responsável pelo desgaste da vida pública em termos de uma ligação entre publicidade e construção da personalidade.

No entanto, tal pressão imposta sobre o domínio público não foi suficiente para a completa dissolução do mesmo no transcorrer do século XIX. Nesse período, o espaço público foi preservado e continuou a exercer sua função de contraposição ao espaço privado através da idéia de moralidade. Nesse ínterim, a família, ao se institucionalizar, deixou de ser o local privilegiado de refúgio idealizado no qual cada pessoa podia encontrar sua liberdade privada em contraposição aos espaços públicos. Assim, a família assumiu sua parcela na proposta de disciplinarização e normatização dos indivíduos a partir da imposição da ideologia utilitarista que acompanhou o liberalismo econômico regulador do capitalismo industrial. Tal movimento imprimiu um deslocamento da privacidade para a interioridade individual, local, no qual acreditava-se estar livre das investidas do controle disciplinar. Por seu turno, o espaço familiar moralmente intransigente, repressor e que, portanto, cobrava das pessoas atitudes condizentes a esse ideal de moralidade irrepreensível, se tornava suavizado pela existência do espaço público. Em público, as pessoas poderiam escapar ao peso dessa repressão moral assim como de se relacionar com estranhos de uma forma impessoal, fugaz, e passageira, experiências essas que se tornaram imprescindíveis para a construção de uma personalidade sagaz, adulta, vivida, madura. O espaço público tornou-se, assim, simultaneamente, perigoso e necessário, posto que contraditoriamente, para que se possa evitar os perigos mundanos, era preciso conhecê-los através da vivência de experiências em público.

No Antigo Regime, a experiência pública estava ligada à formação da ordem social; no século passado [séc. XIX] a experiência pública acabou sendo ligada à formação da personalidade (SENNETT,2000,p.40).

A partir dessas considerações sennettianas, nos importa salientar os momentos inaugurais nos quais os espaços público e privado, ainda se mantendo imaginariamente diferenciados, na verdade, já apresentavam pontos de toques e interseção visualizados através de pontos de conexão entre essas estruturas sociais presentes no século XIX e a vida atual destacados pelo autor:

a) no momento em que a divisão entre os espaços público e privado perdeu sua característica de ser um processo construído pelo consenso humano, perdeu-se a possibilidade de mantê-la sob controle. A linha divisória entre público e privado tornou-se confusa e permeável, tornando crível a idéia de que seria possível um desvelamento involuntário de características íntimas em público. Não foi à toa, portanto, que no campo da ciência, vários saberes se preocuparam em especificar, cientificamente, as possibilidades de se revelar, em público, traços da personalidade. A frenologia, por exemplo, baseavam-se na idéia de que, através de traços físicos, se poderia desvendar características psicológicas. Da mesma forma, Darwin acreditava que estados emocionais transitórios poderiam ser desvelados involuntariamente através de manifestações fisiológicas, tais como, empalidecimento, rubor, sudorese, tremores musculares, etc. Igualmente, a psicanálise propôs que o ato falho ou os sintomas histéricos permitem a revelação involuntária de inúmeros desejos inconscientes;

b) a superposição do imaginário privado sobre o público teve início no século XIX , se revelando inicialmente em uma faceta a qual propunha um novo modo de as pessoas se expressarem em público a partir de uma confusão entre sua personalidade e suas convicções políticas e ideológicas, de tal forma que a credibilidade de seu discurso se tornava dependente de sua personalidade privada. Nessas condições, o sistema de expressão pública se tornou um sistema de representação pessoal; uma figura pública apresenta aos outros aquilo que sente, e é essa representação de seu sentimento que suscita a crença (Sennett,2000,p.42);

c) o terceiro ponto de conexão, apontado por Sennett, entre o século XIX e a atualidade envolve os mecanismos de defesa elididos pelas pessoas contra a possibilidade de terem seus sentimentos revelados involuntariamente e contra a superposição do imaginário privado sobre o público: o retraimento e o silêncio. Ou seja, as pessoas passaram a adotar, em público, um comportamento cada vez mais retraído e reservado, tanto em termos de vestuário quanto em termos de vocabulário.

Nessa sociedade a caminho de se tornar íntima – na qual a personalidade era expressa para além do controle da vontade, o privado se sobrepunha ao público, a defesa contra a leitura pelos outros era a retenção dos sentimentos – o comportamento em público foi alterado em termos fundamentais (SENNETT, 2000, p.43).

Utilizando-se do direito de ficar em silêncio em público, as pessoas passaram a assumir uma posição defensiva de observadores, adotando uma participação pública passiva e silenciosa. Exercendo esse direito ao silêncio e à observação, o conhecimento e o desenvolvimento pessoal não se dariam mais a partir do trato e do relacionamento social, mas seriam uma questão de observação da vida pública dos outros, sem que houvesse uma participação ativa ou envolvente de cada um nesse processo.

A contemporaneidade translúcida : públicoprivado e a subjetividade objetivada .

Como vimos anteriormente, as transformações sofridas pelas sociedades ocidentais, depois da ascensão dos estados absolutistas e do concomitante declínio do poder da Igreja, trouxeram, inicialmente, a necessidade de uma regulação social a partir de um poder jurídico expresso pelo Contrato Social, baseado em um ideário Iluminista, no interior do qual podemos detectar a construção do conceito moderno de indivíduo.Segundo Dumont (1981), posterior ao julgo jurídico, as sociedades ocidentais passaram a ser reguladas pelas contendas políticas cristalizadas na bipolaridade dos poderes e saberes políticos que se colocavam em oposição no comunismo x capitalismo, para finalmente explodirem, na atualidade, como se configurando a partir do poder econômico. Nesse contexto, acreditamos que as sociedades atuais podem ser definidas como sociedades de consumo, tal como nos propõe Baudrillard (1981). Assim, utilizando-nos da proposta teórica desse autor, procuraremos entender como, nas sociedades atuais, reguladas pela lógica do consumo, que tudo iguala a uma mercadoria, a subjetividade se tornou reificada, transformando-se em objeto da manipulação externa. Tal perspectiva implica na suposição de que, na atualidade, ao se desfazerem as fronteiras entre as esferas pública e privada, perdeu-se não só o espaço público da cidadania, mas, ao mesmo tempo, perdeu-se a possibilidade de construção de um sujeito imbricado na estruturação de seu próprio desejo. A privacidade, alojada na interioridade individual, ao ser transpassada pela visibilidade, tornou-se instrumentalizada por uma lógica da exterioridade, através do discurso do consumo suportado pela engrenagem publicitária. Assim, o movimento através do qual o espaço público foi cedendo espaço à revelação da privacidade, em seus desdobramentos, não resultou na exacerbação desta última, ao contrário, acabou demarcando sua paulatina e simultânea destruição.

A predição de uma sociedade habitada por indivíduos cada vez mais privatizados não se confirmou. [....] A radical despolitização do mundo não se fez acompanhar da superprivatização antecipada pela teoria. Aconteceu o oposto: a desmoralização do sentimento de privacidade. O declínio do homem público não reverteu em ascensão do homem privado, deu lugar ao sujeito-objeto ou objetificado. [...] nem público nem privado, o ‘mínimo eu’ passou a demarcar-se, a definir-se no espelho dos objetos (Freire-Costa,1994,p.134).

 

Baudrilard e as sociedades de consumo: visibilidade e invasão da privacidade.

No processo de análise das sociedades atuais, Baudrilard (1981) postula que estas se caracterizam por apresentarem uma organização a partir da qual tudo se nivela à lógica do mercado: o que importa é ter, possuir e comprar. Com isso, objetos e pessoas valem a partir do valor de venda e do poder de compra de cada um. Exatamente por isso, segundo o autor, para a compreensão das relações sociais atuais, faz-se necessário conhecermos a lógica do consumo, pois será ela aquela que regulará as relações estabelecidas pelos homens não só com seus objetos, mas também com os outros homens e consigo mesmo. Nessa lógica, a publicidade possui um papel fundamental, pois poderá apresentar os objetos de consumo e os serviços oferecidos como se esses fizessem parte das necessidades humanas entendidas como naturais. Tal discurso não nos permite ver que tanto os objetos quanto os serviços ofertados são produtos da atividade humana e, portanto, inseridos na mesma lógica mercadológica capitalista. Nesse movimento, as lojas modernas, os grandes magazines oferecem seus produtos, seus objetos, através de um enredo, um sentido, um contexto, de tal forma que quando o consumidor os compra, ele o faz não por suas utilidades, porém, por tudo aquilo que os objetos representam na escala de valores sociais. Dessa forma, nas sociedades de consumo, os objetos são transformados em elementos de luxo, que estruturam, hierarquicamente, o espaço social.

Assim, o campo estrutural do consumo é formado pela posição relativa que cada indivíduo ocupa na hierarquia de acesso aos bens. As combinações são infinitas. A observação das sociedades ricas mostra, além dos bolsões de miséria absoluta que desnudam permanentemente a ilusão de abundância, uma constante situação de penúria dos indivíduos, sempre famintos de signos de prestígio social (FREIRE-COSTA, 1990,p.152).

O importante a se destacar nessa concepção é que, nesse movimento, o enredo, o sentido de cada objeto é pré-fabricado no campo ideológico, impedindo, assim, que o próprio sujeito crie sentidos múltiplos e próprios para aquilo que ele está consumindo. Dessa forma, o próprio consumo recebe um valor mítico, permitindo que o ato de comprar não se refira mais a um processo de produção e de atendimento às necessidades, porém passando a adquirir um caráter milagroso, a compra, ilusoriamente, pode proporcionar, em última instância, o encontro da tão almejada felicidade.

É a partir dessa lógica que se pode entender a ditadura da moda na grande cidade. A moda é o representante prototípico deste sistema de signos de diferenciação social, presente na sociedade de consumo. Ela elimina, em seu cálculo de produção e de venda ao consumidor, toda referência a quaisquer atributos ou necessidades do individuo, para impor exclusivamente o esquema distintivo de seu sistema de signos ( FREIRE-COSTA,1990,p.153).

Tal perspectiva significa compreender as sociedades atuais não como sendo reguladas por uma lógica econômica ou de produção, mas por uma lógica do consumo baseada na manipulação de signos a serem consumidos. Para Baudrillard (1981), essa configuração social se estabelece como universal no mundo ocidental moderno, independente de uma possível riqueza ou pobreza de cada nação em particular. O diferencial aqui, para o autor, não se coloca na abundância ou na escassez de objetos a serem consumidos ou produzidos, mas em uma contradição inerente à estrutura capitalista.Tal contradição se baseia, por um lado, nos princípios democráticos de igualdade (que sustentam o mito do bem-estar e da felicidade para todos) e, por outro, na necessidade estrutural de manter a desigualdade e os privilégios de classe. A partir daí, as sociedades ficam com a tarefa de criar estratégias que possam dissimular essa contradição fundamental e sem possíveis soluções. Como exemplo de estratégia com tal finalidade, o autor cita a oferta impossível de distribuição de alguns "direitos naturais" para todos os cidadãos: direito à terra, à propriedade privada, à saúde, ao lazer, ao bem-estar, à educação,etc. Com isso, tais direitos passam a adquirir um valor distintivo de privilégio e status para quem os possui, inserindo-os na ordem da mercadoria.

Assim, as sociedades atuais baseiam-se em uma ideologia na qual se faz crer ser possível uma igualdade total entre seus habitantes diante da possibilidade de adquirir, usar e comprar esses bens, o que, no entanto, não pode existir concretamente. Nesse sentido, há uma contradição lógica entre a hipótese ideológica da sociedade capitalista a qual supõe a homogeneização social ao mais alto nível e sua lógica concreta, fundada em uma diferenciação estrutural. Sendo assim, é uma falsa ilusão que se cria ao propor que o fluxo e a distribuição dos bens se dariam de uma forma que tenderia ao equilíbrio social. Porém, o crescimento não significa a democratização, ao contrário, ele se apóia na diferenciação e na segregação, tornando necessário que abandonemos a idéia de que, nas sociedades de abundância, todas as necessidades possam ser satisfeitas, pois, na verdade, tais necessidades não são naturais, mas criadas pela ordem de produção.

A prática consumista não redunda da abundância real ou da tendência ao igualitarismo social, mitos que o autor [Baudrilard] se empenha em desmontar. Ela cresce no terreno da desigualdade e da escassez relativa de bens materiais e culturais. Sua semente não é a riqueza generalizada ou a propensão à repartição eqüitativa dos bens, mas a concentração urbano-industrial, ordenada em torno de valores produtivistas (FREIRE-COSTA,1990,p.155).

O desconhecimento dessa contradição que se estabelece tanto no nível econômico quanto no nível formal, imprime uma lógica a partir da qual os objetos passam a ser considerados, por eles mesmos, como infiltrados de poder, já que não são mais consumidos por sua utilidade, mas por aquilo que eles podem representar enquanto distintivos de status social. Essa valorização dos objetos por eles mesmos, essa fetichização dos objetos, essa lógica mágica é, segundo Baudrilaard (op. cit.), a própria ideologia do consumo.

Nessa perspectiva, se critica e desconstrói o mito da igualdade entre os homens a partir da impossibilidade de todos poderem ter acesso igualitário aos bens de consumo. Isto é, o evidente desequilíbrio social não é contingente, mas estrutural. Ele não poderia ser solucionado através da implantação de atitudes políticas que visassem o bem comum em detrimento do bem individual. Porém, o desequilíbrio e o desnivelamento são constantemente re-organizados de forma a se ter, sempre, alguns itens de consumo visados por todos e acessíveis a poucos, demarcando, assim, a posição relativa que cada indivíduo ocupa dentro da hierarquia de acesso aos bens.

O importante aqui, a despeito de todo o estruturalismo implícito no pensamento baudrillardiano, é perceber que, no nível da distribuição, os objetos e os bens (assumindo o caráter de mercadoria) constituem um sistema arbitrário, global e coerente de signos. Um sistema cultural simbólico, que impõe uma determinada ordenação hierarquizada de valores. Assim sendo, a circulação, a compra, a venda e a apropriação dos bens e dos objetos constituem, hoje, a nossa linguagem, nosso código, através do qual a sociedade se comunica. Essa é a ordenação do consumo, sua língua, por onde as necessidades e os prazeres individuais se revelam como efeitos desse discurso, a partir de uma nova moralidade fundada em uma concepção individualista que exacerba o narcisismo e o hedonismo, pois, embora inscrito em uma lógica massificante e uniformizante, ilusoriamente, o consumo propõe a individualização.

O consumismo é, por excelência, individualizante. Toda propaganda moderna tem como primeiro mandamento a personalização. Personalize seu apartamento, seu carro, sua indumentária, seu estilo de vida, seu corpo, seu sexo, etc. A personalização do modismo consumista faz com que o indivíduo, massificado e uniformizado, sinta-se único na posição que ocupa socialmente, quando se apropria de determinado objeto (FREIRE-COSTA,1990,p.154).

O importante a destacar é que, para Baudrilard (op.cit.), a publicidade ocupa um lugar fundamental e estratégico nesse processo de personalização e individualização que funda o narcisismo moderno, que, para o autor, se revela não como o gozo da singularidade, mas como a refração de traços coletivos. Nas sociedades de consumo, o indivíduo é levado a crer que deve investir em si próprio, valorizando e concretizando seus desejos e aspirações pessoais. Porém, segundo o autor, esses desejos e aspirações se referem à exterioridade e não à interioridade subjetiva, pois entre o sujeito e seus objetos de desejo se interpõe um código pré-determinado de signos que informa o que desejar, seja um modelo de mulher, de homem, de empresário, de estudante, etc, ao qual o sujeito deve se conformar. Modelos veiculados pela mídia publicitária, através dos quais cada um se personaliza e individualiza. Nesse processo, a publicidade permite que o objeto se transforme em um acontecimento, retirando suas características objetivas e materiais e transformando-os em modelos, em objetos, em mitos. O movimento é duplo: a publicidade seduz e o consumidor se deixa seduzir, permitindo que o objeto, em sua função de signo, se coloque para além da utilidade/inutilidade, assim a publicidade se coloca além da verdade/falsidade.

Para Baudrilard (op.cit.) importa notar como todo discurso sobre o consumo procura fazer do consumidor um Homem universal, a encarnação geral, ideal e definitiva da espécie humana. Mas, como ressalta o autor, o consumidor não é um ser universal, ele é um ser político e social, uma força produtiva, e, portanto, relacionada a problemas históricos fundamentais que poderiam fomentar a instauração de inúmeras crises sociais. Sendo uma das tarefas sociais encontrar estratégias para manter esses conflitos latentes, a sociedade se aproveita do ideário individualista, permitindo que o ato de comprar e adquirir alguns objetos e bens de consumo se torne individualizante, dessolidarizante, e desistorizante.Com isso, o consumidor, o homem, se encontra solitário, celular e individualizado, perdendo seus laços com a coletividade, na medida em que o consumo, ilusoriamente, o incita a se constituir como um ser diferenciado. Assim, ao inserir os consumidores em um sistema de signos no interior dos quais cada sujeito possa se sentir como exclusivo, único, especial e singular, as contradições e os desequilíbrios sociais perdem seu significado social e não evocam reações. Essa é a ordem, que semantiza o discurso social a partir da qual as pessoas passam a organizar seus investimentos libidinais e afetivos, construindo formas específicas de lidarem com a realidade social na qual a relação do sujeito com o mundo que o cerca, não é feita através do interesse e do engajamento, porém através da curiosidade e do desconhecimento.

Tal desinteresse pela coletividade, no entanto, não significa uma supervalorização da interioridade individual, como já apontamos anteriormente. Embora as pessoas tenham se tornado mais atomizadas, individualistas e narcisistas, enfraquecendo os laços sociais e renunciando à ação política, a esfera privada foi cooptada pela lógica do consumo e pareada a um objeto de manipulação.

E assim como a política degradou-se na prática do lobby e do marketing, o sentido da identidade privada foi devorado pela lógica da produção, circulação e consumo das mercadorias, cujo centro gravitacional é a publicidade (FREIRE-COSTA,1994,p.134).

Segundo Baudrilard (op. cit.), esse mecanismo inconsciente acaba sendo um forte dispositivo de regulação e integração social e se baseia na potente formação narcisista dos indivíduos modernos, a qual permite que o individualismo não seja sentido como um conformismo, mas como possuindo uma função coletiva. Essa é a forma que o autor encontra para nos informar que a alienação individual e social é o esquema generalizado da lógica do mercado.Para ele, essa lógica não rege apenas os processos de trabalho e dos produtos materiais, mas a cultura inteira, a sexualidade, as relações humanas, até mesmo as pulsões e os fantasmas individuais.Tudo é regido por essa lógica, não apenas no sentido de possuirmos as funções e as necessidades objetivadas e manipuladas em termos de lucro, mas também no sentido mais profundo de tudo ser espetacularizado, isto é, provocado orquestrado, evocado em imagens, em signos, em modelos consumíveis.

Na cultura do consumo ou da ‘realidade dos objetos’não há mais espaço para a ocultação.[...] Público e privado foram homogeneizados na visibilidade publicitária. Coisas, pessoas, sexos, corpos e sentimentos possuem o mesmo estatuto de objetos. Só um valor tem primazia, o valor de mercado, só uma realidade existe, a do objeto-mercadoria, que existe enquanto dura sua visibilidade. (FREIRE-COSTA,1994,p.141).

É nesse sentido que, em nosso ponto de vista, nas sociedades modernas, a lógica do consumo se torna necessária para que se compreenda as relações entre as esferas pública e privada a partir de uma interseção, na medida em que a linha divisória entre público e privado se desfaz e se interpenetra, permitindo que a intimidade seja, cada vez mais invadida e transpassada pela exterioridade. De tal forma que,

o imperativo é a exatidão da descrição e a publicidade ou visibilidade total do que é descrito.Crenças, dúvidas, certezas, evocações, sentimentos, julgamentos, etc,são objetivados da mesma maneira, como se só a exibição, a projeção no mundo exterior validasse o que se é ou a pergunta sobre quem se é. A transparência tornou-se o aval da existência (FREIRE-COSTA,1994, p. 143).

Tal desequilíbrio permite a ocorrência de um movimento característico nas sociedades atuais: aquilo que vem a público não o faz mais no sentido de expressar a multiplicidade, a pluralidade das individualidades em um espaço comum. Hoje, o que vem a público se faz no sentido de mostrar aquilo que é igual para todos, em um mundo único, no qual só existe uma forma de se pensar, agir e sentir.

o imperativo é a exatidão da descrição e a publicidade ou visibilidade total do que é descrito.Crenças, dúvidas, certezas, evocações, sentimentos, julgamentos, etc,são objetivados da mesma maneira, como se só a exibição, a projeção no mundo exterior validasse o que se é ou a pergunta sobre quem se é. A transparência tornou-se o aval da existência ( Costa,1994, p. 143).

 

Considerações : para não finalizar

O desdobramento de nossas elucubrações teóricas desenvolvidas anteriormente nos informa as transformações perpetradas sobre as relações estabelecidas ao longo da história entre as esferas pública e privada. A partir de nossas considerações pudemos observar com a ajuda de Figueiredo (1996) e de Sennett (2000) que se, no século XIX, ainda permanecia uma distinção entre as esferas pública e privada, tal distinção se sustentava em um plano imaginário e ilusório, apresentando, na verdade, diversos furos e pontos de interseção a partir dos quais inúmeras manifestações culturais se fundaram e se revelaram como expressões da própria interseção público/privado. Nesse sentido, nossa proposta é que, a interposição entre esses dois domínios, iniciada nos séculos passados se deslocou do campo social para a interioridade individual expressando-se através da divisão fundamental da subjetividade, ponto tomado como fundamental por Freud no alvorecer do século XX. Tais considerações nos servem de apoio para a formulação da argumentação de que, no contexto cultural vienense, no qual a ambigüidade público/privado se instalou a partir de uma sucessão de crises políticas, econômicas, sociais e culturais, podemos apontar a teoria e a clínica psicanalítica como uma entre as abordagens possíveis para o entendimento dessa ambigüidade e de suas conseqüências sobre a construção da subjetividade.

Importa notar que, nesse momento histórico, no qual público e privado começaram a se tocar e se interpor, a idéia de homem passou a se revelar através da noção de uma subjetividade dividida capaz de se afirmar através de um sujeito do desejo inconsciente, simultaneamente singular e plural, já que fundado em uma pulsionalidade individual e uma ordem cultural que lhe era transcendente. Ou seja, se com Sennett (2000) pudemos demarcar as investidas de uma crença imanente no plano ideológico, no transcorrer do século XIX a transcendência ainda se fazia presente no espaço da subjetividade através da dialeticidade sujeito/cultura.

A perda da transcendência foi tematizada no presente artigo através das concepções de Baudrillard (1982) as quais nos permitiram indicar que, na atualidade, a lógica do consumo agindo como uma verdadeira Weltanschaaung2 acabou imprimindo uma ordem unidimensionalizada a partir da qual as subjetividades individuais se estruturam em conformação à exterioridade. Assim, os limites entre público e privado perderam sua significação e contorno fazendo com que o processo de tornar público a interioridade tenha se tornado a estratégia atual para a ratificação da existência que se revela através, não de um sujeito privado, mas através de uma subjetividade objetivada.

Cabendo, portanto, a cada um de nós, que trabalhamos a partir do referencial psicanalítico, nos impor a difícil tarefa de promovermos uma intensa reflexão sobre os desdobramentos que tais considerações impõem sobre a construção das subjetividades, na atualidade, e, consequentemente, sobre quais pilares teóricos estamos sustentando nosso ofício cotidiano.

Notas

1 O presente artigo é parte da minha tese de doutoramento desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Para ver em totalidade: PINHEIRO, N. (2003)

2 Propomos o entendimento do termo alemão Weltanschauung como significando o contexto sócio cultural, ou seja, a rede de significações estruturadora do modus vivendi de um povo, incluindo suas atitudes, valores, crenças, artes, ciências, modos de percepção, pensamento e atitudes (Japiassú e Marcondes, 1991).

 

Referências Bibliográficas:

BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. São Paulo: Martins Fontes,1981.

FREIRE-COSTA, J. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro:Graal, 1990.

________________Bernadet e o declínio do homem privado. Cadernos de psicanálise, vol 16, n 8 , 1994,p.133-134.

________________Vai nos sobrar alguma privacidade? www.no.com.br/noticia/ acesso em 22/05/2002.

DEBORD, G. A sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1977.

DUMONT, L. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro:Rocco,1985.

FIGUEIREDO, L. C. A invenção do psicológico: quatro séculos de subjetivação 1500-1900. São Paulo: Escuta, 1996.

JAPIASSU, W. & MARCONDES, L. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

PINHEIRO, N. Uma casa com paredes de cristal: a clinica psicanalítica no ambulatório hospitalar. Tese de doutorado apresentada no Programa de Pós - graduação em psicologia clínica. Pontifícia Universidade Católica – Rio de Janeiro, 2003.

SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo Companhia das Letras, 2000.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 22 - Diciembre 2005
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