Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O funcionamento do simbólico segundo Lévi-Strauss e sua aplicação, por Lacan, ao sofrimento neurótico
Léa Silviera Sales

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RESUMO:

"Introdução à obra de Marcel Mauss" pode ser considerado o texto programático da transposição dos conceitos da lingüística estrutural para as ciências humanas pois que não se limita à apresentação de uma obra. Lévi-Strauss desenvolve sua análise a partir de seu próprio projeto de fundamentar uma antropologia estrutural científica. A face mais original desse projeto é o estabelecimento da equivalência entre fato social e fato lingüístico convertendo para a etnologia as três principais inovações da fonologia: os sistemas de parentesco se situam em nível inconsciente, seus elementos só são significantes na medida em que se diferenciam entre si constituindo pares de oposição e são entendidos em termos de sincronicidade. Essa operação tem como resultado a definição do símbolo como objeto da antropologia e a designação de um papel central para a noção de inconsciente. Com a análise desse e de outros três ensaios lévi-straussianos - "A eficácia simbólica", "O feiticeiro e sua magia", e "A estrutura dos mitos" - coletaremos os instrumentos que permitirão entender o sentido da conferência "O mito individual do neurótico", na qual Lacan executa uma primeira aplicação dos princípios da análise estrutural a questões propriamente psicanalíticas. Acompanharemos o caminho para a definição e a formalização de três importantes noções: inconsciente, mito e função simbólica (cujo funcionamento é causa do sofrimento neurótico). Nelas, Lacan encontra um meio de apagar suas reservas quanto à definição freudiana de inconsciente, pois, ao ser entendido como o funcionamento do simbólico, torna-se possível descartar a suposta contradição da expressão "representação inconsciente" em favor da idéia de "estrutura inconsciente", a qual não remete a nenhuma interioridade psicológica nem a nenhum conteúdo pulsional.

 

1. Sociologia e lingüística: Marcel Mauss por Lévi-Strauss

Introdução à obra de Marcel Mauss não se limita à neutra apresentação de uma obra. Muito pelo contrário, é por meio de um olhar bastante específico que Lévi-Strauss desenvolve sua análise apontando simultaneamente os avanços que constituem a modernidade da contribuição de Mauss (ao ponto de considerá-lo o pai espiritual do estruturalismo, forçando, com isso, obviamente, o sentido da obra maussiana na direção de seu próprio pensamento) e os problemas que ela não foi capaz de ultrapassar. Avanços e problemas que são detectados e problematizados a partir do projeto de uma antropologia estrutural que se propõe estabelecer de uma vez por todas, através da exposição de sua própria metodologia, o caráter científico dessa disciplina. Se as tentativas, até então presentes na França, de aproximar a antropologia das ciências da natureza por intermédio de posturas epistemológicas empiristas ou funcionalistas não conseguiram atingir o objetivo almejado, é ao procurar tomar distância com relação a essas posturas adotando o modelo lingüístico como referencial de ciência que Lévi-Strauss se afirmará como o fundador de uma antropologia social absolutamente original.

A face mais marcante dessa originalidade é o estabelecimento de uma equivalência entre fato social e fato lingüístico que tem como resultado a definição do símbolo como objeto da antropologia e a designação de um papel central a ser desempenhado pela noção de inconsciente. Será preciso, então, enfatizar o aspecto formal na descrição da cultura entendida como um sistema de símbolos.

Foi com As estruturas elementares do parentesco que Lévi-Strauss iniciou a transposição do método fonológico para a antropologia. Nesta obra, encontramos, segundo Ricoeur (1970), a reiteração das três principais inovações da fonologia: os sistemas de parentesco se situam em nível inconsciente, seus elementos só são significantes na medida em que se diferenciam entre si constituindo pares de oposição e são entendidos em termos de sincronicidade. Mas não é o simples aparecimento dessas três características da organização o que autoriza o uso do modelo lingüístico na antropologia. Ou melhor, se elas aparecem é porque existe uma razão que lhes é anterior. O que garante essa passagem é, sobretudo, o fato de o parentesco ser considerado um verdadeiro sistema de comunicação, tal como qualquer língua. Segundo Lévi-Strauss, a cultura consiste em regras que governam todas as formas de comunicação, ou seja, regras que produzem os três principais níveis de comunicação (ou de trocas): mulheres, bens e mensagens. Ele diz:

"Em toda sociedade, a comunicação se opera ao menos em três níveis: comunicação de mulheres, comunicação de bens e serviços, comunicação de mensagens. Por conseguinte, o estudo do sistema de parentesco, o do sistema econômico e o do sistema lingüístico oferecem certas analogias. Todos os três dependem do mesmo método; diferem somente pelo nível estratégico em que cada um escolhe se situar no seio de um universo comum."(1953/1975, p. 336)

Tal seria, portanto, a fundamentação do princípio de generalização que garantiria a passagem das considerações sobre fatos lingüísticos às especulações sobre fatos sociais: os fenômenos da vida social são do mesmo tipo dos fenômenos lingüísticos; também o parentesco é um sistema arbitrário de representações.

Mas qual é o aspecto que estabelece essa suposta afinidade entre método estrutural e sistemas de signos? Existe alguma premissa que destine necessariamente um aos outros? Vincent Descombes, em Le même et l'autre, diz que, se, por um lado, não existe nada a priori que garanta a aplicação privilegiada da análise estrutural aos signos nem que obrigue a ciência dos signos a ser exclusivamente estruturalista, por outro, podemos encontrar na noção de comunicação a ponte capaz de unir intimamente signos e estruturas. Mais especificamente, é a idéia de código que permitirá melhor compreender o que a comunicação diz da estrutura.

A teoria da informação, fonte na qual também vem beber o estruturalismo, foi desenvolvida no final da década de 40 por dois engenheiros da telecomunicação: Shannon e Weaver. Seu objetivo era otimizar o rendimento da transmissão de informação através da formalização de um sistema exclusivamente sintático que tinha como ponto central justamente a idéia de código. Este não significa o estabelecimento de correspondências entre significantes e significados, mas compreende unicamente a sintaxe interna de uma seqüência de sinais. Para que se consiga atingir um nível ótimo de comunicação, é preciso extirpar o problema do ruído na transmissão das mensagens descobrindo as condições sob as quais possamos encontrar emissão e recepção cristalinas, com o mínimo grau possível de interferências indesejadas (idealmente, esse grau seria igual a zero). Noutras palavras, a comunicação acontece quando uma mensagem é recebida exatamente da mesma forma que foi emitida; quanto mais houver distorções e alterações no conjunto de sinais emitidos, mais ineficaz será o processo de comunicação(2). O problema da transmissão é analisado a partir de dois pontos: a entrada e a saída do canal de comunicação. Na entrada, o problema consiste em encontrar uma forma de transformar as informações da fonte na emissão de determinados sinais que consistem na mensagem, ou seja, trata-se de codificar; na saída, encontramos a situação diametralmente inversa: é preciso passar da recepção daquele conjunto de sinais à sua interpretação, trata-se de decodificar. O código situa-se, então, exatamente entre a fonte de informações do emissor e a interpretação do receptor e só funciona porque possui, por definição, três propriedades: precede a mensagem, é independente dela e é também independente do emissor. Vejamos cada uma delas mais detalhadamente. O código não pode ser construído por quem dele faz uso durante o processo de comunicação porque tal processo se define pela transmissão de informações codificadas segundo regras preestabelecidas. São essas regras que conduzem a comunicação e, por esta razão, devem possuir existência anterior a ela. Assim, o código precede necessariamente seu uso, definindo, de antemão, o conjunto das situações nas quais esse uso poderá ocorrer. Não há lugar para o novo no código, é impossível nele encontrar mensagens surpreendentes, inesperadas, inéditas ou poéticas: tudo o que, a partir dele, é possível dizer ou transmitir já foi, por uma questão de lógica, previsto por suas regras. Ser receptor implica conhecer o código e conhecer o código implica saber quais são todas as mensagens latentes, tudo o que pode vir a ser dito, antes que a emissão tenha início. Resulta finito o número de mensagens suscetíveis de encontrar abrigo em cada código. O emissor, ao fazer uso do código deve aceitar essas restrições e isso quer dizer que se torna vedada toda idéia de expressão. Fica claro que a mensagem não pode carregar consigo a experiência pura do sujeito que emite os sinais informativos, já que está prescrito, antes de qualquer comunicação, aquilo que é passível de sinalização. Nessa análise do processo de comunicação, o foco não se direciona para a situação do emissor na fonte da informação; é o lugar do receptor que é sublinhado. Importa sobretudo que o destinatário receba exatamente aqueles sinais que foram transmitidos pelo emissor. Este, por conseguinte, se depara com uma complicada tarefa: traduzir em um número restrito de sinais uma informação essencialmente nova de forma a construir uma daquelas mensagens previstas pelo código.

O estruturalismo retoma toda essa definição do código e da transmissão de informação ao afirmar que os fenômenos lingüísticos (e por extensão, como vimos, os fenômenos sociais etc.) são fenômenos de comunicação e que as línguas "naturais" (como o português, por exemplo) são também códigos, tanto quanto os "artificiais" (3). Se a linguagem humana funciona como um sistema de comunicação, nela serão igualmente válidas todas aquelas propriedades que descrevemos para a noção de código. Daí resultam, segundo Descombes, duas teses fundamentais do estruturalismo, as quais passamos a apresentar.

A primeira afirma que o significante precede o significado. A linguagem não funciona como um elo de ligação entre um interior e um exterior visto que foram suprimidas as possibilidades de expressão mediante a precedência do conjunto de significantes sobre a mensagem. A existência primordial de uma situação vivida, de um significado puro, e a necessidade urgente de exprimi-la não são consideradas no esquema estrutural. "A mensagem não é a expressão de uma experiência, mas ela exprime antes as possibilidades e os limites do código utilizado com relação à experiência." (Descombes, 1979, p. 115) Lacan também recusará a idéia de que a linguagem, em sua dimensão propriamente simbólica, pudesse funcionar como um meio de expressão; se é possível falar da linguagem como algo que exprime uma experiência é somente na medida em que se considera apenas o registro do imaginário e a frágil existência do significado.

A segunda tese anuncia a submissão do sujeito à lei do significante . De acordo com esse autor, enquanto a fenomenologia analisava os fatos de linguagem tomando como referência a denotação, a perspectiva do sujeito falante e a produção intersubjetiva de um sentido que sempre revelava a originalidade de uma experiência, o estruturalismo se preocupa com o lugar do destinatário. Este decodifica a mensagem recebida ao conseguir enxergar o lugar diferencial que ela ocupa com relação a todas as outras mensagens que poderiam ter sido emitidas a partir do código disponível. A mensagem assim produzida não revela o que acontece na fonte da informação. Apenas afirma que algo desta situação se submete às exigências do código. Então não interessa a denotação, mas a forma da enunciação. Quando se trata de códigos artificiais, o autor esclarece, eles são construídos de maneira a fornecerem um conhecimento suficiente da situação para o que se quer operacionalizar. No entanto, quando se trata de línguas naturais, não podemos saber qual o nível de correspondência que existe entre a língua e a experiência. Assim,

"O código, não o emissor, decide sobre o que é pertinente e o que não o é. Se a língua é um código, é ela quem fala cada vez que o sujeito falante profere o que quer que seja. A fala não é um gesto que transportaria à expressão verbal o sentido da experiência 'ainda muda' porque a experiência muda não possui por ela mesma nenhum sentido. O sentido aparece com o significante, isto é, com a primeira oposição de 'sim' e de 'não', de 'alguma coisa' e de 'nada'. (...) [O sentido da mensagem é aquele] que a experiência pode receber num discurso que a articulará segundo um certo código, ou seja, num sistema de oposições significantes." (Descombes, 1979, p. 118) (4)

É justamente em Introdução à obra de Marcel Mauss que podemos encontrar essas duas teses reiteradas sob a pena de Lévi-Strauss. Dessa forma, ele aproveita a oportunidade de prefaciar a obra maussiana para apresentar o seu próprio programa, situando Mauss no lugar de alguém que teria impulsionado a reforma científico-estruturalista na antropologia mas que, inexplicavelmente, teria estacionado nos preliminares de tal reforma.

O prefácio é aberto com a ênfase no modernismo do pensamento de Marcel Mauss. Seu índice maior seria o adiantamento das questões da medicina psicossomática operado no Essai sur l'idée de mort de 1926. Aí, Mauss discorreu sobre a relação entre o fisiológico e o social e, apesar de não tê-la descoberto, foi um dos primeiros pensadores a "(...) sublinhar a sua autenticidade, a sua generalidade e, sobretudo, a sua extraordinária importância para a justa interpretação das relações entre o indivíduo e o grupo." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, 149). Mauss teria, assim, antecipado as questões colocadas pela escola antropológica americana contemporânea de Lévi-Strauss ao sublinhar a importância de um estudo sobre a forma pela qual a sociedade determina o uso que o indivíduo faz de seu corpo, estabelecendo o plano das pesquisas da etnografia moderna, e percebendo que a aproximação entre a etnologia e a psicanálise seria uma decorrência lógica e extremamente significativa dessa nova orientação.

Em Rapports réels et pratiques de la Psychologie et de la Sociologie, ensaio de 1924, Mauss se dirigia aos psicólogos ao lhes chamar a atenção para os fatos nos quais a natureza social está intimamente associada à natureza biológica do homem e definia a primeira como "um mundo de relações simbólicas". Para Mauss, se os psicólogos buscavam apreender casos individuais e anormais de expressão do simbolismo social, os antropólogos apreendem, em seu campo de pesquisa, essa mesma expressão; só que isso lhes acontece na circunscrição de fatos normais e em muito maior número. Os fenômenos sociais estruturam os psicológicos e, portanto, não faria sentido recorrer a uma terminologia psiquiátrica para caracterizar fatos sociais. As "condutas individuais normais nunca são simbólicas por si mesmas" (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 155), ou seja, a manifestação individual do simbolismo será sempre dependente da ordem coletiva. Nem mesmo as condutas anormais podem ser consideradas a expressão de um simbolismo autônomo. Se, à primeira vista, elas fornecem a impressão de uma autonomia, esta não passa de um fato em tudo ilusório. As condutas anormais não constituem um acontecimento individual já que "cada sociedade possui as suas formas preferidas de perturbações mentais" (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 156) e estas são, tanto quanto as formas mentais normais, função de uma dimensão simbólica coletiva.

A partir dessas considerações, Lévi-Strauss começa a abordar um problema que fora levantado por Mauss mas que por ele não foi resolvido. Trata-se da comparação entre o feiticeiro e o neurótico. Embora estes dois sujeitos realmente apresentem traços comuns, o autor apresenta dois tipos de restrições que colocam em xeque essa comparação: primeiro, para a própria psiquiatria, seria impossível reduzir as condutas dos xamãs a uma forma de neurose; além disso, segundo os etnógrafos, em todas as outras circunstâncias que não a situação de transe, os feiticeiros revelam uma conduta absolutamente normal para os critérios do grupo e, com isso, Lévi-Strauss se pergunta:

"Em nome de quê se afirmaria que indivíduos correspondendo à média do seu grupo, dispondo nos atos da vida corrente de todos os seus meios intelectuais e físicos, e manifestando ocasionalmente uma conduta significativa e aprovada, deveriam ser tratados como anormais?" (1950/s/d, p. 157)

Há, portanto, uma contradição em comparar um xamã a um neurótico e Lévi-Strauss postula a existência de duas formas de resolvê-la. Uma seria afastar totalmente a conduta neurótica da conduta de possessão, o que impossibilitaria de vez a comparação entre elas. Outra possibilidade seria manter a pressuposição de que ambas as condutas possuem a mesma natureza e a associação dessa natureza com algum tipo de patologia deve ser entendida como uma especificidade da nossa sociedade. A tendência de Lévi-Strauss é, claro, adotar essa segunda forma de pensamento, sendo que isso abre, por sua vez, mais duas possibilidades: 1- considerar os fenômenos psicopatológicos como um acontecimento exclusivamente da ordem de uma determinação sociológica sobre a conduta individual; 2- admitir a existência de um substrato fisiológico que contribui para a formação de uma doença mental na medida em que isso significaria um "terreno favorável" para o advento de "(...) condutas simbólicas que continuariam a depender apenas da interpretação sociológica." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 158) Lévi-Strauss, obviamente, se posiciona, com isso, a favor da construção de uma "teoria puramente sociológica das perturbações mentais" e nem mesmo a descoberta dos fatores bioquímicos que desencadeiam a neurose seria suficiente para desbancar a interpretação sociológica. Nesses termos, não faria grande diferença optar pela primeira ou pela segunda alternativa.

Mas, como pode funcionar, na visão de Lévi-Strauss, uma interpretação sociológica para os fenômenos da psicopatologia? Em primeiro lugar, é preciso levar em conta que, se a sociedade pode ser definida como um conjunto de relações simbólicas, isso não significa que ela seja integralmente simbólica, ou seja, nenhuma sociedade consegue "(...) oferecer a todos os membros, e no mesmo grau, o meio de serem utilizados plenamente na construção de uma estrutura simbólica que, para o pensamento normal, só é realizável no plano da vida social." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 159) A existência desse desfalque se deve a dois fatores: 1- a contextualização epaço-temporal de toda sociedade - isso significa que ela sofrerá a influência, no mais das vezes perturbadora, tanto de sociedades vizinhas quanto dos outros tipos de organização que ela mesma possuiu no passado; 2- a irredutibilidade recíproca dos diversos sistemas simbólicos (linguagem, parentesco, economia, arte, ciência e religião). Assim, a normalidade da conduta de um indivíduo é definida por seu grau de participação na vida social. A doença mental surge quando ele se recusa, de alguma forma, a essa participação. É importante ressaltar que é nesse momento que Lévi-Strauss se refere explicitamente a Lacan ao corroborar sua tese de que, se existe uma forma de alienação na sociedade, ela está muito mais próxima do indivíduo considerado normal do que do doente mental, pois é o primeiro que "(...) consente em existir num mundo definível apenas pela relação do eu com outrem." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 159) Dessa forma, sempre haverá, em qualquer sociedade, pessoas não submetidas ao sistema das relações simbólicas ou que se situam na lacuna entre sistemas simbólicos irredutíveis (5). Elas serão chamadas a desempenhar uma função crucial: a de contribuir para a integridade do sistema social. O grupo lhes "(...) pede, e até impõe, que figurem certas formas de compromisso irrealizáveis no plano coletivo, que finjam transições imaginárias, que encarnem sínteses incompatíveis." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 159) Essas "testemunhas dóceis" ratificam, portanto, a ordem do sistema social; suas lacunas e contradições encontram um meio de se exprimir através da sensibilidade especial encarnada por indivíduos doentes ou por feiticeiros. Tanto as condutas de possessão quanto as psicopatológicas fazem parte da forma de equilíbrio adquirida por cada sociedade.

Em toda essa forma de pensar a relação entre o mental e o social está implícito o pressuposto elaborado por Mauss de que esses dois aspectos sempre se confundem e até mesmo se identificam. No entanto, enquanto Mauss acreditava que seria possível elaborar uma teoria sociológica do simbolismo, Lévi-Strauss defende que a verdade residiria, antes, no sentido inverso: é preciso pensar uma origem simbólica da sociedade. Obviamente, somente esta forma de colocar o problema é que se apresenta coerente com um ponto de vista estruturalista. Além disso, se a sociedade se constitui como um conjunto de relações simbólicas, a conduta individual não pode ser considerada simbólica individualmente, mas apenas na medida em que integra aquele conjunto. Para Lévi-Strauss, o psíquico não se manifesta apenas como um reflexo da sociedade nem tampouco deve ser pensado simplesmente como um de seus fatores constitutivos. Em seu modo de ver, essas duas dimensões - a social e a psíquica - só serão compreendidas corretamente se forem tomadas numa relação de complementaridade dinâmica e é por isso que serão extremamente desejáveis as formas de colaboração entre a etnologia e a psicanálise.

Na segunda parte de seu prefácio, Lévi-Strauss retoma uma importante noção maussiana - importante, inclusive, para Lacan, especialmente no que lhe toca o desejo, expresso em sua tese de doutorado, de construir uma ciência concreta da personalidade. Trata-se da noção de "fato social total" introduzida no Essai sur le don. Para Lévi-Strauss, essa noção denota a intenção de "definir o social como a realidade."

Que o fato social tenha que ser total reflete a necessidade de pensar a realidade como um sistema integrado. Além de ser imprescindível essa noção de integração, também é necessário que seja possível constatar sua manifestação numa experiência individual concreta e o "estudo do concreto que é o completo" (nas palavras de Mauss) é aquele que é capaz de abranger a totalidade da vida. Essa totalidade deve ser pensada como a convergência de três dimensões: ela "(...) deve fazer coincidir a dimensão propriamente sociológica com os seus múltiplos aspectos sincrônicos; a dimensão histórica ou diacrônica; e, enfim, a dimensão fisiopsicológica." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 163) Assim, a noção de fato social total implica necessariamente uma íntima relação entre o social e o mental já que somente nos indivíduos será possível encontrar a influência simultânea daqueles três fatores. Noutras palavras, somente a consideração de uma existência individual concreta pode garantir a correspondência entre o fato total e a realidade. Por outro lado, e no sentido inverso, uma história individual e todas as suas formas de expressão devem ser simultaneamente fenômenos sociais, pois, somente sob a forma de um fato social total, os elementos de uma existência individual "(...) podem adquirir uma significação global e tornarem-se numa totalidade." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 164) Por isso, um fenômeno psicológico não pode deixar de ser também um fenômeno sociológico.

Outro aspecto do fato social total está relacionado à dupla natureza do objeto da sociologia, ao fato dele ser, ao mesmo tempo, coisa e representação. Isso conduz a que o próprio observador faça parte de sua observação. E aqui chegamos à questão do método. Se o interesse do etnólogo se volta para algo que é ao mesmo tempo sujeito de uma experiência e objeto para um saber, a possibilidade de apreendê-lo exige que se coloquem em discussão alguns problemas. Será necessário apreender o fato social tanto "do exterior como uma coisa", quanto do interior, já que a apreensão subjetiva faz parte dele. Além disso, será preciso também que essa apreensão subjetiva seja passível, ela mesma, de uma objetivação, pois, para que o conhecimento adquirido possa ser estabelecido e transmitido, ele deve ser submetido a uma organização, a uma sistematização. Lévi-Strauss fala de uma "(...) capacidade do sujeito de se objetivar indefinidamente, quer dizer (sem nunca chegar a abolir-se como sujeito), de projetar para o exterior frações sempre decrescentes de si." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 167) A etnologia, para Lévi-Strauss, não pode deixar de recorrer a esse processo de objetivação do sujeito. O etnólogo pode tomar qualquer sociedade, à exceção da sua própria sociedade de origem, como objeto. Mas, o que garante que haverá qualquer ponto em comum entre o funcionamento simbólico de um grupo e a apreensão que dele faz o pesquisador? É para responder essa pergunta, que se situa no âmbito do método, que será preciso introduzir o conceito de inconsciente na antropologia social. Ele é chamado a configurar uma tentativa de ultrapassar a oposição entre o subjetivo e o objetivo, dilema que se inscreve no íntimo das ciências humanas.

Em que consiste esse método? (6) Numa primeira fase, trata-se de promover uma espécie de interiorização do objeto com base na identificação do etnógrafo com a comunidade indígena. Essa identificação é garantida pela suposição de um solo comum a todas as subjetividades cuja natureza é a própria função simbólica. O segundo passo consiste na objetivação do que se passou na identificação subjetiva. Aqui a experiência do pesquisador deve ser remetida "(...) a uma rede de relações que pode ser considerada objetivamente, como uma coisa, um elemento da realidade social, reafirmada aí como de uma consistência equiparável à do mundo físico." (Simanke, 1997, p. 384/5) Assim, o principal instrumento do etnógrafo é sua própria subjetividade com a ressalva de que ela deve ser submetida a um processo de objetivação que, no entanto, nunca chega a esgotá-la. O que importa ressaltar é que a transição do subjetivo ao objetivo é conduzida exatamente pelo conceito de inconsciente. A existência da função simbólica, onipresente tanto na dimensão cultural quanto na totalidade das experiências individuais, assegura a identificação inconsciente com as outras subjetividades. Assim, somente quando o foco da análise se volta para o nível da infra-estrutura inconsciente mais elementar é que ela pode se tornar, no entender de Lévi-Strauss, uma análise científica. Em suas palavras,

"[a oposição entre o eu e o outro] deve ser superada num terreno, que é também aquele onde o objetivo e o subjetivo se encontram, queremos dizer o inconsciente. Por um lado, com efeito, as leis da atividade inconsciente estão sempre fora da apreensão subjetiva (podemos tomar consciência dele, mas como objeto); e, por outro lado, no entanto, são elas que determinam as modalidades desta apreensão." (1950/s/d, p. 168)

Ressalta, então, que Mauss já teria, de forma inovadora, recorrido ao termo inconsciente para falar da especificidade dos acontecimentos sociais. A maneira, por exemplo, como ele investigou o mana representa uma tentativa de identificação entre "categoria inconsciente" e "categoria do pensamento coletivo" e, nessa aproximação, a linguagem exerceria um papel fundamental. Lévi-Strauss aproveita a referência de Mauss à linguagem para fundamentar o seu próprio projeto estruturalista, advogando enfim a afinidade entre a antropologia social e a lingüística estrutural:

"Porque é a lingüística, e mais particularmente a lingüística estrutural, que nos familiarizou desde então com a idéia de que os fenômenos fundamentais da vida do espírito, os que a condicionam e determinam as suas formas mais gerais, se situam ao nível do pensamento inconsciente." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 169)

Por intermédio da função simbólica e na medida em que ela define o estatuto do inconsciente, o etnólogo poderá se encontrar ao mesmo tempo no íntimo de sua subjetividade e na única ponte capaz de uni-lo à mais absoluta alteridade. Isso delimita o campo de trabalho de duas disciplinas: no primeiro caso, o campo da psicanálise e, no segundo, o da etnologia. Lévi-Strauss define suas respectivas tarefas como a investigação dos aspectos inconscientes da relação entre "um eu subjetivo e um eu objetivante" - para a psicanálise - e da relação entre "um eu objetivo e um eu subjetivado" - para a etnologia. Para este autor, os aspectos inconscientes desses dois tipos de encontro acham-se inscritos a priori, são traços inatos do "espírito humano".

Fazer com que "categoria de pensamento coletivo" seja equivalente a "categoria inconsciente" implica, então, situar a etnologia no interior dos problemas de comunicação. A sociedade e a linguagem pertencem à mesma natureza e a estrutura poderá ser considerada uma realidade supraindividual pois que não tem a ver com representação ou pensamento, ou seja, situa-se para além da psicologia.

É ao desenvolver esse raciocínio, que Lévi-Strauss anunciará, ao lado da lingüística estrutural, a tão propalada precedência do significante sobre o significado. "Como a linguagem, o social é uma realidade autônoma (a mesma, aliás); os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 170) Com isso, ele influencia e, até mesmo determina de maneira mais que direta, o olhar que Lacan debruçará sobre o signo saussuriano e a maneira como, a partir daí, realizará uma redefinição do conceito de inconsciente.

Na visão de Lévi-Strauss, Mauss já teria dado alguns passos a caminho da estrutura. Isso estaria implícito em suas tentativas de atingir realidades mais profundas que ultrapassavam a simples observação empírica. É no Essai sur le don que, pela primeira vez, busca-se reduzir os fenômenos sociais a formas gerais fundamentais. Aí a realidade social é pensada como um sistema cujas partes podem ser correlacionadas e no qual poderão ser descobertas conexões cujo valor heurístico será superior às frágeis especulações empiristas ou funcionalistas. O projeto de Mauss estaria, então, em consonância com o projeto lingüístico de Troubetzkoy e Jakobson - os quais foram, aliás, contemporâneos. Para os lingüistas, tratava-se de "(...) distinguir um dado puramente fenomenológico, que a análise científica não pode determinar, de uma infraestrutura mais simples do que ele, e à qual esse dado deve toda a sua realidade. (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 173) É por causa desta afinidade que Lévi-Strauss pensa haver na obra de Mauss, embora apenas em estado embrionário, a inauguração de uma nova e rica forma de pensamento para o campo da etnologia. A seu ver, a crescente possibilidade de matematização dos dados obtidos pelas pesquisas etnológicas é o que assegura a correção do caminho apontado por Mauss e assumido pela antropologia estrutural; único caminho apto a receber os méritos e o título de "científico". O autor está certo de que o casamento da antropologia com a lingüística produzirá a construção de uma ampla ciência da comunicação cujo instrumento maior será o rigor do raciocínio matemático.

A terceira e última parte do prefácio é dedicada à investigação das razões que explicariam o fato de essas idéias terem permanecido em estado de esboço no pensamento de Mauss. O problema se situa com relação à idéia de troca. É que, ao se deparar com a troca como aquilo que é o fator comum a todos os fenômenos sociais, Mauss, no Essai sur le don, ao invés de conduzir suas deduções na direção da estrutura - coisa que já havia feito em outros ensaios e que o teria levado à construção da antropologia estrutural desejada por Lévi-Strauss -, caminhou, antes, numa direção oposta ao tentar definir a troca por suas operações discretas componentes. Privilegiou, assim, as partes e não o todo. Foi por isso que sentiu a necessidade de acrescentar - dedução errônea, segundo Lévi-Strauss - a definição indígena do hau como razão fundamental da troca. "Mauss encarniça-se em reconstruir um todo com partes, e, como isso é manifestamente impossível, é-lhe necessário acrescentar à mistura uma quantidade suplementar que lhe dá a ilusão de ter atingido o seu fim. Essa quantidade é o hau." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 177) Se Mauss houvesse, quanto a isso, sido fiel ao seu próprio princípio de que "a unidade do todo é ainda mais real do que cada uma das partes", não teria sido preciso que ele recorresse ao hau para definir a "virtude" motor da circulação das dádivas. Com isso, ele teria percebido que o primordial é a própria troca e não se teria deixado levar por uma mistificação do pensamento indígena. Lévi-Strauss explica: "O hau não é a razão fundamental da troca: é a forma consciente sob a qual homens de uma determinada sociedade, onde o problema tinha uma importância particular, apreenderam uma necessidade inconsciente cuja razão se encontra noutra parte." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 177) O erro de Mauss teria sido oscilar entre fazer uma descrição da teoria indígena (a qual recorria ao hau como explicação) ou elaborar uma teoria da teoria indígena. Como estacionou na primeira opção, não foi capaz de levar adiante a construção da antropologia estrutural. Noutras palavras, Mauss não chegou ao segundo passo do método antropológico: não realizou a fase da objetivação daquilo que tinha atingido por intermédio da identificação subjetiva. A forma correta de atingir a realidade subjacente aos fenômenos da troca seria a consideração das estruturas mentais inconscientes para as quais a linguagem constituiria o meio de acesso privilegiado. Ao invés de recorrer ao hau (para uma teoria da dádiva) e ao mana (para uma teoria da magia) como fatores explicativos em si mesmos, Mauss deveria, aos olhos de Lévi-Strauss, ter procurado construir uma teoria que desse conta da estrutura inconsciente da qual aquelas noções seriam apenas conseqüências.

O último desenvolvimento teórico do prefácio de Lévi-Strauss consiste em relacionar diretamente um dos mais antigos ensaios de Mauss, o Esquisse d'une théorie générale de la magie, de 1902, com alguns dos pilares da lingüística estrutural. Este ensaio está fundamentado na noção de mana, termo polinésio utilizado, segundo o prefaciador, a cada vez que se revela uma defasagem entre significante e significado. Mauss trata a noção de mana da mesma forma que tratou a noção de hau, e, portanto, aqui se repetem as razões pelas quais não concretizou de uma vez por todas o projeto estrutural. Para explicar-lhe o sentido, Mauss recorre a sentimentos e crenças (categorias que não podem ser explicativas pois que pertencem à ordem do que deve ser explicado) quando, na verdade, seria necessário se referir à ordem de um sistema. Para Lévi-Strauss, o mana é um tipo de resposta universal requerido sempre que a humanidade se encontra diante de uma situação específica:

"(...) estes tipos de noções intervêm, um pouco como símbolos algébricos, para representar um valor indeterminado de significação, em si mesmo desprovido de sentido, e, portanto, susceptível de receber seja que sentido for, cuja única função é preencher uma distância entre o significante e o significado ou, mais exatamente, assinalar o fato de que, em tal circunstância, em tal ocasião, ou em tal forma de manifestação, uma relação de inadequação se estabelece entre significante e significado (...)." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 182/3)

Esta a crítica de Lévi-Strauss a Mauss: em seu próprio pensamento, o mana ocupa o lugar de uma mágica função. Ele imputa ao pensamento indígena propriedades que pertencem, antes, à sua própria forma de pensar. Recorrer ao mana como explicação significa reduzir a antropologia à descrição da concepção que o indígena faz de sua realidade, significa transformar uma disciplina que deveria ser científica numa "fenomenologia verbosa", numa "(...) mistura falsamente ingênua em que as obscuridades aparentes do pensamento indígena seriam alegadas para encobrir as confusões, de outro modo demasiado manifestas, do pensamento do etnólogo." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 184) Aqui, mais uma vez, a troca é o centro da questão. No entender estruturalista de Lévi-Strauss, existe uma contradição que é própria ao pensamento simbólico, o qual, como já vimos, define o domínio do social. Essa contradição consiste em que o símbolo nunca designa um referente, ele apenas remete a outros símbolos infinitamente; consiste em que o ser humano só é capaz de perceber as coisas através do crivo de sua relação com o outro, ou seja, através da comunicação, da intersubjetividade, da linguagem, da troca, enfim; consiste na inexistência de uma continuidade entre simbólico e real, entre palavra e coisa. Assim, a noção de mana, que é da ordem do pensamento inconsciente, exerce a função de tamponar essa contradição, de superar, de alguma forma, dois tipos de oposição: a oposição entre pensamento e realidade e a oposição entre o eu e o outro. Tal noção só pode ser compreendida corretamente se essa sua função for vislumbrada, o que não ocorreu com as especulações de Mauss. O mana é "(...) a expressão consciente de uma função semântica, cujo papel é permitir ao pensamento simbólico exercer-se apesar da contradição que lhe é própria." (Lévi-Strauss, 1950/s/d, p. 188) Para Lévi-Strauss, é necessário ter sempre em conta o caráter relacional do pensamento simbólico, ou seja, o fato de ele se afirmar como uma relação de troca. Assim, dizer que a função simbólica é o fator explicativo primordial significa dizer que a troca também o é. Esse raciocínio, Mauss não teria alcançado.

Existe, portanto, uma inadequação inerente à linguagem entre significante e significado. Essa assimetria indica uma superabundância de significantes diante da qual haveria uma escassez de significados. Isso porque a origem da linguagem, na visão de Lévi-Strauss, não pode ter sido progressiva: o simbolismo é disruptivo; houve um momento antes do qual não existia nenhum significante e depois do qual todos os significantes tornaram-se possíveis de uma só vez. Apenas o ato de correlacionar significados a significantes seria contínuo e é isso que define o progresso do conhecimento. Dessa subtração resulta um excesso infinito de significantes para os quais ainda não foram estabelecidos significados. Esses "significantes flutuantes" constituem o resto, a sobra da contradição da operação simbólica e o mana representa uma de suas manifestações. O autor inspira-se no "fonema zero" de Jakobson para falar, a propósito do mana de um "valor simbólico zero": forma pura, vazia, sobre a qual se podem acoplar diversos significados, quaisquer significados. Por sua vez, o significante flutuante será a influência mais direta para a idéia lacaniana de deslizamento da cadeia significante.

Lévi-Strauss termina por concluir que todos esses seus "adendos" não se opõem à obra maussiana. Antes, requer que suas especulações estruturalistas sejam complementares ao pensamento de Mauss e defende que ele mesmo os teria alcançado se tivesse sido capaz de pensar a partir de uma lógica simbólica, portadora das leis da linguagem.

Segundo Dosse (op. cit.), ao adaptar a distinção saussureana entre significante e significado para a antropologia, Lévi-Strauss relaciona significante a estrutura e significado a sentido. Ao fazer isso, afasta-se do esquema original de Saussure, visto que, para este autor, tratava-se apenas da oposição entre som e conceito. Essa correção de rota radicaliza a intenção de retirar o caráter psicológico da noção de símbolo, o que produzirá reflexos mais que diretos na construção lacaniana do registro do simbólico. Por aí se pode começar a constatar o quanto é um Saussure filtrado por Lévi-Strauss que inspira o pensamento de Lacan. A partir da adoção da forma estruturalista de pensar a relação entre significante e significado, ele conduzirá o empreendimento de retirar, também dos conceitos da psicanálise, sua roupagem psicológica e não perderá a oportunidade de atacar todas as formas de psicologismo. Somente depois que o termo inconsciente torna-se capaz de se constituir em depositário de uma nova definição dentro dos limites do método antropológico estrutural de Lévi-Strauss, é que Lacan concederá em ver aí um valor positivo para esse um conceito. Ele encontra no estruturalismo um meio de apagar suas reservas quanto à forma como essa instância é definida por Freud, pois, se o inconsciente é entendido como o próprio funcionamento da função simbólica, torna-se possível descartar a contradição da expressão "representação inconsciente" em favor da idéia de "estrutura inconsciente" a qual não remete a nenhuma interioridade psicológica nem a nenhum conteúdo pulsional. Assim revisto, o conceito de inconsciente poderá ser encaixado no quadro das premissas do projeto lacaniano de análise concreta do fato da personalidade. Até então, Lacan descartava totalmente a definição que podemos encontrar em Freud para o inconsciente e é somente sob as exigências da releitura possibilitada pelo estruturalismo que ele se converterá no próprio objeto de seu pensamento, conduzindo à sua mais famosa palavra de ordem: "o inconsciente é estruturado como uma linguagem".

Pronunciamento emblemático do aspecto aqui ressaltado é a seguinte passagem de A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud: "O inconsciente não é o primordial nem o instintivo e, de elementar, conhece apenas os elementos do significante." (Lacan, 1957/1966, p. 526) O inconsciente requisitado pela psicanálise lacaniana é, ao menos inicialmente, o mesmo do qual fala a antropologia estrutural e isso implica a existência de uma enorme distância entre a teoria assim construída e o pensamento do fundador da psicanálise:

"Dessas inovações emergem as características do método estruturalista em antropologia, na qual o conceito de inconsciente vai receber uma acepção admissível ao projeto lacaniano, ainda que ao custo de um tal estranhamento com seu sentido freudiano originário." (Simanke, 1997, p. 380)

Obviamente este inconsciente não tem que ver com aquele descrito na primeira tópica freudiana como sistema que possui conteúdo e modo de funcionamento específicos, respectivamente os representantes de pulsão e o processo primário (7). Ricoeur o designa como um inconsciente kantiano que, no entanto, não faz referência a um sujeito transcendental, um inconsciente categorial e combinatório; ele determina uma ordem ignorada ao estabelecer conexões entre os sistemas sociais e "(...) categorias primordiais que funcionam como categorias numênicas" (Dosse, 1991/1993, p. 51) (8). Entre este espírito inconsciente e a natureza, é postulada uma isomorfia que garante as possibilidades de compreensão do sistema considerado. Ricoeur lembra que, em Antropologia estrutural (1958), bem antes de O pensamento selvagem (1962), onde este ponto atinge seu clímax metafísico, Lévi-Strauss já falara de uma identidade entre as leis do mundo e as leis do pensamento. Se as leis do mundo são fundamentalmente sincrônicas e as do pensamento também e na mesma medida, podemos encontrar no método estrutural um princípio metafísico que institui uma relação não-histórica entre observador e sistema, ao mesmo tempo que garante a potência explicativa do estruturalismo e seus anelos de cientificidade - já que a relação de compreensão é entendida como algo objetivo em última instância.

Simanke mostra a importância de destacar qual é a deixa que Lévi-Strauss entrega a Lacan. Na Introdução à obra de Marcel Mauss, o antropólogo nos fala da existência de duas espécies de simbolismo: um simbolismo autônomo e outro dependente. O primeiro pertence à coletividade, o segundo, à dimensão individual. A partir dessa divisão, "(...) o sujeito individual passa a ser considerado apenas como uma ocasião para que o simbolismo social se manifeste (...)." (Simanke, 1997, p. 382) Se o próprio da antropologia social é tomar como objeto de reflexão o funcionamento do simbolismo autônomo, a porta fica aberta para que uma outra disciplina tome para si o caminho do estudo do simbolismo dependente e se proponha a dar conta da determinação simbólica do sujeito. É exatamente aí que Lacan vai situar seu projeto. Em torno do sujeito e da ordem simbólica, os quais possuem a mesma natureza, a mesma matéria constitutiva (a linguagem), ele pode dar curso ao seu projeto científico de origem não-freudiana (cujos princípios já encontraram sua primeira formulação na tese de doutorado de 1932), pois

"(...) seu objetivo sempre foi identificar uma causalidade homogênea ao sujeito, que evitasse os escolhos do reducionismo. Esse objetivo nunca deve ter-lhe parecido mais próximo de ser atingido do que nessa proposta do simbolismo como uma espécie de substância universal do mundo humano, tanto na sua expressão coletiva quanto individual." (Simanke, 1997, p. 383)

Assim, é a partir da leitura de Introdução à obra de Marcel Mauss que Lacan se depara com os princípios fundamentais do estruturalismo e passa a adotá-los como as premissas de seu próprio projeto. Apostará tanto nessas novas premissas que chegará ao ponto de lamentar que Freud não tenha tido acesso a elas. Simanke compara mesmo a leitura que Lévi-Strauss fez de Mauss àquela que Lacan fez de Freud - trata-se de processos interpretativos semelhantes na medida em que se utilizam dos mesmos instrumentos. Esse texto programático que propõe uma rigorosa metodologia (Dosse o chama de "texto-manifesto") pode ser apontado como o "verdadeiro programa para o lacanismo dos anos 50" (Simanke, 1997, p. 387) pois é com ele que Lacan pode, enfim, tomar o inconsciente como objeto de pesquisa e que se inaugura a prevalência que o simbólico assumirá em seu pensamento durante um longo período. De fato, é o próprio Lévi-Strauss quem apontará o caminho para esta arrancada pois, além de trazer, em seu prefácio, uma discussão explícita a respeito da psicanálise - referindo-se amiúde a questões relacionadas à psicopatologia -, defende a existência de uma afinidade fundamental entre a etnologia e a psicanálise: se a primeira disciplina tem como alvo o funcionamento da função simbólica nos processos sociais, a segunda deverá se debruçar sobre o modo como esse simbolismo coletivo se traduz na esfera individual.

 

2. Mito e neurose: um exercício estruturalista

2.1. Introdução

A conferência O mito individual do neurótico, proferida no Collège Philosophique de Jean Wahl no ano de 1953, foi, como o próprio Lacan nos indica em De nossos antecedentes, o início de suas referências ao estruturalismo. Constitui-se como a primeira tentativa de aplicação dos princípios de uma análise estrutural a questões próprias ao domínio da psicanálise.

Ao tempo em que a adoção do paradigma estruturalista significa tanto a possibilidade de assegurar à doutrina psicanalítica seu desejável rigor científico quanto a garantia de que, lida dessa maneira, a noção de inconsciente não possui mais raízes em nenhuma espécie de psicologismo, será necessário também que Lacan mantenha e ratifique suas referências ao ensino de Alexandre Kojève (9). Assim, enquanto a geração de intelectuais estruturalistas afasta-se cada vez mais de um modo de pensar hegeliano - o que irá culminar num verdadeiro repúdio da dialética como instrumento de reflexão (vide as obras de Deleuze e Derrida, por exemplo (10)) -, Lacan, na contramão dos acontecimentos, precisa fazer valer, a bem da clínica e da especificidade epistemológica da psicanálise, um encontro entre Kojève e Lévi-Strauss que não deixará de ser problemático.

Logo de saída, Lacan discorre sobre as relações entre psicanálise, ciência e arte tendo em vista enfatizar que, se por um lado, é de uma experiência no campo da palavra que se trata, esta só adquire sentido na medida em que mantém sua referência ao homem. Em sua argumentação, é das artes liberais - no sentido que essa expressão possuía na Idade Média - que a psicanálise mais se aproxima, visto que, nelas, a relação com a "medida do homem" é fundamental. Isso não significa que Lacan esteja abrindo mão da bandeira da cientificidade. Ao contrário, esse seu preâmbulo visa a situar as características próprias que um método estruturalista deve assumir para que possa ser inserido no domínio psicanalítico. A relação com as artes liberais serve justamente para destacar qual será a condição exigida: que o sujeito tenha aí o seu lugar. Afinal, mesmo a antropologia estrutural se localiza no confuso campo das ciências do homem. Assim,

"(...) se esse trabalho assinala a adesão oficial de Lacan ao estruturalismo, ele está, não obstante, totalmente permeado por esse esforço de conservar o sujeito no centro da reflexão psicanalítica, sem que esse seja esmagado pela determinação necessária que deve sofrer da parte de um meio social doravante concebido em termos de estruturas." (Simanke, 1997, p. 418/9)

Para Lacan, a psicanálise é a única disciplina capaz de preservar, em termos científicos, uma "relação do homem consigo mesmo" e essa relação se define, sobretudo, pela presença determinante da linguagem. O que constitui a experiência analítica é a palavra. Então, para dizer a verdade dessa experiência, seria preciso dizer a própria palavra, ato que, no pensamento lacaniano, pertence, desde já, à ordem da impossibilidade. Assim, frente à inexistência de uma metalinguagem, Lacan defende a presença de uma verdade na análise, a qual, por definição, não pode ser dita. É por isso que a experiência analítica nunca poderá ser totalmente objetivável: existe um lugar que escapa às possibilidades do dizer, lugar reservado à subjetividade em seu mais essencial aspecto, isto é, a relação com a linguagem - fator de definição daquilo que pertence à ordem do humano, visto que é a linguagem o que a diferencia da ordem animal. Aliás, se o que constitui o sujeito não é outra coisa senão a própria linguagem, ou seja, se sujeito e linguagem serão termos em certa medida equivalentes, essa relação pode ser entendida como relação do sujeito consigo mesmo ou da linguagem consigo mesma. Com efeito, esse fechamento é um dos aspectos que Lacan trata de enfatizar:

"A psicanálise é atualmente a única disciplina que talvez seja comparável a estas artes liberais, pelo que ela preserva desta relação de medida do homem consigo mesmo - relação interna, fechada sobre si mesma, inesgotável, cíclica, que comporta por excelência o uso da palavra." (Lacan, 1978, p. 292)

É necessário ressaltar ainda que essa relação fechada promovida pela psicanálise é, ao mesmo tempo, intersubjetiva, visto que, durante a década de 50, esse é um ponto essencial na compreensão lacaniana tanto da linguagem, quanto do processo analítico e dos caminhos que conduzem à constituição do sujeito.

É nesse contexto que a noção de mito assume, para Lacan, uma função teórica crucial, pois, embora persista este caroço indefinível na experiência analítica, não se deixará de procurar exprimi-la. O mito é a única forma de linguagem capaz de propor um redimensionamento deste problema pois, se o sujeito é constituído pelo simbólico, então é possível construir um discurso que o tenha como objeto, desde que esse discurso esteja fundamentado sobre um instrumento também simbólico, como o é o mito em sua estrutura. Se, dada a inexistência de uma metalinguagem, a palavra não pode dizer de si mesma - o que equivale a dizer que a verdade não pode apreender a si mesma -, a única saída para este impasse será recorrer a um seu reflexo estrutural num discurso mítico, qual seja, o Édipo com seu duplo valor de mito e complexo:

"O mito é o que atribui uma fórmula discursiva a qualquer coisa que não pode ser transmitida na definição da verdade, porque a definição da verdade só pode se apoiar em si mesma, e é enquanto a palavra progride que ela a constitui. A palavra não se pode apreender a si mesma, nem apreender o movimento de acesso à verdade, como verdade objetiva. Ela apenas pode exprimi-la - e isto, de uma maneira mítica. É neste sentido que se pode dizer que aquilo em que a teoria analítica concretiza a relação intersubjetiva, e que é o complexo de Édipo, possui um valor de mito." (Lacan, 1978, p. 292)

Também em De nossos antecedentes, Lacan afirma que essa conferência se refere ao primeiro texto de Lévi-Strauss sobre o mito, isto é, A eficácia simbólica, publicado em 1949. Contudo, é preciso acrescentar-lhe dois outros ensaios de Lévi-Strauss: O feiticeiro e sua magia, também de 1949 e A estrutura dos mitos que, embora só tenha sido publicado em 1955 - ou seja, em data posterior à da conferência de Lacan - compila o conteúdo do curso do antropólogo na École Pratique des Hautes Études durante os anos de 1952 a 1954, sendo, portanto, contemporâneo às produções teóricas do psicanalista. Na verdade, o que Lacan procura fazer em sua conferência é aplicar a metodologia descrita no último ensaio referido ao clássico caso freudiano do Homem dos Ratos. Esses três textos lévi-straussianos podem ser considerados fundamentais para compreendermos a entrada de Lacan no paradigma estruturalista e, por isso, neles nos deteremos mais detalhadamente antes de voltarmos a O mito individual do neurótico.

2.2. Etnologia e psicanálise - o funcionamento do simbólico segundo de Lévi-Strauss

Tanto O feiticeiro e sua magia quanto A eficácia simbólica culminam com discussões a respeito da psicanálise. No primeiro, ela é mais crítica; no segundo, mais em termos de propostas. De qualquer forma, ficam em ambos sugeridas as fecundas possibilidades teóricas que podem decorrer de um diálogo entre a antropologia e a psicanálise, as quais têm como ponto de partida principal o estabelecimento de uma equivalência entre a cura xamanística e a cura psicanalítica (11). Os dois ensaios também possuem um objetivo comum: pesquisar as razões pelas quais os procedimentos xamânicos chegam a funcionar.

Em O feiticeiro e sua magia, Lévi-Strauss explica que a crença na magia é o que justifica sua eficácia e ela se divide em três componentes: a crença do feiticeiro em suas próprias técnicas e as crenças do enfeitiçado e da comunidade no poder do feiticeiro. Quanto à última, ela se traduz como "(...) a confiança e as exigências da opinião coletiva, que formam a cada instante uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se definem e se situam as relações entre o feiticeiro e aqueles que ele enfeitiça." (Lévi-Strauss, 1949a/1975, p. 194/5) A experiência, no processo xamânico, de uma realidade desconhecida se manifesta, então, sobre três suportes: a experiência do xamã que vive a força de estados psicossomáticos - quer possua uma crença genuína em seus procedimentos, quer os dissimule deliberadamente -, a experiência do doente que possui a chance de receber a cura e a do grupo que, com seu arrebatamento afetivo, com sua catarse, e por meio do funcionamento do sistema simbólico, fornece as garantias de que o acontecimento mágico será coerente com o nível do pensamento. Estas três pontas da experiência são intrínsecas ao que Lévi-Strauss chama de "complexo xamanístico", sendo que as extremidades é que possuem aí um valor explicativo acentuado: "(...) [os elementos do complexo] se organizam em torno de dois pólos, formados, um pela experiência íntima do xamã, o outro pelo consensus coletivo." (Lévi-Strauss, 1949a/1975, p. 207) A experiência do doente se situa mais como uma espécie de efeito de todo o processo e está totalmente submetida ao esquema representativo do grupo (o que reflete o princípio lévi-straussiano de que o psiquismo individual é uma das formas de inflexão do sistema simbólico). Apesar disso, existe, com relação a ela, um fato a ser sublinhado (e aqui se inicia o cotejamento do xamanismo com a psicanálise). É que "(...) um doente curado por um xamã está particularmente apto para se tornar, por sua vez, xamã (...)" (Lévi-Strauss, 1949a/1975, p. 208), tal como um analisando poderá um dia transpor o divã e tornar-se psicanalista, sendo a experiência de se submeter a uma análise uma condição para tal transposição.

Lévi-Strauss lembra que o xamã geralmente possui, de fato, conhecimentos e técnicas capazes de garantir, em parte, o alcance da cura. Além disso, existem doenças de caráter psicossomático que se resolvem positivamente com uma terapêutica psicológica. Os casos curados por causa desses dois fatores contribuem ainda mais para a crença do grupo em seus poderes. Mas, como não se trata de procurar causas nem na fisiologia, nem na psicologia, torna-se preciso explicar que, mesmo estes dois níveis da existência humana - organismo e psique - estão submetidos e são até mesmo constituídos por fatores de ordem sociológica, esta entendida como sinônima da ordem simbólica. Portanto, somente o pólo coletivo do sistema pode fornecer a causa última da eficácia do xamã. Dessa forma, a questão central pertence à existência de uma relação especial entre alguns indivíduos e certas exigências sociais.

O autor recorre, então, a um conceito freudiano para continuar a explicar a função social do xamã. Com a encenação de um espetáculo que envolve as reações da vítima e dos espectadores e que retoma as origens do mal que atinge a primeira, o xamã logra uma espécie de "ab-reação". No Vocabulário da Psicanálise, encontramos o conceito de ab-reação definido como "Descarga emocional pela qual um sujeito se liberta do afeto ligado à recordação de um acontecimento traumático, permitindo assim que ele não se torne ou não continue sendo patogênico." (Laplanche & Pontalis, 1967/1992, p. 1) Para Freud, pelo início de sua obra, ab-reagir um afeto através da linguagem funciona como um substituto para a ação que fora reprimida à época do trauma. Daí a importância central desse conceito para a teorização de um método terapêutico que se baseava, então, no objetivo de promover a catarse do paciente. Assim, Lévi-Strauss aplica essa noção ao procedimento do xamã (designando-o como um "ab-reator profissional"), pois este também visa a reviver, através da expressão verbal, os acontecimentos - até então incompreensíveis - que remontam à origem da desordem, representando o momento decisivo da cura do doente.

Na consecução da ab-reação, a relação fundamental se passa, no caso do xamanismo, entre os pólos do grupo e do xamã. Para Lévi-Strauss, isso conduz a uma necessária reflexão sobre a relação entre o pensamento normal e o patológico. Na concepção do pensamento dito primitivo - e, em última instância, em todas as representações não científicas - a relação entre eles é de complementaridade e não de oposição. Isso se dá na medida em que, por um lado, o pensamento normal se esforça por encontrar sentido no mundo, enquanto o pensamento patológico produz uma infinidade de interpretações sem correspondência na realidade. Assim, "(...) o pensamento normal sofre sempre de uma carência de significado, ao passo que o pensamento dito patológico (...) dispõe de uma pletora de significante." (Lévi-Strauss, 1949a/1975, p. 210) É na atividade do xamã e na repercussão que ela encontra no grupo, que o equilíbrio entre esses dois tipos de pensamento tem lugar. Lévi-Strauss explicita as duas condições necessárias para o alcance desse equilíbrio: 1- que a estrutura - "(...) um sistema de oposições e de correlações que integre todos os elementos de uma situação total onde feiticeiro, doente e público, representações e processos, encontram cada qual o seu lugar" (Lévi-Strauss, 1949a/1975, p. 210) - seja continuamente elaborada e modificada no seio dos diversos modos de relações entre o indivíduo e o grupo; 2- que o público também participe da experiência de ab-reação e que, com isso, possa contribuir, por meio do pólo da tradição coletiva, para a integração em sistema das experiências do xamã e do doente. Experiências que, de outra forma, permaneceriam como corpos estranhos, elementos que, se ficassem fora da organização do sistema simbólico, provocariam perturbações e desordens prejudiciais ao grupo. A ab-reação promove o encontro entre doente e feiticeiro, entre passividade e atividade, conduzindo a uma experiência de totalidade que assegura a coerência do sistema simbólico do grupo.

Lévi-Strauss se pergunta se também na psicanálise, a ab-reação não estaria constituída por três pólos ao invés de um, como se seria levado a pensar de imediato, pois na cura xamanística, "o feiticeiro fala, e faz ab-reação para o doente que se cala" (Lévi-Strauss, 1949a/1975, p. 211), ao passo que na experiência psicanalítica, "é o doente que fala, e faz ab-reação contra o médico que o escuta" (Lévi-Strauss, 1949a/1975, p. 211) No entanto, além da ab-reação do doente, ele chama a atenção para o fato de que o analista também sofreu sua experiência ab-reativa, pois que é necessário, como já foi ressaltado, ter passado por uma análise própria para que tenha chegado aí. Finalmente, ainda teria que ser considerado o terceiro aspecto, a face coletiva da ab-reação na psicanálise, para que possa continuar a ser conduzida a comparação com o xamanismo. Neste ponto, o autor constata uma diferença entre os dois métodos envolvidos: no caso do xamanismo, a magia trata de readaptar o grupo a problemas que ameaçam sua coesão; no caso da psicanálise, trata-se, a seu ver, de readaptar o doente ao grupo. Aos seus olhos, a psicanálise sofreu uma indesejável evolução no sentido de sua transformação numa mitologia, a qual permite o estabelecimento do pólo coletivo da ab-reação. Fatores que teriam favorecido a construção dessa moderna mitologia psicanalítica seriam a extensão, ao pensamento normal, de deduções obtidas a propósito do pensamento patológico e a transposição de hipóteses aplicáveis ao pensamento individual ao campo da psicologia coletiva. Aposta, então, que o valor terapêutico da psicanálise, ao invés de se basear em curas reais, residiria sobre "(...) o sentimento de segurança trazido ao grupo pelo mito que fundamenta a cura (...)". (Lévi-Strauss, 1949a/1975, p. 212) Somando-se esta última consideração, a psicanálise seria completamente equivalente ao xamanismo. Com esse encaminhamento, ela ter-se-ia transformado numa prática de conversões durante a qual "anormais caracterizados" - indivíduos inadaptados no lugar de doentes - transformam-se, por persuasão, em "exemplos representativos do grupo". O tratamento psicanalítico corre o perigo de se reduzir a uma espécie de "reorganização do universo do paciente em função das interpretações psicanalíticas" (Lévi-Strauss, 1949a/1975, p. 212) e a possibilidade teórica da psicanálise seria totalmente explicada pelo sistema mágico-social analisado por Lévi-Strauss (12).

Do desenvolvimento de toda essa argumentação, o autor é levado a concluir que a natureza dos fenômenos estudados é intelectual - apesar de sua manifestação consciente ser afetiva -, pois o que o pensamento mágico oferece ao xamã, ao doente e ao grupo, é a possibilidade de integrar, num sistema de referência, elementos que antes se esquivavam de todas as tentativas de elaboração e destacavam, assim, a divisão sofrida pelo homem entre os sistemas do significante e do significado.

Lévi-Strauss manifesta suas restrições à psicanálise, comparando-a a uma mitologia e descartando a noção freudiana de inconsciente para substituí-la por outra. Lacan utilizará essa crítica para justamente transformá-la numa redefinição da doutrina psicanalítica na qual o papel fundamental será assumido pela função simbólica, tal como acontece no projeto da antropologia estrutural.

Em A eficácia simbólica, Lévi-Strauss investiga a possibilidade de que a ab-reação do feiticeiro induza simbolicamente a ab-reação do doente. Isso por meio da análise de um texto xamânico sul-americano que registra a utilização de um encantamento cujo objetivo é ajudar na realização de um parto difícil. O que determina que o parto realmente se dê após a intervenção do encantamento é o fato de que este efetua uma manipulação simbólica do órgão atingido, providenciando a nomeação e a conseqüente apreensão (consciente e inconsciente) de todo o conteúdo afetivo envolvido na situação. O canto constrói um conjunto sistemático que remonta às origens dos acontecimentos - descrevendo-os com extrema riqueza de detalhes - e termina oferecendo à doente um desfecho organizado e coerente de sua situação, livre das ameaças de uma nova desordem e de acordo com a concepção de universo pertencente a sua sociedade. A cura é o resultado de que um contexto afetivo difícil de ser aceito possa encontrar abrigo no pensamento: "O que ela [a doente] não aceita são dores incoerentes e arbitrárias, que constituem um elemento estranho a seu sistema, mas que, por apelo ao mito, o xamã vai reintegrar num conjunto onde todos os elementos se apoiam mutuamente." (Lévi-Strauss, 1949b/1975, p. 228) Isso só é possível porque a mitologia utilizada pelo xamã é comum à forma de pensamento da vítima e da sociedade em que ela vive. Assim, uma linguagem é oferecida à doente. Nela será estabelecida uma relação entre significantes e significados, ou seja, entre as entidades espirituais envolvidas na batalha e o funcionamento de seu próprio corpo, o qual poderá ser desbloqueado com a expressão verbal do conflito.

Lévi-Strauss situa a cura xamanística entre o método da medicina e o da psicanálise, pois utiliza um método psicológico para resolver desordens orgânicas. Por isso, empreende uma nova comparação entre o xamanismo e a psicanálise que possa ajudar na compreensão da eficácia do primeiro. Dessa vez, ele observa que seu cotejo não implica uma atitude de "descortesia" para com a doutrina freudiana.

O ponto em comum seria que os dois métodos visariam a vencer conflitos e resistências inconscientes por meio da transposição de seus conteúdos ao nível da consciência. No caso do xamanismo, trata-se de fornecer um invólucro psíquico a algo que se passava em nível orgânico. Quanto à psicanálise, é contra a força do recalque que se tem que lutar, pois é ela que procura impedir que certos conteúdos psíquicos acedam à consciência. De qualquer forma, nos dois casos, procura-se produzir uma experiência de ab-reação capaz de promover a dissolução dos conflitos, pois é durante essa experiência que "(...) os conflitos se realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenvolvimento e conduzem ao seu desenlace." (Lévi-Strauss, 1949b/1975, p. 229) Se a psicanálise conta com o fenômeno da transferência no qual é envolvida a dupla presença do analista como alguém que participa da fantasia ainda informulada do paciente ao mesmo tempo em que exerce a função de escutá-la, também na experiência mágica, o xamã assumirá uma duplicidade análoga. É certo que, ao invés de escutar, o xamã será o orador dos acontecimentos. Mas sua função não é somente falar pela vítima e relatar o combate contra o espírito malfazejo. Ele será o herói dessa luta, assumindo, tanto quanto o psicanalista, funções de protagonista na resolução dos conflitos, ou seja, na experiência de ab-reação durante a qual "(...) mecanismos situados fora do controle do sujeito se ajustam espontaneamente, para chegar a um funcionamento ordenado." (Lévi-Strauss, 1949b/1975, p. 229)

Nesta nova argumentação, para que o paralelismo entre xamanismo e psicanálise fosse mais completo, seria necessário ainda admitir e comprovar a existência de uma base fisiológica última para os conflitos psicológicos. Se assim fosse, os dois procedimentos conservariam o objetivo comum de obter uma influência sobre o funcionamento orgânico do sujeito, promovendo aí uma transformação, uma reorganização estrutural cujo princípio seria a existência de uma analogia entre a estrutura mítica inconsciente e a estrutura do que se passa em nível orgânico. Assim, a eficácia simbólica pode ser entendida como a influência que estruturas homólogas são capazes de exercer entre si.

Na continuidade da comparação, agora ressaltando diferenças, Lévi-Strauss procura situar o lugar do mito nos dois tipos de cura. Isso nos interessa mais de perto na medida em que é a esse propósito, e no contexto da neurose, que começará a ser utilizada a expressão "mito individual" tal como será retomada por Lacan, inclusive no próprio título de sua conferência de 1953. Enquanto o neurótico se empenha, durante a análise, na ab-reação do mito individual que configura sua doença, o indígena submetido ao exercício do xamã, procura ab-reagir uma desordem orgânica por meio de sua integração no sistema simbólico de um mito social. Em suas palavras: "O doente atingido de neurose liquida um mito individual, opondo-se a um psicanalista real; a parturiente indígena supera uma desordem orgânica verdadeira, identificando-se a um xamã miticamente transposto." (Lévi-Strauss, 1949b/1975, p. 230) Ou ainda, adiante: "(...) num caso, é um mito individual que o doente constrói com a ajuda de elementos tirados de seu passado; no outro, é um mito social, que o doente recebe do exterior, e que não corresponde a um antigo estado pessoal." (13) (Lévi-Strauss, 1949b/1975, p. 230) Assim, se fosse admitida uma base fisiológica para as neuroses, só restaria uma única diferença entre os dois métodos e ela se referiria à origem do mito envolvido na cura, a qual seria individual, num caso, e coletiva, no outro.

Com base em todos os índices dessa analogia, Lévi-Strauss chega a designar a psicanálise como uma "forma moderna de xamanismo" e aposta que essa disciplina teria muito a ganhar, em termos teóricos, ao se voltar para o estudo da eficácia simbólica na magia indígena:

"(...) a psicanálise pode recolher uma confirmação de sua validade, ao mesmo tempo que a esperança de aprofundar suas bases teóricas e de melhor compreender o mecanismo de sua eficácia, por uma confrontação de seus métodos e de suas finalidades com os de seus grandes predecessores: os xamãs e os feiticeiros." (Lévi-Strauss, 1949b/1975, p. 236)

Indica o caminho a ser seguido ao supor que esse ganho teórico da psicanálise estaria especialmente ligado à releitura das noções de mito e de inconsciente. Escolha nada vã já que se trata de dois pilares do pensamento estruturalista, ainda mais que eles serão redefinidos a partir da função simbólica como fator explicativo. É justamente a isso que Lacan vai se dedicar: redefinir o inconsciente freudiano a partir dos princípios estruturalistas - projeto que se estenderá por um vasto período de sua obra - e repensar a neurose a partir da noção de mito, também transformada e entendida sob os mesmos princípios, tarefa a que se presta na conferência que inaugura sua nova forma de pensar.

Quanto ao inconsciente (14), ele será entendido exatamente como um conjunto de estruturas regidas por leis intemporais presentes tanto no pensamento primitivo quanto no homem civilizado. Estranho a conteúdos psíquicos, pulsões, afetos e representações, o inconsciente que Lévi-Strauss deseja que ganhe terreno na psicanálise é conceitualizado exclusivamente em termos de uma forma vazia. Sua realidade é a da lei de estrutura e sua função é ser o campo da atualização do sistema simbólico:

"O inconsciente deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais, o depositário de uma história única, que faz de cada um de nós um ser insubstituível. Ele se reduz a um termo pelo qual nós designamos uma função: a função simbólica, especificamente humana, sem dúvida, mas que, em todos os homens, se exerce segundo as mesmas leis; que se reduz, de fato, ao conjunto destas leis." (Lévi-Strauss, 1949b/1975, p. 234)

É interessante observar que, neste artigo, Lévi-Strauss afirma que as leis do inconsciente como forma vazia são impostas a "elementos inarticulados" que se organizam noutro lugar, chamado por ele de "subconsciente". Pulsões, emoções, representações, recordações pertencem às histórias individuais e só chegam a produzir significação quando organizados pelas leis estruturais do inconsciente, capazes de transformá-los em um "discurso" (por analogia à aplicação das leis lingüísticas sobre o vocabulário). Será exatamente esse o conjunto de fenômenos relacionados por Lacan ao registro do imaginário, embora ele jamais incorpore o termo "subconsciente" a seu vocabulário. Assim, a relação que Lévi-Strauss estipulou entre um inconsciente formal e o subconsciente - o primeiro a organizar, processar e determinar o segundo - é do mesmo tipo da relação que Lacan pensou existir entre simbólico e imaginário. Aqueles termos presentes na obra de Freud serão submetidos a uma leitura que confere, então, soberania à dimensão simbólica, ou seja, ao ponto de vista formal - ao menos até perto do final da década de cinqüenta, época em que se pode constatar uma virada nítida em seu pensamento com relação a diversas premissas.

Com isso, assistimos ao desaparecimento da última diferença que restava entre a psicanálise e o xamanismo. Dada a intemporalidade das leis estruturais e o fato de que elas se reduzem a um pequeno número constante, independentemente de variações históricas ou geográficas, não faz mais sentido recorrer a considerações sobre a gênese individual ou coletiva dos mitos. Todos os mitos possuem, na verdade, uma origem social. Se a psicanálise se depara constantemente com mitos individuais não é porque estes sejam essencialmente diferentes dos mitos indígenas, mas sim por causa do contexto social da modernidade, o qual só reserva para a individualidade a atualização da função mítica: "Esta forma moderna da técnica xamanística, que é a psicanálise, tira, pois, seus caracteres particulares do fato de que, na civilização mecânica, não há mais lugar para o tempo mítico, senão no próprio homem." (Lévi-Strauss, 1949b/1975, p. 236)

2.3. O mito e sua estrutura

É exatamente à elucidação da noção de mito na antropologia estrutural e do método utilizado para estudá-lo que Lévi-Strauss se dedica no último texto seu a ser aqui considerado: A estrutura dos mitos. Seu início é marcado por uma analogia entre os avanços alcançados pela lingüística e os que se faziam necessários na etnologia. Antes de Saussure e da lingüística estrutural, o estudo das línguas era voltado para o estabelecimento de correlações entre sons e sentidos, ou seja, para a tentativa de descobrir qual o aspecto inerente a determinado sentido que fazia com que ele se revestisse de um determinado som. Foi somente com a lingüística estrutural que se passou a constatar a invalidade de tal empreitada e o fato de que "(...) a função significativa da língua não está diretamente ligada aos próprios sons, mas à maneira pela qual os sons se encontram combinados entre si." (Lévi-Strauss, 1955/1975, p. 240) Para o autor, a mesma reflexão deve ser levada a cabo no campo do estudo dos mitos, pois somente esse caminho poderia conduzir à dissolução da contradição entre a contingência de seus conteúdos e a reiteração de suas estruturas.

Com base nesse pressuposto comparativo, ele chega a desenvolver um conceito capaz de submeter a própria lingüística à etnologia. Trata-se do mitema e, para que esse ponto seja atingido, o mito é definido como um terceiro nível da linguagem que possuiria as propriedades dos outros dois (língua e fala) pois que tanto se refere a eventos passados quanto a uma estrutura permanente que compreende as três dimensões temporais - passado, presente e futuro. Assim, o mito possui uma dimensão de língua, outra de fala e ainda se situa como um objeto específico de terceiro nível porque o mitema, apesar de também apresentar uma natureza lingüística, ultrapassa-a; distingue-se da língua e da fala por oferecer, com relação a elas, uma complexidade maior que vai além do aspecto lingüístico: "O mito é linguagem; mas uma linguagem que tem lugar em um nível muito elevado, e onde o sentido chega, se é lícito dizer, a decolar do fundamento lingüístico sobre o qual começou rolando." (Lévi-Strauss, 1955/1975, p. 242) O valor do mito se situa, em última instância, na estrutura de sua história (a forma como seus elementos se combinam) e não apenas em qualquer dos aspectos lingüísticos que o compõem. É sobre essa estrutura que será aplicado o método lévi-straussiano.

Disso decorre que o mito, tal como a linguagem e exatamente por fazer parte dela, é constituído pela conjunção de unidades elementares chamadas mitemas, as quais, por serem as maiores unidades constitutivas da linguagem chegam a abranger as outras, como o semantema, o morfema e o fonema (em ordem decrescente de complexidade). Assim é que a analogia levada a termo com a lingüística conduz mesmo à sua ultrapassagem, indicando a etnologia como um ramo disciplinar mais amplo, que incluiria a primeira em seu domínio.

Lévi-Strauss aposta em que a procura dos mitemas deve ter como princípios as mesmas diretrizes que guiam uma análise estrutural qualquer: "(...) economia de explicação; unidade de solução; possibilidade de reconstituir o conjunto a partir de um fragmento e de prever os desenvolvimentos ulteriores a partir dos dados atuais." (Lévi-Strauss, 1955/1975, p. 243) e que eles poderão ser encontrados no nível da oração, já que este seria o nível lingüístico mais elevado, ou seja, mais abrangente do que os níveis do semantema, do morfema e do fonema. A técnica descrita por Lévi-Strauss consiste em, tendo como ponto de partida os princípios acima assinalados, traduzir os acontecimentos míticos em frases curtas enumeradas. Cada frase assim obtida representa uma unidade constitutiva a ser incluída em feixes de relações componentes do mito pela atribuição de predicados a sujeitos. No entanto, esses feixes de relações só podem produzir significação quando combinados entre si na ordem de um tempo que possui duas dimensões: uma dimensão diacrônica, irreversível (a mesma da fala) e uma dimensão sincrônica, reversível (a mesma da língua).

Para exemplificar a aplicação de sua técnica, Lévi-Strauss faz uso, primeiramente, do mito de Édipo - exatamente aquele que será o mais significativo para a psicanálise, o que certamente constitui um índice da continuidade de seu diálogo com essa disciplina tão requisitada nos seus dois outros ensaios aqui comentados.

Os mitemas constitutivos da história de Édipo são dispostos num quadro cujas colunas devem ser tomadas, cada uma, como um todo e cujos elementos poderão ser submetidos a uma combinatória. As relações localizadas numa mesma coluna apresentam uma característica comum a ser destacada. No caso do Édipo, a primeira coluna indica a superestimação das relações de parentesco (Édipo casa-se com sua mãe, Antígona enterra seu irmão, por exemplo), a segunda coluna dispõe a subestimação dessas mesmas relações (Édipo mata seu pai, Etéocles mata seu irmão), a terceira está ligada à existência de monstros e sua destruição pelos homens (Cadmo destrói o dragão, Édipo liquida a Esfinge) - o que, para Lévi-Strauss, remete à negação da autoctonia do homem -, a quarta, e última, lista nomes próprios que supostamente compreendem o significado comum de "dificuldade em andar corretamente" (Laio = torto, Édipo = pé inchado) e liga-se à afirmação da autoctonia do homem. Entre as duas primeiras colunas e entre as duas últimas, é possível constatar a preservação do tema com a inversão dos sinais (o que é positivo numa, torna-se negativo na outra). Assim, entre as quatro colunas observa-se uma relação que segue o modelo da proporção (ou razão) matemática, a qual é traduzida da seguinte forma: "(...) a superestima do parentesco consangüíneo está para a subestima deste, como o esforço para escapar à autoctonia está para a impossibilidade de consegui-lo." (Lévi-Strauss, 1955/1975, p. 249/50)

Da disposição desses elementos, Lévi-Strauss infere uma inédita compreensão do mito de Édipo à qual não era possível chegar com as tradicionais formas de investigação dos mitos. É isso o que garante a novidade do potencial heurístico obtido com uma análise estrutural. Trata-se de entender que o mito de Édipo carrega consigo a expressão de um impasse entre a crença na autoctonia do homem ou em sua geração a partir do encontro homem/mulher: "(...) o mito de Édipo oferece uma espécie de instrumento lógico que permite lançar uma ponte entre o problema inicial - nascemos de um único ou de dois? - e o problema derivado, que se pode formular, aproximadamente: o mesmo nasce do mesmo ou do outro?" (Lévi-Strauss, 1955/1975, p. 249)

Outra inovação que Lévi-Strauss confere ao estudo dos mitos é a concepção de que todas as versões de um determinado mito fazem igualmente parte de seu conteúdo. Não existe, a seu ver, uma versão que seja a mais genuína, a mais legítima, a que pudesse servir de referência central para o estudo das demais. Ao invés de se buscar uma suposta autenticidade, o importante será apreender as relações diferenciais entre as variantes. Assim é que a versão freudiana do mito de Édipo, por exemplo, lhe pertence e serve-lhe de fonte tanto quanto a de Sófocles. Aqui ainda Lévi-Strauss insiste na permanência da mesma questão: apesar de Freud não mais se deparar com o problema da autoctonia, "(...) trata-se sempre de compreender como um pode nascer de dois: como se dá que não tenhamos um único genitor, mas uma mãe, e um pai a mais?" (Lévi-Strauss, 1955/1975, p. 250)

Enfim, todos os feixes de relações de todas as variantes existentes para cada mito são dispostos em um conjunto tridimensional que pode ser percorrido em seis direções: da esquerda para a direita, de cima para baixo, da frente para o fundo e em suas respectivas inversões. Entre eles, poderão ser estabelecidas correlações e simplificações que, submetidas a operações lógico-matemáticas, finalmente revelarão a lei estrutural do mito. O método da análise estrutural permite, assim, concluir pela observação de que o mito se presta à importante função de mediador entre pensamentos, constatações ou termos opostos, entre, por exemplo, vida e morte, feminino e masculino, agricultura e caça, céu e terra etc. Mas, como as oposições abarcadas pelo mito não são passíveis de solução - exatamente por se encontrarem, cada termo diante do outro, em situação de contradição -, suas variantes poderão ser produzidas ao infinito, a não ser que se esgote "o impulso intelectual que o produziu" (15).

2.4. O mito do "Homem dos Ratos" segundo Lacan

Acompanhamos, nesses três textos, alguns elementos do caminho de Lévi-Strauss para a definição e a formalização de três importantes noções: a de inconsciente, a de mito e a de função simbólica. Lacan vai retomá-las para sua releitura da psicanálise exatamente da mesma forma como aqui foram trabalhadas, ou seja, bem distantes da metapsicologia freudiana. O retorno a Freud operado por Lacan não é, sabe-se bem, uma retomada do contexto teórico-científico a partir do qual se tornou possível a construção dos conceitos freudianos. Aliás, não é mesmo esta a sua proposta. Trata-se, pelo contrário, de praticamente esquecer esse contexto e forçar um encaixe inédito de termos deslocados a uma forma de pensar diferente, a uma outra racionalidade que submete a construção teórica de Freud a aspectos que lhe são radicalmente estranhos: "(...) se Lacan fez sua a tarefa de fundir esses dois referenciais [estruturalismo e psicanálise freudiana], foi com plena consciência do quanto isso implicava de descaracterização para um dos lados." (Simanke, 1997, p. 413) Essa aventura não conduz a uma compreensão do texto freudiano atrelada ao seu modo próprio de desenvolvimento, à sua racionalidade interna, mas à criação de um instrumental psicanalítico completamente novo. Vimos como o próprio Lévi-Strauss contribuiu de maneira decisiva para esse encaminhamento ao estabelecer correlações e paralelos entre o funcionamento da função simbólica e o que se passa na situação analítica.

O primeiro passo de Lacan nesse sentido foi aplicar a grade da análise estrutural ao caso do Homem dos Ratos. Numa intervenção realizada a propósito de uma exposição de Lévi-Strauss sobre mitologia e ritual, encontramos o próprio Lacan falando dos princípios que ele retomou e esclarecendo seu projeto de fazer da conferência de 53 um exercício, voltado para um contexto específico, do método da análise estrutural, a qual é qualificada como:

"(...) altamente apreciada em seu brilho, visto que, como Lévi-Strauss não o ignora, tentei quase de imediato, e com, ouso dizê-lo, um pleno sucesso, aplicar-lhe a grade aos sintomas da neurose obsessiva; e especialmente à admirável análise que Freud forneceu do caso do 'homem dos ratos', isto numa conferência que intitulei precisamente o 'mito individual do neurótico'." (Lacan, 1956, p. 2)

Nesta mesma Intervenção na discussão da exposição de C. Lévi-Strauss sobre as relações entre a mitologia e o ritual, Lacan explica que sua aproximação com a obra do antropólogo foi impulsionada pela ênfase por este conferida ao significante (a partir de 1949 com As estruturas elementares do parentesco), sua prevalência sobre o significado e sua relação com os princípios lógico-matemáticos que regem uma análise estrutural: "Afinal, o que faz com que uma estrutura seja possível, são as razões internas ao significante, o que faz com que uma certa forma de troca seja concebível ou que não o seja, são as razões propriamente aritméticas (...)" (Lacan, 1956, p. 1) Lacan fala ainda da importância da combinatória na análise estrutural, a qual determina que um arranjo encontrado numa geração terá seus termos repetidos na geração seguinte mas dispostos sob uma nova organização que, não obstante, é homóloga à primeira.

Apesar de serem extremamente óbvias as diferenças e até mesmo as incompatibilidades entre os projetos lacaniano e freudiano, a palavra de ordem do primeiro será a do "retorno a Freud", expressão que será suficiente para convencer muitos a procurarem a verdade de Freud na fala e no texto de Lacan e a defenderem que a única leitura possível e apropriada da obra freudiana seria a que estivesse pautada nessas premissas. Se o "retorno a Freud" só passará a ser subscrito com essa expressão posteriormente, aqui ele já se faz sentir quando, por exemplo, Lacan conclama seus ouvintes a confiarem no pai da psicanálise, dando a entrever o tom do que será produzido por ele a partir daí. Lacan pretende, portanto, confiar em Freud e dá a entender que é por essa razão que escolhe tomar como objeto o caso do Homem dos Ratos. Veremos, na verdade, o quanto esse caso se presta tanto a um discurso que requer uma referência a Kojève quanto a ser perfeitamente encaixado sob os ditames de uma análise estrutural. Assim, Lacan poderá fazer esse caso apresentar o significado que mais convém ao seu próprio projeto.

Em Notas sobre um caso de neurose obsessiva, texto publicado em 1909, Freud lega a seus leitores não apenas o relato de um tratamento, mas também um completo inventário dos sintomas encontrados neste tipo de patologia. Soma-se a isso a publicação posterior do registro original realizado por ele ao término de algumas sessões. O sujeito da história é conhecido como "o Homem dos Ratos" porque uma de suas idéias obsessivas era relacionar seus próprios atos com a punição de duas pessoas a quem ele amava (seu pai - que a esse tempo já era morto - e uma dama por quem ele se apaixonara) através de um suplício que consistia em introduzir ratos vivos no ânus da vítima. Trata-se de um sofrimento que envolve a ambivalência afetiva característica da neurose obsessiva e que se define por um investimento amoroso consciente concomitante a um ódio inconsciente, ambos direcionados a uma mesma pessoa. Este paciente de Freud encontra-se envolvido num conflito entre a influência de seu pai e suas próprias inclinações amorosas. Conflito que se construiu sobre a repressão do ódio infantil contra o pai e que serviu de base para a formação de sintomas como compulsões, ordens, proibições, rituais, medos, dúvidas, hesitações, além dos pensamentos obsessivos e da negação fantasística da morte do pai. Esses sintomas foram especialmente ativados quando o sujeito se viu numa situação em que tinha que escolher entre casar-se com uma moça rica - casamento que também lhe renderia um bom emprego - ou com sua prima Gisela, por quem nutria uma paixão desde muito tempo, mas que era pobre e não podia ter filhos. Todas as tendências implicadas nos sintomas investiram, durante o período do tratamento com Freud, impressionantes fantasias de transferência. O que leva o sujeito a procurar a análise é a angústia suscitada pela auto-imposição do pagamento de uma dívida em circunstâncias tão estranhas quanto rigorosamente definidas. Por causa de um juramento obsessivo que atualizava uma situação vivida por seu pai, ele se impôs a obrigação de reembolsar um certo tenente quando, na verdade, era à funcionária do correio que ele devia a quantia em questão. É importante lembrar que o desencadeamento da obrigação de pagar a dívida se deu imediatamente após o momento em que o sujeito tomou conhecimento, através de um relato fornecido por um general conhecido por sua crueldade, da existência da tortura com os ratos que tanto se fez presente nas suas fantasias. (16)

Existem dois motivos principais, como já foi indicado, para que esse caso tenha sido escolhido por Lacan para seu presente comentário.

O primeiro é implícito e está ligado à necessidade de manter a referência a Kojève. De acordo com Simanke, a neurose obsessiva é a formação clínica que melhor serve de objeto a uma interpretação baseada na dialética do senhor e do escravo. Isso porque coloca em jogo, de forma peculiar e acentuada, uma problemática relação edípica com a figura paterna. "Assim, se o objetivo desse trabalho é, efetivamente, cruzar Kojève com Lévi-Strauss, nada mais apropriado do que fazê-lo a partir do caso paradigmático de neurose obsessiva apresentado por Freud." (Simanke, 1997, p. 422) Lacan afirma que o conflito essencialmente em jogo no Édipo está relacionado à aquisição, pelo sujeito, de um valor simbólico através de sua rivalidade com o pai. Esse processo é, para ele, simultâneo a uma operação de degradação, própria a nossa sociedade, da figura paterna concreta. À imagem degradada do pai, opõe-se a imagem do mestre moral, a qual se projeta no analista. Este "(...) assume (...), na relação simbólica com o sujeito, a posição desse personagem muito apagado pelo declínio da nossa história, que é o do mestre - do mestre moral (...)." (Lacan, 1978, p. 293) É exatamente ao tema hegeliano do senhor/mestre da dialética com o escravo que Lacan está se referindo ao falar do "mestre moral". Sua função seria promover ao sujeito o acesso à consciência, à sabedoria, à "tomada de posse da condição humana". Temos, por um lado, a figura imaginária e degradada do pai em processo de declínio e de rivalidade com o sujeito e, por outro, a figura simbólica do analista que assume a posição de um mestre capaz de permitir ao sujeito a aquisição de sua própria condição.

Com essa passagem a respeito do mestre moral e de seu papel na constituição do sujeito, é possível perceber um forte indício das ressalvas que o pensamento lacaniano precisará sobrepor ao seu intercâmbio com os princípios do estruturalismo e seus adejos científicos pois, já em sua primeira incursão nas questões de método da análise estrutural, é-lhe preciso recorrer a temas kojèvianos que lhe possam servir de contraponto, de resistência contra a ameaça estruturalista de apagamento do sujeito:

"É o sujeito enquanto sujeito, enquanto centro ativo na organização de seu mundo, que marca presença sobre o divã, é com o aspecto ativo da subjetividade que a clínica se enfrenta (...). Portanto, a bem da coerência, é preciso reconhecer que a objetivação científica do sujeito não pode ser plenamente realizada, sob pena dele se desvanecer (...)." (Simanke, 1997, p. 419)

O segundo motivo para que o caso do Homem dos Ratos tenha sido escolhido encontra-se explicitado na própria exposição de Lacan. Refere-se à simplicidade e ao caráter particularmente evidente das relações envolvidas na história clínica, ou seja, Lacan acredita que o caso do Homem dos Ratos dá a ver, de maneira clara e manifesta, os pontos que lhe interessa ressaltar para que não restem dúvidas quanto à justeza de seu proceder. Essa clareza e essa simplicidade consistem em que, na história do Homem dos Ratos, existe um paralelo entre seus conflitos e a "(...) constelação (17) originária que presidiu ao nascimento do sujeito (...)" (Lacan, 1978, p. 295), paralelo que se desenvolve através de uma "fórmula de transformação". Isso significa que há, na passagem das relações familiares do sujeito - inclusive anteriores ao seu nascimento - à sua história individual, uma permanência dos elementos que são, entretanto, submetidos a uma combinatória, perfazendo, assim, um novo arranjo. Eis a operação idêntica à que foi constatada por Lévi-Strauss na passagem de uma geração a outra do mito de Édipo.

Há, portanto, um mito familiar que determina o mito individual do neurótico. Seus elementos, neste caso, giram em torno de dois principais pontos: uma dívida contraída pelo pai e as circunstâncias que perpassaram o casamento do mesmo. Ele fora sub-oficial - vocábulo do qual Lacan faz questão de sublinhar o prefixo como mais um índice do ridículo que atravessava a autoridade paterna - e chegou a ocupar uma posição de responsabilidade pelos fundos do regimento. Seu problema foi ter desviado uma certa quantia para gastá-la em jogo, tornando-se incapaz de repô-la por si. A salvação veio com a ajuda de um amigo, perante quem assumiu, então, uma dívida que jamais conseguiu pagar. Quanto ao casamento, este se deu por razões de conveniência. Entre uma moça pobre que lhe atraía e outra que desfrutava uma posição social mais confortável, escolheu pela segunda e esse fato era conhecido pelos demais membros da família. Lacan sublinha que o prestígio acha-se, assim, do lado da figura materna - aludindo, com isso, a mais um termo da grade Kojèviana -, fato que contribui para a desvalorização simbólica do pai. Numa ponta, há o desdobramento da figura do pai entre o pai real, devedor e degradado, e seu duplo imaginário encarnado pelo amigo salvador; de outro lado, há o desdobramento feminino entre a mulher pobre e bela em quem o pai investiu seu amor e a moça rica com quem ele de fato se casou.

Aí está o que Lacan chama de "constelação subjetiva" e que possui uma correspondência com os elementos desta neurose obsessiva - a estrutura familiar (e, em última instância, social) apresenta uma determinada disposição de elementos que captura o sujeito no momento mesmo de seu nascimento e à qual não lhe é possível escapar, pois é somente a partir dela que ele pode se constituir e assumir sua condição. O paciente conta todos esses fatos a Freud sem todavia perceber a nítida relação entre eles e seus próprios conflitos. Com efeito, sua neurose se desencadeia quando ele se acha diante de uma necessidade de escolha idêntica à do pai: casar-se com uma moça rica (18) ou com uma moça pobre, e a situação geradora de angústia imediatamente anterior à procura da análise é justamente a repetição, pelo sujeito, da dívida paterna.

Tornando mais precisos os aspectos aí envolvidos: durante exercícios de manobras militares, o paciente perde seus óculos e decide que, melhor do que ir procurá-los e com isso correr o risco de atrasar a todos, é pedir que seu oculista lhe envie um novo par pelo correio. Quando recebe a encomenda, é o mesmo general narrador da tortura com os roedores quem lhe informa que ele deve restituir a quantia referente à postagem a um certo tenente A, já que este seria o responsável pelos correios junto ao regimento. Imediatamente surge no paciente um impulso de não pagar a dívida. A este, logo se opõe - por um funcionamento tipicamente obsessivo - uma imperiosa necessidade de pagar que se traduz sob a forma de um juramento: "Você deve devolver ao tenente A as 3.80 coroas" (Freud, 1909/1986, p. 134), disse a si mesmo. Acontece que o tal general havia se equivocado pois o responsável pelas correspondências não era o tenente A, mas um outro tenente B e o próprio paciente estava ciente disso no instante mesmo em que formulara o juramento. Para complicar mais ainda o enredo, não era a nenhum dos dois que ele devia porque o envio da encomenda fora, na verdade, coberto pela funcionária dos correios que conhecia o paciente e confiou em sua probidade. Porém, depois de feito o juramento, não havia mais, para o paciente, como voltar atrás e, se este não fosse cumprido, seu pai (morto, vale lembrar) e sua dama seriam submetidos ao abominável suplício com os ratos. Outro elemento surpreendente é que toda essa situação se configurou em torno de uma ínfima quantia.

Ao realizar a impossibilidade de cumprir seu juramento, o paciente conseguiu inventar uma situação que lhe permitiria reverter esse fato: "Iria à agência postal com os dois senhores, A. e B., lá A. daria à funcionária da agência as 3.80 coroas, a funcionária as daria a B., e ele, de acordo com o texto do juramento, devolveria a A as 3.80 coroas." (Freud, 1909/1986, p. 135) Durante toda a viagem entre o local dos exercícios militares e Viena, cidade na qual morava, hesitou em tomar a iniciativa de reunir as pessoas necessárias para a realização dessa idéia insólita que, inclusive, não resolveria o problema pois a senhora do correio, que arcou com a despesa, não seria ressarcida. Ao fim, o sujeito já está envolvido num engodo tão grande e numa angústia tão incrível que recorre a Freud com o pretexto de obter alguma espécie de atestado que lhe tornasse possível efetuar o pagamento da dívida nas circunstâncias exigidas por sua fantasia obsessiva.

Diz Lacan: "Este cenário fantasmático apresenta-se como um pequeno drama, uma gesta, que é precisamente a manifestação do que chamo o mito individual do neurótico." (Lacan, 1978, p. 298) Ele reflete a "relação inaugural" entre o pai, a mãe e o amigo salvador. Porém, existe aí também uma operação de refração que consiste na forma como o sujeito se apropria daquela relação. Assim, a configuração do mito individual presente na segunda geração consiste na reprodução homóloga, mas não especular (19), do mito familiar da primeira geração. Que a essa situação possa ser conferido caráter mítico (ou seja, simbólico) não se deve ao simples fato da repetição dos elementos, mas às modificações inseridas na passagem de um contexto a outro. Essa reprodução deve, como vimos a propósito do método da análise estrutural, passar necessariamente por mudanças que determinem ao mito da segunda geração um arranjo diferenciado do mito da primeira.

Tal transformação segue uma tendência identificada por Lacan como "(...) uma troca dos termos finais de cada uma destas relações funcionais [a dívida do pai com o amigo e a substituição da mulher pobre pela mulher rica]." (Lacan, 1978, p. 298) Ele observa que o objeto do desejo do sujeito ao sentir o impulso de voltar à cidade onde fica a agência dos correios não é sua funcionária mas uma criada de albergue (nesse caso, a mulher pobre) que por lá conhecera. Desse modo, "Para extinguir a dívida, é preciso restituí-la de qualquer modo, não ao amigo, mas à mulher pobre, e desta forma à mulher rica, que a substitui no cenário imaginado." (Lacan, 1978, p. 298/9) Se o que deu origem à reprodução da estrutura mítica foi a dívida não resolvida do pai com dois personagens que representam a parte rica e com prestígio da história (dívida com o amigo, no sentido literal, e com sua mulher, no sentido metafórico), o Homem dos Ratos coloca no lugar de destinatária de sua própria dívida uma mulher pobre (a criada do albergue) ao invés de uma mulher rica (a senhora dos correios com quem, na situação imaginada, ele permaneceria em débito). Além disso, se a dívida do pai se passava do lado do desdobramento do sujeito, ou seja, se o amigo a quem devia era uma espécie de duplo de si mesmo, já o Homem dos Ratos endereça sua própria dívida a um duplo do objeto: a mulher rica e, através dela, a mulher pobre.

De qualquer forma, há algo que se transfere de uma geração a outra pois, apesar de se deslocarem, os elementos são os mesmos e estão envolvidos nos mesmos tipos de conflitos. "Tudo se passa como se os impasses próprios à situação original se deslocassem para um outro ponto da rede mítica, como se o que não está resolvido aqui se reproduzisse sempre lá." (Lacan, 1978, p. 299) Com isso, é possível constatar a mesma inversão de sinais presente na análise que Lévi-Strauss fez do mito de Édipo. É por causa dessas permutações na estrutura do mito familiar, ou seja, da forma como ele é subjetivado, que o sujeito padece de uma neurose.

No início da conferência, Lacan havia afirmado que lhe fora possível constatar aspectos do "vivido do neurótico" que conduzem, na teoria, a mudanças na estrutura do Édipo: ela deixará de ser ternária para ser quaternária. Este é outro objetivo perseguido pela conferência. Ele é paralelo ao da aplicação do método estrutural a um caso psicanalítico e consiste em promover uma modificação no Édipo tal como pensado por Freud para que se ajuste às exigências teóricas advindas tanto da leitura de Lévi-Strauss quanto da influência de Kojève.

Para demonstrar esta inferência, Lacan procura identificar os desdobramentos dos personagens envolvidos nos mitos familiar e individual que, em sua opinião, conduzem a "(...) qualquer coisa de muito diferente da relação triangular [isto é, a relação edípica entre pai, mãe e filho] considerada como típica à origem do desenvolvimento neurotizante." (Lacan, 1978, p. 299)

Na situação inaugural, existe, tal como já foi observado, uma dívida duplicada, projetada nas figuras da esposa e do amigo que forneceu uma quantidade de dinheiro suficiente para cobrir o rombo nos fundos do regimento. Essa duplicação da dívida configura, assim, dois planos que, sem se encaixarem, estabelecerão conexões entre si e encontrar-se-ão reproduzidos no mito individual do neurótico:

"A situação apresenta uma espécie de ambigüidade, de diplopia - o elemento da dívida é empregado em dois planos ao mesmo tempo, e é precisamente na impossibilidade de fazer estes dois planos se encontrarem que se joga todo o drama do neurótico. Ao tentar fazê-los se recobrirem um ao outro, ele faz uma operação em espiral, nunca satisfatória, que não chega a fechar o seu ciclo." (Lacan, 1978, p. 299)

Esses desdobramentos são também reproduzidos - e isso é fundamental para o sucesso terapêutico - na situação analítica. Lacan observa que, primeiramente, Freud substituiu um amigo que era exatamente o confidente do paciente e para quem ele levava todos os seus medos, hesitações e culpas aos quais o amigo sempre retrucava no sentido de amenizá-los ou negá-los, procurando fazer o sujeito ver o quanto suas elucubrações não encontravam correspondência na realidade. Todavia, cedo surgem, na transferência, fantasias agressivas, resultado da projeção da figura paterna sobre Freud, segundo sua própria interpretação. O que interessa a Lacan nesse momento é apontar uma interpretação complementar que lhe permite seguir sua argumentação a respeito da duplicação dos personagens e da estrutura quaternária do Édipo: trata-se de substituir o amigo por uma mulher rica tal como aconteceu na situação originária, o que se manifesta em fantasias ligadas à filha de Freud - o paciente imaginou que Freud estava interessado em tornar-lhe seu genro. Com isso, a estrutura do mito encontra uma nova reprodução na qual é o analista quem se posiciona no lugar do Mestre/Senhor, só que, dessa vez, ela irá funcionar, sob a forma da transferência, como um instrumento para a dissolução dos conflitos: "O mito e o fantasma aqui se juntam, e a experiência passional ligada ao vivido atual da relação com o analista oferece seu trampolim, por via das identificações que ela comporta, para a resolução de um certo número de problemas." (Lacan, 1978, p. 299)

Para insistir sobre a existência de uma "situação de quatuor", Lacan procura situar o drama do neurótico no que ele chama de "desdobramento narcísico". É aí que o mito adquire seu valor e não numa relação edípica triangular. Esse desdobramento possui duas pontas: o sujeito e o objeto (20).

Por um lado, falta ao neurótico um "equilíbrio moral e psíquico"; ele sofre de uma "(...) divisão interior que faz do sujeito a testemunha alienada dos atos do seu próprio eu." (Lacan, 1978, p. 300) Daí o caráter narcísico e, portanto, mortal - dados os termos da dialética do senhor e do escravo - da relação do sujeito com o Mestre/amigo/analista, personagens que representam sua imagem especular. Enfim, o sujeito se desdobra num pólo negativo que é ele próprio em sua condição de angústia e de alienação de si mesmo e num pólo positivo constituído pelo reflexo de sua imagem nas figuras do amigo e do analista.

Por outro lado, e por causa dessa primeira divisão, Lacan entende que, cada vez que o sujeito procura caminhar em direção a algum tipo de unificação, cada vez que tenta fugir à sua alienação constitutiva, é o objeto sexual que também se desdobra num pólo negativo e noutro positivo. No caso do Homem dos Ratos, eles são representados, respectivamente, pela mulher pobre e pela mulher rica. (21)

Encontram-se, então, produzidos os quatro termos necessários para uma aplicação do método estrutural ao mito individual do neurótico, já que o raciocínio próprio a esse método é do tipo "a está para b assim como c está para d". Embora Lacan privilegie, ao longo de sua obra, os sistemas ternários, essa insistência na importância de esquemas quaternários não se perde após O mito individual do neurótico, sendo possível encontrá-la, por exemplo, num texto tão distante do primeiro quanto o é Kant com Sade, no qual apresenta um esquema quaternário para formalizar a fantasia sadiana. Lacan afirma nesse texto: "Uma estrutura quadripartite é desde o inconsciente sempre exigível na construção de uma ordenação subjetiva." (1962/1966, p. 774)

Após apontar a existência de um esquema quaternário no Édipo, é preciso tornar explícita a intenção de remanejar o modelo freudiano ao lhe corrigir a estrutura. O que é fundamental na compreensão das neuroses é a existência de um sistema quaternário constituído por oposições binárias (no caso, desdobramento do sujeito e desdobramento do objeto) da mesma forma como são estipuladas pelo método estrutural em lingüística e em antropologia. Afirma Lacan:

"O sistema quaternário tão fundamental nos impasses, nas insolubilidades da situação vital dos neuróticos, possui uma estrutura bastante diferente da que é dada tradicionalmente - o desejo incestuoso da mãe, a interdição do pai, seus efeitos de bloqueio e, à volta, a proliferação mais ou menos luxuriante de sintomas." (1978, p. 304)

Trata-se, então, para Lacan, de introduzir, nessa estrutura tradicional, um quarto elemento. A diferença assim produzida deveria, em sua opinião, conduzir a uma discussão sobre "(...) a antropologia geral que se desprende da teoria analítica (...)" (Lacan, 1978, p. 304). Por tudo o que foi dito até aqui, torna-se fácil perceber que a movimentação teórica em jogo - não apenas nessa conferência, mas também na base do que ficará conhecido como o "retorno a Freud" - possui uma direção oposta à que Lacan pretendeu aí indicar: é, antes, sua própria teoria analítica que se desprende da antropologia; é seu sistema teórico que deve sobretudo à antropologia estrutural sua forma de raciocínio, seus pressupostos e também suas noções de inconsciente e de linguagem a partir das quais tudo o mais será pensado.

Antes de revelar qual seria esse quarto termo presente na estrutura edípica, Lacan acha necessário fazer mais duas observações que, na verdade, consistem em retomadas do que já vinha sendo objeto de sua reflexão: uma refere-se à desvalorização da figura paterna e a outra, à função da relação narcísica no desenvolvimento imaginário do ser humano.

Para Lacan, a relação entre mãe e filho tem seu valor assegurado por causa do incontestável laço natural que os une. Já o pai encontra-se numa posição mais frágil e, apesar de desfrutar do amor da mãe, está incumbido da impossível tarefa de representar a função simbólica. Impossível porque "A assunção da função do pai supõe uma relação simbólica simples, onde o simbólico recobriria plenamente o real." (Lacan, 1978, p. 305) Ou seja, para Lacan, não existe a possibilidade de que o simbólico dê conta do real, de que as palavras esgotem a existência das coisas; a relação entre linguagem e mundo pressupõe um abismo entre os dois termos, o mesmo abismo que separa função materna (natural) e função paterna (cultural). Assim, para que levasse a termo a completa assunção da função simbólica, "Seria necessário que o pai não fosse somente o nome-do-pai, mas que ele representasse em toda a sua plenitude o valor simbólico cristalizado na sua função" (Lacan, 1978, p. 72), seria preciso que a figura paterna concreta acompanhasse plenamente o exercício da função simbólica. Porém, existe aí um desvio: a função do pai - que é a de operar como um nome, como um significante - e sua existência concreta não coincidem, a primeira prevalece sobre a segunda, restando, não somente ao pai do Homem dos Ratos, mas a qualquer figura paterna da família conjugal moderna, um lugar desfalcado e desvalorizado por definição: "Pelo menos numa estrutura social como a nossa, o pai é sempre, de algum modo, um pai discordante relativamente à sua função, um pai carente, um pai humilhado (...)." (Lacan, 1978, p. 305) Há, de um lado, a força do significante, do nome-do-pai, e, de outro, a incompetência do pai real em sustentar seu valor no imaginário do sujeito. Nesse descompasso entre o que é percebido no real e a função simbólica é que reside, para Lacan, o valor eminentemente patogênico do Édipo - pois é na tentativa de apreendê-la que a neurose se constrói. Assim, fica implícita a necessidade de uma morte do pai que é percebido no real através do filtro do registro imaginário em favor do funcionamento da função paterna no simbólico.

Lacan situa a relação narcísica como a segunda grande descoberta da psicanálise, depois do Édipo. Retoma rapidamente a sua tese sobre o estádio do espelho para enfatizar a função do desenvolvimento imaginário do eu na constituição do sujeito. Segundo essa tese, a primeira experiência que o sujeito tem de si mesmo é mediada por um outro mais perfeito que lhe antecipa sua própria totalidade e lhe suscita uma sensação de insuficiência, dilaceração e abandono, pois, apesar de perceber o outro como um todo, o sentimento que possui de si mesmo é caótico, desorganizado. Na teoria lacaniana, qualquer relação imaginária liga-se essencialmente a um aspecto mortal em função da angústia que implica.

É com isso que ele pretende justificar, finalmente, a indicação da morte como o quarto elemento da estrutura edípica (22). Arrebata essa indicação recorrendo a Hegel para dizer que, também em sua metafísica, a morte funciona como elemento mediador:

"Antes de a teoria freudiana ter posto o acento, com a existência do pai, numa função que é ao mesmo tempo função da palavra e função do amor, a metafísica hegeliana não hesitou em construir toda a fenomenologia das relações humanas em torno da mediação mortal, terceiro essencial ao progresso pelo qual o homem se humaniza na relação com seu semelhante." (Lacan, 1978, p. 306)

Lacan pretende ainda ter solucionado um aspecto problemático em Hegel: é que a luta de puro prestígio só pode, a seu ver, ser pensada se a morte aí envolvida for uma morte imaginada e imaginária, pois somente essa condição permitiria a existência dos adversários e a continuidade da dialética. É, portanto, da morte imaginária que se trata na estrutura mítica do Édipo e, para Lacan é ela que está em jogo não apenas na formação da neurose, mas na "atitude existencial característica do homem moderno".

*

Nessa conferência, Lacan exercita uma forma de pensar estruturalista trazendo para o âmbito da obra freudiana elementos fornecidos pela antropologia estrutural em sua análise dos mitos. A colocação em evidência da estrutura do mito do neurótico permite, tal como ocorria na análise lévi-straussiana, a dedução de um nova interpretação que consiste justamente na idéia de que o sentido do Édipo é um sentido que tem a morte por referência e que possui uma configuração quaternária. Do exposto é possível depreender a defesa da idéia de que a estrutura consiste numa ordem simbólica imbuída de autonomia; ou seja, que a combinatória dos elementos simbólicos funciona de maneira automática a significar o sujeito, seus sintomas e seu mundo. Essa será uma das premissas fundamentais do lacanismo dos anos 50, premissa que é possível denominar, com rigor, "estruturalista".

 

Notas

(1) Esse artigo faz parte da dissertação Dos Complexos Familiares ao Discurso de Roma: Lacan rumo à racionalidade estruturalista defendida em setembro de 2002 no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, sob orientação do Prof. Dr. Richard Theisen Simanke e com financiamento da CAPES. Foi apresentado em julho de 2003 na VI Conferência Internacional sobre Filosofia, Psiquiatria e Psicologia, realizada em Brasília.

(2) Cf. Wolf, 1987.

(3) Descombes critica a generalização que os pensadores estruturalistas realizam ao passarem do código às línguas ditas naturais. Esses dois tipos de linguagem não parecem se recobrir. Enquanto os códigos artificiais são construídos, as línguas não o são. Outra diferença é que um código artificial só pode ser construído a partir de uma língua. Além disso, os sujeitos falantes não estão de acordo, a princípio, quanto a todas as possíveis mensagens que podem ser geradas com uma língua (eles nem sequer são capazes de conhecê-las), nem sua única finalidade é visar à simples troca de informações; "(...) uma língua não possui a univocidade de um código, no qual o valor simbólico de cada um dos símbolos é fixado pela regra." (Descombes, 1979, p. 123) Quanto a Lacan, é certo que aproveitou em sua doutrina essas teses aparentadas à teoria da informação. Todavia, é necessário destacar seu esforço (embora inconstante) em distinguir código de linguagem. Esta última sendo o termo mais apropriado para se falar de uma comunicação intersubjetiva, campo dos significantes (que não possuem correspondência estável com os significados), enquanto o código seria uma noção mais adequadamente aplicável à comunicação animal, campo dos índices (que possuem correspondência estável com os referentes). (Cf. Evans, 1996, p. 25 e p. 98)

(4) Descombes cita ainda uma terceira tese, aquela que supõe que a emergência do sentido se dá a partir do não-sentido. Ora, se a língua já contém em sua virtualidade a finitude de todas as mensagens possíveis, a única forma de produzir uma mensagem genuinamente nova e de fugir às convenções (do ponto de vista do locutor), é formular algo imprevisto e, portanto, sem sentido (para as determinações significantes do código). O sentido novo assim produzido como efeito do não-sentido ultrapassa as fronteiras do código. Parte de uma linguagem, mas nela não se detém. Este autor não deixa de mostrar que existe uma evidente contradição no fato de se buscar na teoria da informação fundamentos para o estruturalismo. Ora, se por toda parte o estruturalismo apregoa a submissão do sujeito ao significante, como pode procurar solo em uma teoria cujo objetivo era fornecer ao homem um controle mais apurado da transmissão de mensagens graças a um melhor domínio sobre os fatos de comunicação?

(5) Essa forma de abordar a psicopatologia a partir de falhas do sistema simbólico será amplamente retomada por Lacan.

(6) Quanto a essa questão, cf. Lepine, 1979.

(7) Cf. Freud, 1915/1986.

(8) Em O cru e o cozido, Lévi-Strauss subscreve essa análise de Ricoeur, concorda que sua acepção envolve um "(...) inconsciente mais kantiano do que freudiano." (Lévi-Strauss citado por Macey, 1988, p. 151)

(9) Cf. Kojève, 1947.

(10) Cf. Descombes, 1979.

(11) Vale lembrar que, em Introdução à obra de Marcel Mauss, a comparação era ensaiada entre o xamã e o neurótico.

(12) É necessário lembrar que, ao se fundamentar na noção de ab-reação, as conclusões do autor restringem-se apenas ao método terapêutico definido como catártico, período inicial da pesquisa de Freud, cedo abandonado por ele. É certo que a noção referida continue a ocupar um lugar nas elaborações freudianas subseqüentes, mas este será menor e submetido a outras explicações metapsicológicas da cura.

(13) Também em A estrutura dos mitos, Lévi-Strauss refere-se explicitamente à neurose como um mito individual.

(14) O mito será analisado no ensaio A estrutura dos mitos a ser discutido adiante.

(15) O outro exemplo utilizado neste ensaio é o do mito Zuni norte-americano. Ao torná-lo objeto de uma análise estrutural, a etnologia conseguiu conferir-lhe um novo sentido e enxergar novas configurações para os seus elementos. Lévi-Strauss o interpreta como uma forma encontrada pela comunidade para elaborar a relação entre a vida e a morte.

(16) Reproduzimos a seguir uma observação de Freud que, por si, pode indicar o estranhamento de seu pensamento com o projeto lacaniano: "Ainda assim foram feitas tentativas para explicar as obsessões sem se levar em consideração os afetos!" (1909/1986, p. 167) Diz Lacan no Seminário 1, a propósito do termo "afetivo": "Acredito que é um termo que é preciso absolutamente riscar dos nossos trabalhos." (1953-54/1975, p. 314)

(17) O uso dessa expressão provavelmente também se deve a uma inspiração lévi-straussiana, visto que, em A eficácia simbólica, o antropólogo fala de "constelações psíquicas" que constituem um mito. É mais um índice da substituição do vocabulário freudiano pela terminologia antropológica pois "(...) essa constelação originária é exatamente aquilo que Freud chamava de novela familiar, e que agora se define como um mito." (Simanke, 1997, p. 423)

(18) Outro duplo da moça rica no mito individual do Homem dos Ratos é a senhora do correio a quem ele deve a quantia correspondente à postagem de seus óculos.

(19) Pois que, senão, ao invés de estruturas simbólicas, teríamos reflexos imaginários.

(20) Esse duplo desdobramento será mais tarde reiterado no esquema Z ou lambda, "(...) onde o objeto se reparte no pequeno outro (a) e no grande Outro (A), e o sujeito no eu narcísico (a') e no sujeito do significante (S)." (Simanke, 1997, p. 427) Este esquema é mais um representante do formato quaternário de alguns raciocínios de Lacan. Evans, aos sistemas quaternários aqui relatados, acrescenta: "(...) as quatro pulsões parciais e seus quatro objetos parciais correspondentes, e os quatro discursos (cada um dos quais possui quatro símbolos designados para quatro lugares)." (1996, p. 158) E continua: "Lacan também enumera quatro 'conceitos fundamentais da psicanálise, e fala do sintoma como um quarto anel que previne os outros três anéis do nó borromeano (as três ordens do real, do simbólico e do imaginário) de se separarem." (1996, p. 158/9)

(21) Após ter explicado a estrutura do caso do Homem dos Ratos e sua homologia com a situação familiar originária, Lacan passa a tomar como outro exemplo para suas análises um certo episódio da vida de Goethe. Justifica sua escolha pela importância que ele teve no próprio caso referido pois foi ao ler essa passagem que o paciente de Freud se entregou a uma de suas experiências de masturbação. Em tal episódio, Lacan acredita encontrar a mesma estrutura do mito individual do Homem dos Ratos. Trata-se da narração da forma como Goethe se liberta de uma maldição contra a próxima mulher que o beijasse.

(22) Em outros momentos de sua obra, Lacan indica o falo como esse quarto elemento presente na estrutura do Édipo. (Cf. Evans, 1996, p. 158) Já no Seminário sobre "A carta roubada", esse quarto elemento é a carta que circula da rainha para o ministro, do ministro para Dupin, deste para o inspetor de polícia e, finalmente, de volta para a rainha; sempre configurando em torno de si estruturas ternárias que consistem em três tipos de lugares definidos em função de engodos e iluminações: o primeiro é o lugar de "um olhar que nada vê", o segundo, "(...) o de um olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ver encoberto o que ele oculta (...)." (Lacan, 1955/1966, p. 15) e o terceiro "(...) que desses dois olhares vê que eles deixam o que é para esconder a descoberto para que disso se apodere quem quiser (...)." (Lacan, 1955/1966, p. 17)

 

Referencias Bibliográficas

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 21 - Julio 2005
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