Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O dispositivo analítico en "O homem das estrelas", de Giuseppe Tornatore
Ana Christina Soares Rigobello

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Lya Luft, em seu livro "O rio do meio"nos diz: "Viver é optar, assinar embaixo e pagar todos os preços, alguns bastante altos".

E o preço que devemos pagar para exercer essa difícil escolha de "ser analista"?

Estar ali, na condição de Sujeito suposto saber e suportar os efeitos e impasses dos analisantes que nos solicitam ajuda para superar seus sintomas, inibições ou angústias?

O que realmente provocamos?
Quais os riscos deste trabalho?
Estas questões sempre nos atingem e que também norteavam os trabalhos de nossos mestres.
A todo o momento, em suas obras, Freud e Lacan, na condição de formadores de analistas nos advertem sobre os cuidados a serem tomados ao utilizarmos desse dispositivo.

Lacan dedica um artigo nos "Escritos" denominado "A direção da cura" e nos fala sobre a quota a ser paga pelo analista, não só com palavras, uma vez que a transmutação que elas sofrem pela operação analítica as eleva a seu efeito de interpretação, mas também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver ele a empresta como suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência.

Este termo "transferência", que não foi uma invenção de Freud, foi na verdade introduzido por Breuer em l882 e trabalhado por ele enquanto conceito em 1912, em seu artigo "A dinâmica da transferência", após Ter se dedicado a esse tema a partir do caso Dora, em l905, que abandona o trabalho após três meses de análise.

Escreve Freud: "... assim fui surpreendido pela transferência e é por causa deste fator desconhecido pelo qual eu lhe recordo o Sr. K..., que ela se vinga de mim, como ela queria se vingar dele; e ela me abandona por ele. Assim ela põe em ação uma importante parte de suas lembranças e de suas fantasias, em lugar de reproduzi-las no tratamento..."

Ao final do trabalho, Freud escreveu alguns comentários sobre esse tema: a transferência como uma repetição dos fatos da realidade, as novas edições, os impulsos amorosos ou hostis, as fantasias que eram criadas e se tornavam conscientes durante o andamento da análise e que possuíam a particularidade de substituir uma figura anterior pela figura do médico.

As experiências psicológicas eram renovadas não como pertencentes ao passado, mas aplicadas á pessoa do médico e que produziam uma resistência ao tratamento: "Se a necessidade que alguém tem de amar não é inteiramente satisfeita pela realidade, ele está fadado a aproximar-se de cada pessoa que encontre com idéias libidinais antecipadas".

O sujeito desloca, transporta para o psicanalista as representações inconscientes, lembranças infantis, as imagens de sua "série psíquica".

Em 1924, em seu artigo "Observações sobre o amor transferencial" adverte o público leigo como mais uma oportunidade de dirigir a atenção do mundo para o sério perigo desse método terapêutico: ¿O psicanalista sabe que está trabalhando com forças altamente explosivas, que são indispensáveis, por causa de seus efeitos?

"A Psicanálise tem que conquistar para si própria todas as liberdades que há muito tempo foram concebidas a outras atividades médicas"

E conclui: "...da mesma forma que na medicina, a psicanálise será capaz de ser estritamente forte e regular, que não tenha medo de manejar os mais perigosos impulsos mentais e de obter domínio sobre eles, em benefício do paciente".
Lacan subverte o conceito e circunscreve a transferência, não de um ponto de vista fenomenológico ou descritivo como faz Freud, mas de um ponto de vista estrutural.
Considerando que a análise é uma experiência dialética, em que estão incluídos o sujeito e o psicanalista, não existe uma atualização sobre a pessoa do analista, mas uma atualização afetada pela presença real ao analista, um efeito do discurso.

Esse efeito vincula uma demanda de amor que sejam o sintoma, o sofrimento, a queixa, enunciados ao analista.

"A experiência psicanalítica se desenrola inteiramente nessa relação de sujeito a sujeito".

A transferência não é nada de real no sujeito senão o aparecimento em um momento de estagnação da dialética analítica dos modos permanentes pelos quais ele constitui seus objetos.

Não é que não haja afetos, emoções, mas o que importa antes de tudo é o momento dialético em que eles se produzem.
A transferência como resistência toma outro sentido: não é a transferência que faz resistência, mas sim ali, onde alguma coisa do discurso resiste ao dizer à fala, revela-se ao paciente intransponível, o atormenta, o faz sofrer e a produzir sintomas.

No Seminário II, LACAN cita: "não há resistência por parte do Sujeito. O Sujeito está no ponto em que está. Existe apenas uma resistência, é a resistência do analista que resiste quando não entende com o quer ele tem de lidar".
A presença do analista faz ato na medida em que ele aceita ocupar o lugar de Sujeito suposto saber.
Lacan introduz a noção de Sujeito suposto saber e diz: "desde que haja em algum lugar o sujeito suposto saber-há transferência" (seminário XI).
NO Semin Cada vez que um homem fala a outro de maneira autêntica e plena, há, no sentido próprio, transferência, transferência simbólica: alguma coisa que muda a natureza dos dois seres em presença.

Mas, afinal, qual seria a especificidade da transferência analítica?
O que particularizaria a análise?
Essas questões que me levaram a ler e a reler alguns textos de Freud e Lacan, após Ter sido "fisgada"por um filme de Giuseppe Tornatore- o mesmo diretor de Cinema Paradiso, intitulado "O homem das estrelas".

Acredito que a intenção do diretor foi a de trabalhar os aspectos políticos e sociais da Itália, enfatizando o desastre de ver seu povo atingido pela guerra e tendo que se organizar politicamente para reconstruir o país, em que se alastrava a miséria e a prostituição.
O filme é repleto de detalhes interessantes e cômicos, que obviamente foram recortados, mas que eu indicaria a assistirem e apreciarem a obra como um todo.
Resolvi manter por intacto alguns dos depoimentos para melhor trabalhar alguns conceitos e os convido a me acompanhar nessa viagem, que espero não seja enfadonha.

O filme se passa na região sul da Itália, Sicília.
Chega a primeira cidade um rapaz de nome Joe Morelli e se apresenta à população pelo megafone como "um descobridor de talentos"dos EUA e da Itália, pertencente à Universália Cinematográfica de Roma.
Com todo aparato de um diretor de cinema, convida os cidadãos a participarem de um pequeno teste cinematográf ico, que poderá mudar os seus destinos.
Esses jovens "atores" poderão serem vistos pelos grandes cineastas, pagando uma quantia simbólica de 1500 liras.

A primeira a se arriscar, diante os olhares curiosos da comunidade que assiste a tudo, uma vez que uma tenda é montada em plena praça, é Santina, uma bela jovem que mal sabe ler e escrever e é considerada muito quieta pela família.
Prepara-se para o teste decorando a última e famosa frase de "O vento levou"e ao verbalizá-la "Afinal amanhã é outro dia", precipita-se a chorar e comete um lapso que a impede de terminar sua fala: "Afinal, amanhã, amanhã eu vou me matar". Ele me deixou como Bett deixou Scarlet e foi para o Norte. O que vou dizer lá em casa?
Joe descobre que tiveram contatos sexuais e a induz a não contar nada.
Promete que em 2 meses ela estará em Roma, na Cinecittá.
Imediatamente a jovem para de chorar e lhe beija as mãos: o seu problema estava resolvido!

O que ocorreu aqui?

Chamo atenção de vocês para a modificação da função de Joe, que não é visto como alguém que estaria realizando um teste cinematográfico como ele se propõe, mas como um conselheiro.
Como uma febre que se alastra pela cidade, o texto de "E o vento levou" se espalha literalmente pelos cantos.
Jovens, velhos, moças e também os portadores de deficiência passam a decorar seus versos.
Aproxima-se um senhor que o interroga sobre a câmera: "O que isso faz/Suga as pessoas?
Joe responde: "Exato, suga".
Meu neto é o mais bonito daqui, assim como eu era. Faça dele um Rodolfo Valentino e eu o recompensarei!

"Não posso desapontar ninguém, mas, se houver talento atrás deste rosto, nem Deus poderá detê-lo"!

Joe continua seu trabalho de realizar testes com crianças, jovens e velhos que se empenham ao máximo para revelarem seus talentos, diante do olhar curioso da câmera e ali se desnudam, cheios de esperanças de que suas vidas sejam transformadas.Fazem relatos íntimos, lhe entregam a alma.

Poderíamos relacionar tal situação ao dispositivo analítico da associação livre?

Considerando que nela também existe inicialmente uma demanda surgida a partir de uma falta, dirigida inicialmente a uma imagem de um Sujeito suposto saber, estaria Joe ocupando, ainda que ingenuamente, este lugar?

O sujeito que vem para a análise, nos diz Lacan, se coloca na posição daquele que ignora e põe o analista em posição de sujeito que sabe, que tem o saber.

"Nenhuma entrada é possível na análise sem esta referênca" (Sem.I)

Sabemos que na verdade os candidatos a jovens atores dirigiam sua fala aos grandes diretores de cinema, que seriam os ocupantes do lugar de O (Grande Outro).
Joe se colocaria em uma função intermediária entre eles, lhes prometendo sucesso e fortuna e lhes oferecendo a possibilidade, ainda que imaginária, de saírem daquela condição de insatisfação em que se encontravam e produzindo atos, como ocorre na análise?

Lacan, no sem XI diz:

"O que se passa quando o sujeito começa a falar com o analista? Ao analista, quer dizer, ao sujeito suposto saber, mas do qual é certo que ele não sabe nada ainda. É a ele que é oferecido algo que vai primeiro, necessariamente, se formar como pedido? Mas o que é que o sujeito pede? Aí está toda a questão, pois o sujeito bem sabe que, quaisquer que sejam suas necessidades, não encontrará satisfação ali, no máximo a de organizar o seu menu".

Vejamos como as coisas se desenrolam no filme:

Joe segue em direção a outra cidade e no caminho é interpelado por um policial que lhe pede os documentos e o questiona sobre seu trabalho.
Joe lhe explica que envia os negativos a um amigo em Roma, que após revelá-los e selecioná-los, os encaminha aos grandes diretores.
O policial convencido lhe diz: "Aqui eu represento a lei. Ninguém tem que saber".
Ingenuamente, submete-se ao teste, interpretando um texto de Dante- A Divina Comédia- que, entre outras palavras, selecionei: "viemos de um lugar onde as pessoas, em suas tristezas, perderam o benefício do intelecto".
Joe lhe pede que diga algo do coração e ele, dirigindo-se imediatamente para a câmera:
"Caro Visconte, Rosselini, De Sicca. Sou um policial só porque meu pai era policial. Mas juro que isso não é vida para mim. Eu sonho mais alto.Mas, aqui, o que é sonhar? É provável que um dia um bandido aponte uma arma e adeus Michelle Mastropado"
Joe o cumprimenta pela bela atuação e é liberado.

A caminho de uma nova cidade, Joe é abordado por um bando de assaltantes que o interrogam sobre o que ele tem no furgão.
Joe se apresenta como um trabalhador do cinema.
Diante da ameaça de entregar tudo o que tem, sob a mira dos fuzis e poderosas armas de fogo, utiliza-se da sua poderosa arma e os persuade a submeterem ao teste: "afinal, querem dinheiro e estão sentados sobre uma mina de ouro e não sabiam"... "se me matam o mundo jamais os conhecerão"...
Os três ladrões, dentro de uma caverna, gravam o sangrento percurso de uma família de 7 ladrões, que foram sendo eximados pela Polícia e pela Máfia.
Ao acabar o depoimento, ainda lhe pagam com desconto: "sem dinheiro fica difícil revelar o filme e vocês serão ladrões a vida inteira...
Äo final do suplício Joe sai feliz da vida, sentindo-se como Fenix...

Impassível a tudo e a todos, colhe um depoimento apaixonado de um jovem pastor que se vangloria em poder falar com as estrelas: na cidade ninguém olha para elas e me pergunto: o mundo existe mesmo?
Acho que o mundo não existe: Nós o imaginamos.
E penso isso ao ver os olhos de um coelho morto.Seus olhos parecem sempre vivos e me olham, como se fosse um quadro.Uma vez eu vi um quadro e onde quer que eu fosse, sempre olhava para mim.
Joe é procurado por um senhor misterioso, que desde que voltou da Guerra não falava com as pessoas. Faz um contrato por mímica e grava, em espanhol, um depoimento sobre sua ida ao V Regimento.
Bastante emocionado, Joe sem entender literalmente nada do que ele diz, recebe seu dinheiro e se despede do senhor: "acho um saco pessoas que choram... animais estúpidos e caipiras...
Adorariam fazer cinema... eu também, se diabos soubesse como faz"

Com esse depoimento, o personagem concretiza a idéia de ser um impostor, que até então não havia ficado explícita para o espectador.
Destrói a película, num gesto de extrema crueldade, revelando traços perversos.
Ao sair daquela cidade, Joe dá carona a um médico comunista que lhe questiona sobre sua profissão: "sei que você é um profissional sério. Mas, ¿é justo prometer riqueza e glória a essa gente que precisa de trabalho, tranquilidade, progresso e justiça? Não sei o que fazer, mas não gostaria que pessoas que vendem sonhos como você planejasse uma festa para poucos convidados". E, sabiamente conclui: "pena que sempre entendemos as coisas tarde demais..."

Sem questionar ou querer entender alguma coisa sobre o que está acontecendo, Joe continua seu trab alho de recolher os depoimentos, quando é procurado por um senhor homossexual, que se queixa de sua condição: "as pessoas neste país perdoam a tudo e a todos: os bandidos, cornudos e as putas.Eles são corajosos, covardes e necessários. O homossexual não, é uma merda! É repulsivo!Faço meu trabalho direitinho, mas quando olho para um rapaz, eles me provocam! Eu preciso sair daqui! Eu preciso ir embora! É a minha sorte!"

Joe mostra-se incomodado com a atitude do senhor e imediatamente se exime: "ouça, eu não lhe prometi nada". "Não, você me faz entender que há um mundo longe daqui onde somos compreendidos "
Joe o cumprimenta pelo texto e é questionado: "Então, posso partir?"

O que ocorreu aqui?

Estaremos diante de uma demanda explícita de autorização?
Joe demonstra pela primeira vez preocupação com a reação das pessoas, como se não suportasse ocupar a posição de Sujeito suposto saber, embora continuasse a agir como um impostor.
Apresenta-se como candidata à atriz, uma bela jovem de 15 ou 18 anos (como ela própria diz), conhecida por Beata, à filha da Virgem Maria.
Nasceu e foi criada pelas freiras do convento. Não sabia contar até 10 e queria ser atriz de "filmes de amor". Trabalhava limpando lojas e casas e de vez em quando deixava-se ser olhada pelos homens.
Foi desta maneira que ela conseguiu arrecadar o valor necessário para submeter-se ao "teste".
Enquanto Joe a prepara para a filmagem, lhe ajeita os cabelos e o rosto, parece ser "fisgado" pela beleza do brilho de seus olhos e, pela primeira vez em todo o filme questiona: ‘ O QUE ESTOU FAZENDO?

Sem buscar a resposta, conclui seu trabalho e pela primeira vez recusa-se a receber o dinheiro, após saber a maneira de como ele foi ganho.
Desta vez Joe é contratado para realizar um documentário inédito de Dom Mariano, o chefe de uma poderosa família de mafiosos, que havia morrido e jamais deixou-se fotografar.
O contrato, muito bem remunerado, era de que o filme, após revelado, fosse enviado lacrado ao prefeito daquela cidade.
O trabalho é feito e ele ainda ganha mais dinheiro em um jogo de cartas, demonstrando sua exímia habilidade com o baralho.
Sai daquela cidade e no caminho é surpreendido por um ruído dentro do furgão.
É Beata que o acompanha, já que quer se tornar atriz.

Diante da promessa de que, se isso realmente ocorresse, ele voltaria para apanhá-la, ele a leva de volta ao Convento, contra a vontade dela.
A caminho de Messina, o pneu fura e Joe é socorrido por uma bela mulher, que se diz "esposa do Príncipe de Montejuso", uma cidade em ruínas.

O casal de "príncipes" o embriaga, roubam-lhe todo o dinheiro e também seu furgão.
Arruinado, sem dinheiro e seu material de trabalho, dirige-se a outra cidade, sendo conduzido por um ônibus.
Encontra com o senhor homossexual que lhe comunica a decisão: "GRAÇAS A VOCE, EU ENCONTREI CORAGEM PARA SAIR"

Poderíamos considerar a possibilidade de Ter ocorrido um ato analítico, na medida em que a presença do analista faz ato-ainda que não se colocando como analista, Joe ocupa a posição de Sujeito suposto saber, alguém que supostamente sabe sobre o cinema, sobre a vida e provoca no homossexual a coragem de sair daquele local e buscar a tal "felicidade" de poder ser respeitado e reconhecido em outro local?

Joe parece cada vez mais assustado ao perceber os efeitos de seu trabalho.
Recupera seu patrimônio com a ajuda de Beata, que reconhece o caminhão na posse dos bandidos e denuncia à polícia.
Joe pede a ela para voltar para casa, mas as freiras não a aceitam mais ali, pelo fato dela seguí-lo.
Joe tenta persuadi-la e utiliza até de força física, mas, acaba finalmente cedendo a seus encantos e fazem amor nas ruínas.

Continuam os trabalhos, de cidade em cidade, agora com a assistência profissional de Beata, sua "claque te" e mulher.
Trabalham por um tempo juntos e vivem momentos de aparente "felicidade".

Mas, como tudo que é bom dura pouco, Joe é interrompido pelo Delegado local, o mesmo policial que o interroga no início e é desmascarado na vista de todos.
Fora acusado por cafetinagem, roubos e outros crimes, tendo se emigrado nos EUA e participado da gravação de filmes e de contrabando.
Seu equipamento era roubado e as películas estavam vencidas.
Beata assiste aos prantos a queda de seu objeto amoroso, como Jocasta se desespera ao descobrir o que "não sabia".

O delegado sente-se um idiota por ter lhe confiado à alma, do mesmo modo que os camponeses, as mulheres e os pescadores: "todos entregaram a alma a você e provavelmente não farão isso nunca mais... Você não entendeu nada, só pensou em roubar uns trocados..."

Joe é conduzido à prisão e no caminho é assediado pelos mafiosos, por ter "brincado com os mortos".
Aplicam-lhe uma bela e grande surra, aos gritos desesperados de Beata.
É conduzido à prisão literalmente quebrado, sobre uma maca.
Depois de dois anos, tendo cumprido sua pena, é liberado e sai em busca de seu passado.
Sua aparência é bem diferente, encontra-se bastante envelhecido.
Encontra seu furgão e recebe a noticia de que Beata o habitara por uns meses, tendo ali se prostituído para sobreviver.

Arrasado, mancando de uma das pernas e muito triste, sai em busca dela e é boicotado pelos habitantes locais, que se negam a lhe revelar seu atual paradeiro, até que uma criança lhe sussurra no ouvido: "BEATA ESTÁ AONDE FICAM OS LOUCOS"

Joe a visita no Sanatório e a encontra no pátio, aparentemente impregnada.
Diz que veio buscá-la para irem a Roma.
Beata responde que esteve em Roma, durante anos e anos, quando era rica e fotogênica: "Vivíamos em uma bela mansão que tinha uma banheira enorme que Joe a chamava de piscina. Viajamos muito pelo mundo inteiro e depois Joe morreu".
Joe concorda com ela: ’E, Joe está morto: e eu sou o melhor amigo dele e ele me mandou vir aqui para lhe dizer que você é a única mulher que ele amou de verdade, só que naquela época ele também não sabia. Era lento para entender certas coisas... coitado... ele era um filho da puta".
Olha dentro dos seus olhos e não encontra mais aquele brilho que o fisgara: seu olhar é extremamente triste e opaco.

Passa-lhe a mão na cabeça e carinhosamente lhe diz: "SE ALGUM MOMENTO VOCE QUISER CONVERSAR O QUE SE PASSA AQUI DENTRO DE SUA CABEÇA EU PODEREI VIR VISITÁ-LA E FICAREMOS UM POUCO JUNTOS"

Beata lhe agradece e lhe pergunta se ele sabe como as coisas irão terminar.
Joe sai muito triste em seu caminhão, ouvindo e reouvindo os depoimentos gravados que pareciam agora lhe fazer sentido, como se agora, no lugar do MORTO, como ele próprio se colocara, pudesse finalmente...OUVIR

O meu interesse foi o de enfocar o percurso do protagonista dentro do filme que pouco a pouco vai encarnando a função que ocupa de Sujeito suposto saber, sobretudo quando ele próprio sofre os efeitos de seus atos.

Se, a transferência simbólica envolve os dois sujeitos e muda a natureza dos seres em presença, Joe sofre no real do corpo e a partir disso, muda sua posição (subjetiva) diante do outro e se oferece como "analista", alguém que se oferece ao outro para ouvir.

Sabemos que a especificidade de uma análise, o que poderia distinguir de outra ligação transferencial seria o modo de ação que o psicanalista ocupa, no lugar particular de objeto a.

O analizante fala, de início, dele para um x, para uma imagem.

Ele faz uma demanda (S) para um suposto, para a imagem que ele faz do analista (I).O analista, por sua presença real e sua fala, se endereça não à imagem de seu analizante, mas para o Sujeito representado pelos significantes enunciados e torna a trazer o que foi direcionado pelo analizante (I) para o Outro (S), isso faz ruptura neste eixo imaginário.

Concluo com outro trecho de Lya Luft no mesmo livro:

"A vida é uma tapeçaria que elaboramos, enquanto somos urdidos dentro dela. Aqui e ali podemos escolher alguns fios, um tom, a espessura certa, ou até colaborar no desenho. Linhas de bordado podem ser cordas que amarram ou rédeas que se deixam manejar: nem sempre compreendemos a hora ou o jeito de as segurarmos. Nem todos somos bons condutores: ou não nos explicaram direito qual o desenho a seguir, nem qual a dose de liberdade que podíamos - com todos os riscos assumir ".

 

Referências Bibliográficas

FREUD, Sigmund - A dinâmica da transferência- vol XII- Imago Editora

LACAN, Jacques - Seminários I, II, XI

‘A direção do tratamento "- Escritos-Campo Freudiano no Brasil-Jorge Zahar Editora

Luft, Lya - O rio do meio-

Dicionário de Psicanálise Freud e Lacan- ed.Agalma

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 19 - Julio 2004
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