Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Espelho e ideal
Machado de Assis e um pouco de psicanálise
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto

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A partir de conto de Machado de Assis, quero discutir a idéia de outro, a outra pessoa, na verdade, o objeto, ser continente, isto é, ser limite e forma para pulsão. Esse ser limite, vou --—o conto irá— expor a partir de seu aspecto mais narcísico e idealizado, que chamaremos aqui de "  sistema " eu-ideal—ideal do eu. Trata-se muito mais de uma discussão psicanalítica a partir do conto, com o que ele sugere, do que propriamente uma interpretação. Essa última, contudo, não deixa de estar presente quando se faz necessária.

Espelho é o nome do conto, bastante conhecido; espelho, antes de tudo diz respeito a olhar, ou mais ainda, de como nosso próprio olhar se cruza consigo próprio, voltando-se sobre si mesmo. Olhamo-nos, pois, através do olhar em que nos vemos refletidos.

É justamente sobre isso, olhar de dentro e olhar de fora, que o texto principia a dissertar.

Quatro amigos estão reunidos em uma casa do velho Rio, em pleno século XIX2. Como num banquete de Platão, digamos, falam da natureza e do além dela. Disputam.

Entre eles está Jacobina, o quinto homem, que, por seu lado, recusa-se a entrar em torneios intelectuais, para os quais está evidentemente convidado nesse contexto.

Instado a participar dos debates, Jacobina somente o aceita com a condição de não ser contraditado. Isto é, poderíamos dizer, de não haver resistências sobre o seu dizer, o que não deixa de ser uma espécie de olhar —sobre aquilo mesmo que conta— e especular, visto que, sem resistências (sem a interposição da imagem do outro em si mesmo) esse olhar-dizer acaba sendo de si para si.

É interessante que, mantida a solidão especular, surge o monólogo e, bem para além do debatedor, Jacobina torna-se narrador. Recusando-se a debater, recusando-se à intervenção do outro, tem-se o efeito técnico de Jacobina tornar-se um narrador em primeira pessoa. Narrador interno, pois o conto continua a ser narrado em terceira pessoa pelo autor –são, portanto, dois narradores. E, ainda como no simpósio platônico (Fedro), narra para dissertar sobre a alma.

Há duas almas, inicia Jacobina dizendo. Uma que dirige o seu olhar de dentro para fora e outra que o faz de fora para dentro.

O espelho, por seu turno, vai surgir bem depois na seqüência linear do conto. Entretanto, ele está aí de forma bem óbvia nas duas almas que (se) olham. A alma exterior é interessantíssima. Ela pode ser um espírito; podem ser homens; pode ser um objeto; pode ser uma operação. Seja como for, é algo de muita importância para o seu portador. Pode, ainda, ser o poder, o ouro ou, para uma criança, um chocalho. Seria ela, então, já usando nosso jargão psicanalítico, algo muitíssimo investido, tão investido que organiza-se segundo a nossa própria forma e passa a nos olhar de fora.

Ora, aquilo que Freud (1921/1990), em "  Psicologia de massas e análise do eu " atribui o nome de ideal do eu tem justamente essas características: o alto investimento, tão intenso quanto narcísico3 acompanhado, por vezes, de sentimento de duplicidade psíquica4. Aliás, essa duplicidade —egóica— encontra na teoria freudiana uma relação com a literatura. A idéia de duplo literário, que Freud aponta em "  Das Unheimliche " ("  O ominoso ", 1919/1990), já indica a divisão do eu em um eu atual e um ideal de eu, concepção que vai se instaurar de uma vez por todas em "  O eu e o isso " (1923/1990). Creio ser bem interesante ler nas suas próprias palavras, antes de voltar ao texto de machadiano. Diz Freud:

O motivo do duplo foi estudado a fundo por O. Rank num trabalho que leva esse título (1914). Nele indagam-se os vínculos do duplo com a própria imagem vista no espelho e com a sombra, o espírito tutelar, a doutrina tutelar e o medo da morte, mas também lança-se viva luz sobre a surpreendente história genética desse motivo .(...) A representação do duplo não necessariamente é sepultada com esse narcisismo inicial; com efeito, pode assumir um novo conteúdo a partir dos posteriores desenvolvimentos do eu. No interior desse último, forma-se pouco a pouco uma instância particular que pode se contrapor ao resto do eu, que serve para a observação de si e para a autocrítica (...) (1919/1990, p.234-235).

A característica que ressalta, portanto, do conto de Machado de Assis é o aspecto ótico, escópico. Esse último vai-se e não se vai encontrar enfatizado em Freud.

Como acabamos de ver, ele é encontrado em "  Das Unheimliche ", mais exatamente onde o autor comenta o estudo de Rank cujo título é justamente "  O duplo ". Entretanto, mesmo que Freud dê um exemplo de si mesmo, logrado e assustado frente à sua própria imagem em um trem (exemplo que retomo adiante), o especular-visual parece não adquirir grande ênfase. Em "  O eu e o isso ", tanto o eu como o ideal de eu ligam-se sobretudo ao sistema perceptivo; aliás, devem a sua existencia a esse último. Mas a percepção que aí está em jogo é nitidamente acústica. É por isso que o modelo esquemático do psiquismo tem uma espécie de orelha. Trata-se de um aparelho de recepção acústica, posto na superfície superior do desenho. Veja-se o que diz Freud, mesmo quanto ao supereu/ideal do eu:

Pois bem, tendo em vista a significatividade que atribuímos aos restos pre-conscientes de palavra no eu, surge uma pergunta: o supereu, toda vez que é ICS, consiste em tais representações-palavra ou que outra coisa? A resposta prudente seria que o supereu não pode desmentir que provém também do ouvido, ele é, sem dúvida, uma parte do eu e permance acessível à consciência a partir dessas representações-palavra (conceitos, abstrações), mas a energia de investimento não é aportada a esses conteúdos do supereu pela percepção auditiva, a instrução, a leitura, mas por fontes do isso (1923/1990, p. 53)

Não se trata apenas da palavra, mas ela é predominante. O olhar, portanto, ali não é óbvio, mesmo quando nos lembramos que o ideal do eu, em sua função de supereu, surge da idéia de observação, de auto-observação (Selbstbeobachtung), e dos sentimentos persecutórios de ser observado, no caso da paranóia. É de observação que se trata, mas não necessariamente visual.

De um lado... De outro, afirmo que o visual, o escópico é absolutamente necessário quando se trata do eu, do eu-mesmo e de auto-observação porque, é o que mostra Machado de Assis, a introdução da figura do ver-se a si-próprio não tem outro modo senão o especular. Essa é, ao meu ver, uma primeira tese do conto.

Ainda quanto ao eu freudiano, não se trata apenas de uma espécie de espelhamento abstrato ou lógico; a própria menção de Rank, em "  Das Unheimliche " deixa clara a necessidade do aspecto concreto, visual, no caso, do espelho e da sombra para a formação do duplo e do ideal do eu. Do mesmo modo, em "  Sobre a iniciação do tratamento ", ao falar do método e recomendar a auto-observação do paciente, é à uma metáfora visual que Freud (1913/1990) recorre: "  Diga, pois, tudo quanto lhe passe pela mente. Comporte-se como faria, por exemplo, um viajante sentado no trem, do lado da janela, que descrevesse para o seu vizinho de corredor como vai mudando a paisagem ante a sua vista. " (p. 136).

O visual introduz, assim, explicitamente ou não, a idéia de pontos de vista. É, pois, à partir do trem que o olhar se lança sobre si mesmo como se fosse (sendo) outro (paisagem).

Uma outra passagem pode complementar essa metáfora da janela do trem.

Em "  O ominoso ", ao comentar sobre o horror do duplo, Freud conta algo que lhe ocorreu de fato dentro de um trem. Estando emseu camarote, em certo momento, devido a um solavanco, abriu-se a porta que dava para o banheiro e aí surgiu diante dele um velho senhor, em roupa de dormir. A porta fechou-se e Freud ficou esperando que ele saísse para mostrar-lhe o engano, o fato de estar em banheiro e em camarote errado. Entretanto, para sua sinistra surpresa, eis que percebe que não havia nenhum velho senhor a não ser ele mesmo refletido no espelho. Em lugar de se aterrorizar com o duplo, diz, não o reconheceu a princípio. Isso, contudo, não o poupou de guardar durante toda a vida um forte desgosto.

Ora, se juntamos esse episódio com a janela, também de trem, do paciente que se auto-observa, temos que, primeiro, esse último de algum modo também vê um duplo; e, segundo, também é chocante descobrir que essa paisagem na janela, que o sujeito-paciente vai relatando ao seu analista em algum momento tem de ser assumida como si-mesmo, como não mais que um reflexo. Para que isso ocorra, contudo, é preciso que algo mude nas posição do observador, ao menos a sua posição interna, virtual, em relação ao objeto observado5.

Isso quer dizer que o olhar, o observar, jamais é neutro, está marcado pela posição do observador. É justamente essa relação que o cinema moderno leva até o máximo e que, de algum modo está sendo discutida por Machado de Assis em seus contos e romances.

Pois bem, o que tem isso a ver com o ideal do eu freudiano? É aí, então, que a analogia que propus —entre as duas almas machadianas e o ideal freudiano— toma forma. Ora, o ideal do eu é sem dúvida parte do eu (ou mesmo uma metonímia sua), não obstante o vê a partir de fora; olha-o numa relação, na verdade, numa posição, de exterioridade e o faz a partir de seus objetos. É nesse sentido, então, que uma idéia, uma pessoa, um botão, qualquer coisa que esteja grandemente investida pode ser a alma de fora. Se está assim investida é porque representa, para a alma de dentro, os seus objetos mais primitivos e perdidos.

Mas, voltemos. No conto de Machado, a teoria das almas parece ser a premissa sobre a qual a narrativa vai se desenvolver e prosseguir. Ao mesmo tempo, ela é a tese a ser demonstrada e sua demonstração é o que justifica a narrativa de Jacobina. Agora, técnica e conteúdo vão-se conjugar. Do narrar em terceira pessoa, passa-se à uma narrativa em primeira pessoa e é a personagem, descrita em terceira pessoa, quem irá tomar o relais e conduzir a narrativa a partir de seu próprio e único ponto de vista. Não haveria grande coisa aí a ressaltar, nessa mudança de ponto de vista, se entre um e outro não houvesse o pedido de Jacobina de não ser argüido e nem interrompido, principalmente por disputas; e, ainda, se não houvesse um espelho no título.

É assim que a primeira personagem que entra em cena já o faz carregando consigo essa característica de especular e, portanto, de falta de provas e de um testemunho, de terceiro termo, na verdade. É como se alma de fora e alma de dentro se bastassem num falso diálogo, um diálogo fusional. Uma parece existir somente para a outra, apenas nas posições que se colocam mutuamente, uma para outra, evitando a todo o custo a existência da negativa e da contradição —o engano narcísico, portanto.

Em resumo, se a tese de Jacobina é a de que há também uma alma de fora, a que sustento, como já se deve ter percebido, é a de que Machado está falando do eu e do ideal do eu e de suas relações narcísicas, ao mesmo tempo em que isso sustenta uma discussão sobre a narrativa. Além disso, como deve-se ter percebido também, através do conto, quero realçar a importância do escópico, em si mesmo, para essa problemática do eu.

Continuemos, pois.

O narrador agora constituído, Jacobina, relata então que, aos 25 anos, mesmo sendo muito pobre, fora nomeado alferes da guarda nacional: um grande acontecimento em sua família. E eis que o olhar aí novamente entra e sorrateiro. Comenta o narrador que tudo fora alegria sincera, mas mesmo assim, note-se bem, diz, "  houve despeito e rancor e ranger de dentes pela vila (...) Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés " (p. 23).

Eis, portanto, a inveja, inveja e ódio conseqüente, que a palavra olhar está aí representando de forma condensada e faz notar. Esse mesmo olhar não deixa de ter algo que se relaciona com espelho. Vejamos que os rapazes, agentes do olhar de revés, são pois os semelhantes, os iguais do sujeito que se faz notar invejado. É por esse caminho que a glória de nosso recém-patenteado alferes se faz ver, pelo espelho invejoso e hostil de seu semelhante.

De outro lado, além de hostilidade, "  Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação " (idem). Entre essas, encontram-se novamente os iguais: "  e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... " (idem). Além do mais, a mãe "  ficou tão orgulhosa! tão contente! " (idem).

É pela introdução dessa linha materna que irá surgir a figura de tia Marcolina. Ela o convida, pois deseja vê-lo com farda e tudo. Note-se esse último detalhe: "  que levasse a farda " —linha do olhar materno, maternalmente erotizante:

(...) porque tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu à minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher (p. 24).

E nossa personagem, então, como que metamorfoseia-se em sua própria farda, sua apresentação (para o olhar... materno). É alferes para cá, alferes para lá. Era o senhor alferes, conta-nos.

Não imaginam, diz Jacobina, tudo isso chegou ao ponto —fantástico e cheio de significados, digo eu — de tia Marcolina instalar no quarto de nosso protagonista, o então jovem Jacobina, um espelho. Isso é fantástico porque o que tínhamos até aqui, pelo menos aparentemente, é Jacobina e sua farda —pele— na posição de ser olhado, erotizado pelo olhar do outro. Agora o que tia Marcolina propõe é "  olhe-se ". Olhe-se, mas com meus olhos...

Estamos já desde o começo no plano do especular. A própria idéia de alma de dentro e de alma de fora já o propôs6. Assim, a introdução do espelho —pelo autor, no texto; por Jacobina, na narrativa; e por tia Marcolina, no quarto (o que já é uma seqüência de imagens, como se fosse um jogo de vários espelhos)— não traz o especular, pois ele já está lá. Parece ter, sim, o sentido de criar uma imagem concreta para o que já está sendo dito. É um espelho e uma farda, imagens figurativas, quase fetichistas, para alma de fora e a de dentro respectivamente. É metáfora e, enquanto tal, substituição, mas é interessante ver que, de algum modo, o espelho representa o olhar erótico que vem pela linha materna, tia Marcolina, portanto seu substituto. E é ele quem olha, mas com o prazer de olhar da mãe e, ao mesmo tempo, de ser olhado por ela, como montando em si mesmo a cena completa. E é narcísico, esse olhar do outro aí é, antes de tudo, um olhar-se (como se estivesse sendo olhado pelo outro, portanto uma fantasia auto-erótica, talvez onanista).

O espelho recebe no texto a marca do especial. Ele é destacadamente diferente dos outros móveis: "  obra rica e magnífica que destoava do resto da casa " (p. 24). Frente a isso, ele é chamativo e o é de forma redundante. Isso porque, além de diferente, é muito (para a época e para a percepção de nosso herói) cheio de atavios, tais como delfins esculpidos e enfeites de madrepérola.

Destoante, vem como voz do passado. Era um espelho comprado em 1808, de alguém que o trouxera com a vinda da corte portuguesa para o Rio. É o passado presentificado sem mediações e, por isso, destoante, como geralmente ocorre com as aparições do infantil inconsciente em nossa vida cotidiana —sonhos, atos falhos e, sobretudo, sintomas. A entrada do espelho, portanto, vem acompanhada de uma espécie de licença para introduzir o interdito, o recalcado, na forma do fora de lugar.

Mais que tudo, espelho grande. E o alferes eliminou o homem, diz Jacobina:

Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade (p. 24).

O duplo aí, as duas almas, nessas falas e nesse momento pode também ser pensado como a dupla natureza do homem, consciente e inconsciente...

A alma exterior, então, que antes era o sol, o ar, o campo, os olhos das moças (notem-se os olhos) passou a ser "  a cortesia e os rapapés da casa, tudo que me falava do posto, nada do que me falava do homem " (idem).

Na nossa linguagem, podemos dizer que o eu "  de dentro " passou a ser apenas para esse olhar erotizante do eu "  de fora ". E, ao fim, de três semanas, relata o narrador, nada mais havia do homem; restava o alferes.

Nesse ínterim, Dona Marcolina teve de viajar, deixando nosso jovem Jacobina só e encarregado do sítio e dos escravos. Aproveitando-se desse fato, ao notarem situação tão favorável, usando de astúcia e envolvendo o recém-alferes em sua própria trama "  ótica " —o vaidoso orgulho da patente– os escravos logram escapar. Vê-se o jovem, agora sim, inteiramente só, entre galos, galinhas e três bois. Conta:

Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica rompida. (...) Ah, pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados (p. 25)

O que de mais importante ocorrerá é o que vem em seguida, contudo, não deve escapar-nos aí a idéia de armadilha do olhar, do olhar de fora a submeter libidinalmente parte ou grande parte do olhar de dentro. É uma queixa e uma confissão de fraqueza o que se tem, pis nesse trecho.

Isso evidentemente lembra uma sedução, o estar seduzido por um tal olhar. E é interessante que a palavra sedução não deixa de aparecer textualmente logo em seguida, mas deslocada. Isto é, o seduzido aparece como o outro. Vejamos este trecho:

— Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes diante do terreiro deserto e da roça abandonada (p. 26, grifo meu).

Do mesmo modo que são os escravos os seduzidos, é a roça a abandonada... Além de deslocamento, há aí metáforas interessantes. Nosso herói encontra-se, pois, seduzido e abandonado, seduzido como um escravo e abandonado como uma roça. E, de muito interessante, salta daí uma inversão: os escravos tornam-se livres e o alferes torna-se escravo... do olhar sedutor.

Encontrando-se só, Jacobina pensa em ir-se. Contudo, não poderia deixar o sítio, pois tem de cuidá-lo, tal como se comprometera. Minha solidão foi enorme, diz, "  Nunca os dias foram mais compridos (...) " (idem). Torturante tempo. Silencioso e suspenso, digamos. Tanto é que nada mudava, para dar sentido ao escoar do tempo, mas o silêncio do dia era o mesmo do da noite. O que há, poder-se-ia dizer, é uma intensa perda de sentido na vida psíquica. É justamente essa sensação de falta de movimento no tempo —e de perda de sentido na vida— que tem o depressivo nos seus piores momentos. É uma impressão de nada. É o que está no conto de Machado, expresso de maneira magnífica. Vale a pena ler este trecho antes de prosseguir:

Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação tão cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow e topei com este famoso estribilho: Never, for ever! —For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos (idem, grifos do autor).

Não era medo, diz, mas uma sensação inexplicável que somente o sono vinha a aliviar. O sono, neutralizando a necessidade de uma alma exterior, explica nosso narrador, permitia que só atuasse a alma interior. E aí surge o sonho como cumprimento de desejo: "  Nos sonhos fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam de alferes (...) " (p. 27). Neste caso, eis o desejo como desejo do olhar, do olhar sobretudo cobiçoso7.

Ao acordar, no entanto, tudo se esvaía e a alma interior não encontrava mais a alma exterior. Não conseguia trabalhar, escrever, mal conseguia comer e era um vasto silêncio.

Conta, então, Jacobina que, desde que ficara só, nenhuma vez olhara no espelho. E veja-se que interessante, senão fantástico: não deixara de fazê-lo por alguma espécie de resolução, mas porque "  não tinha motivo ". Ora, essa falta de motivo vem explicar, mas muito mais condensar toda a falta de vontade, de motivos em geral, de sentidos e de intenção de viver que se descrevem no horrível sentimento de paralisia do tempo.

Não tem motivos para olhar no espelho por que o espelho não está ali para representar-se a si mesmo, mas representar outros olhares, sabemos. Olhares cobiçosos, olhares invejosos, olhares aprovadores e, sobretudo, o olhar incestuoso de tia Marcolina. É como se dissesse "  Nada me importa se não estás lá " e, assim, perde sentido também o espelho.

Ao fim de oito dias (por que seria oito?) vê-se Jacobina, contudo, frente ao espelho, justamente "  com o fim de achar-se dois " (p. 28). Evidentemente, para quebrar a solidão, é o que quer dizer o autor. Note-se como o conto lembra uma análise.

Mas pouco viu. O vidro estava opaco —não se permitiu refletir, digamos. Isso porque faltava algo para esse espelho imaginário: " A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições (...) " (p. 28). Assim devia ter sido, diz, mas não foi isso que aconteceu, não foi essa a sensação que teve. Como, talvez, pudéssemos dizer, a realidade física não tem nada a ver com isso... Aliás, ela não tem nada a ver com espelhos, com o que eles significam para os homens.

A imagem, pois, era fragmentada —uma difusão de linhas, diz Jacobina, "  a mesma decomposição de contornos " (idem). Uma fragmentação da imagem que podemos pensar como correspondente ao sentimento de desfazer-se do tempo e do sentido.

O que, então, falta para reconstituir a imagem e dar sentido ao correr do tempo senão, eis de volta, a farda? Aí está:

— Estava a olhar para o vidro, com persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de advinhar.

— Mas, diga, diga.

Lembrou-me vestir a farda de alferes (...). (p. 28)

Ao fazê-lo, achava, enfim, sua alma exterior, diz: "  Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho " (idem). E todos os dias, num momento escolhido, nosso herói postava-se frente ao espelho, olhava, gesticulava, falava, era, pois, outro. Mas não sem a farda. E foi assim que pode, então, suportar mais seis dias naquela solidão.

E, diz-nos finalmente o autor, "  quando os outros voltaram a si [da surpresa], o narrador tinha descido as escadas " (idem, comentário meu entre colchetes).

A farda e o espelho, o espelho e a farda... Digamos que para um ideal do eu, o olhar "  de fora ", tem de haver um eu-ideal, o eu vestido de farda. A farda é o complemento do espelho —é ou está para ele–– e o conjunto todo é o que dá forma ao sujeito, entenda-se sentido, e, mesmo, objeto para a pulsão. É, portanto, esse olhar edipiano, acompanhado, como é de se esperar, de olhares invejosos e ciumentos, o que o atravessa de fora para dentro, aquilo que dá forma, sentido e até um nome: alferes. Alferesfarda, eis o nome do objeto para o desejo, na verdade de ser desejado. Nome também, conjuntamente com o espelho, do desejado olhar desejante da mãe.

Eis pois o sistema ideal do eu—eu-ideal, um para o outro, objeto e olhar; um objeto-eu magnificado para um magnífico olhar-desejo.

Autores como Lacan (1983) e Lagache (1982), por exemplo, propõem separar ideal do eu, eu-ideal e superego, como conceitos diferentes e, assim, defini-los um a parte do outro. Janine Chasseguet-Smirgel (1992), de maneira instigante, aceita a proposta e opera a separação de uma forma genética. Segundo ela, o superego é, como diz Freud, o herdeiro do complexo de Édipo e assim se comporta. Já o ideal de eu tem outra natureza, pois tem também outra gênese. Ora, ele é herdeiro do narcisismo primário, e é isso que diz Freud em "  Para introduzir o narcisismo ".

Entretanto, faço minhas as palavras de Jacques Goldberg (1985) Segundo esse autor, hoje se separa com excessiva facilidade duas instâncias do ideal, distinção, nota, na qual Freud não quis insistir. Diz Goldberg: "  O mais frequente é vê-lo [Freud] fazê-las funcionar como uma só instância: a instância do ideal. Ele deve ter tido alguma razão para isso " (p. 15).

Ora, o que Machado de Assis está nos mostrando, ao meu ver, é, primeiro, o que há de especular no ideal, nessa relação de um ideal e de um eu para o ideal. Segundo, a análise de seu conto permite interpretar todo um narcisismo, melhor, um auto-erotismo, mesclado inextrincavelmente ao movimento edipiano, ao desejo do olhar erótico da mãe. Digamos que é, ao mesmo tempo, o olhar incestuoso da mãe apanhado no narcisismo da criança; e é esse mesmo narcisismo apanhado na rede desse olhar. Assim, de um certo modo, o sistema ideal de eu—eu-ideal é o olhar da mãe que, pousado sobre a criança, torna-a magnífica. Estou convencido de que, na gênese, não se trata de um olhar apenas lógico ou relacional, mas um encontro real de olhares entre a mãe e a criança, alimentado pela pulsão escópica, e plenamente acessível ao observador.

Eis, pois, eu-ideal e ideal do eu, distinguíveis, mas inseparáveis, um sistema único. De mais interessante é que o conto "  ótico " de Machado de Assis leva-nos a pensar essas instâncias muito mais como posições e funções do eu do que como partes dele, como queria Freud. Mas, e o superego no meio disso tudo, ou melhor, a função superegóica aí ? Onde no conto de Machado de Assis podemos encontrá- lo ? Como, pois, se não parece haver vergonha, culpa, remorsos, nem discussões morais?

Ora, ele está aí e ocupa boa parte do conto. Ele se apresenta na sua forma mais primitiva e menos elaborada: é a ameça de abandono, capaz de desintegrar, fragmentar o ser, a sua imagem e o seu sentido de vida. Talvez esteja também nos sentimentos de escravidão, na dialéitca senhor-escravo à que Machado parece referir-se...

Ainda, André Chevance (1999, p. 35-38, cf. nota supra) dá-nos o prazer, a nós brasileiros, de divulgar Machado de Assis em uma universidade estrangeira, especificamente, francesa. Fá-lo em sua tese de doutorado em psicanálise, analisando justamente "  O espelho ", ao discutir a idéia de um patogênico espelho negativo, posto para as pessoas idosas, quando essas se tornam menos produtivas e belas. Na verdade, o autor não fala propriamente em análise, mas segundo ele trata-se, melhor, de uma "  exposição " do conto às teorias da fase do espelho, de Lacan e Dolto. Chevance fala sobretudo de uma regressão de Jacobina à essa fase e de um espelho sonoro, da palavra do outro, sobretudo de tia Marcolina. Essa palavra acaba por tomar um valor de pulsão, não sexual, mas pulsão do eu. É, ao meu ver, bem interessante. Contudo, primeiro, discordo inteiramente da idéia de dessexualizar o olhar em « O espelho ». Segundo, como já disse, creio ter mostrado o papel não de um discursivo metaforicamente especular, de um espelho sonoro, mas do escópico própriamente escópico e libidinal; esse, sim, estaria na raíz de todas as metáforas especulares posteriores. Terceiro, o presente artigo diferencia-se do de Chevance pelo fato de que aqui propõe-se o desafio de falar de espelho, analisar o espelhamento, sem obrigatoriamente utilizar o conceito lacaniano. Ora, isso não é feito gratuitamente, mas objetiva evitar a reprodução pura e simples de uma idéia tão pregnante que é a de fase do espelho, evitando encaixá-la justamente num conto que se chama "  O espelho "8.

E, finalmente, onde está a discussão literária que afirmei haver implicitamente no conto?

A idéia de espelho traz a de posições, do que hoje se chama ponto de vistas da narrativa. Isso já é suficiente para aí ver essa discussão. Além disso, o espelho, ou melhor, o especular e o narcisismo de que é metáfora, traz um narrador, algumas vezes, por outras uma personagem central, a partir de cujo ponto de vista a narração se dá, muito centrados em si mesmos, de tal maneira que a narrativa é impermeável ao testemunho, ao terceiro. É dessa forma que Jacobina desce as escadas antes que alguém possa questionar a veracidade de sua estória e o acertado de suas teorias. Ora, estou convencido que é justamente essa a estrutura de Dom Casmurro. Não há testemunhos que possam afirmar a verdade ou a falsidade da traição de Capitu. Capitu tem olhos oblíquos, olhar dissimulado de cigana. Eis aí o olhar também e; talvez, com muito espelhamento (para Bentinho). Em Dom Casmurro é também possível sentir-se a importância da presença da mãe; é o que nos diz um crítico literário brasilerio como Linhares Filho (1978) e para uma psicanalista (alemã ?) como Gisela Pankow (1988) 9. Mãe, Capitu, olhar... Quem sabe uma análise de Dom Casmurro sob a lógica do espelho e do naricisismo não seja um caminho interessante de pesquisa... Mas isso é outra conversa.

Paraná/Santa Catarina, dezembro de 2002 à 23 de janeiro de 2003.

Notas

2. "O espelho" foi primeiramente publicado em 1882, na conhecida coletânea intitulada Papéis Avulsos, em que Machado também incluiu seu famoso "  O alienista ".

3. Como se sabe, trata-se de narcisismo secundário; libido que investiu objeto, retirada deste e reinvestida no eu.

4. A idéia de duplicidade está inextrincavelmente ligada à de alma. Como chama atenção Freud, em "  Totem e tabu " (1914/1990) e Durkheim, em Formas elementares da vida religiosa (1882/1989, p. 82) a alma surge primitivamente como uma espécie de alter ego, como um eu que acompanha o eu e, mesmo, que sobrevive a ele.

5. De algum modo isso já está na seguinte observação de "  Das Unheimelich ": " Essa incerteza, porém, desaparece no decorrer da história de Hoffmann, e percebemos que pretende, também, fazer-nos olhar através dos óculos ou do telescópio do oculista demoníaco — talvez, na verdade, o próprio autor em pessoa tenha feito observações atentas através de tal instrumento " p.230. O interessante é a suposição de que Hoffmann tenha concretamente usado o instrumento de olhar. Toda a análise do conto que está aí (‘O homem de areia’, de Hoffmann), leva em conta o olhar, sobretudo porque a cena assustadora inicial é a perda dos olhos, pelo menino Nathaniel, roubados/arrancados por Coppelius, o perseguidor. A isso, Freud fornece interpretação baseada na idéia de castração, como também ocorre com a perda dos olhos por Édipo. Mas, a meu ver, o aspecto ótico do conto vai bem mais longe que isso: é todo um jogo de ver, ver-se, espiar, refletir-se, etc., e, mais, descobrir e, ao mesmo tempo, enganar-se.

6. Mas é interessante que se colocamos uma e outra alma olhando-se não sabemos qual, de fato é especular, é imagem, ou se ambas têm função de espelho uma para a outra.

7. André Chevance (1999, p. 36), a esse propósito, afirma que o sono de Jacobina, nesse momento, é portador de uma representação positiva de si mesmo, mas, mais que isso, faz menção à Dolto (Dolto e Nasio, L’enfant du miroir), que afirma que nos sonhos agem pacificadoramente as pulsões de morte que, então, podem ser aceitas pelo sujeito.

8. Não se trata, aí, de criticar Chevance. Em sua tese isso tem sentido. Com as teorias de Lacan e Dolto, ele busca fundamentar o conceito de um espelho socialmente negativo, posto para o sujeito idoso. A partir daí, lança a audaciosa idéia de que o mal de Alzheimer é psiquicamente causado, e sua causa eficiente está nessa relação especular negativa. Portanto, essa doença, tão ligada ao envelhecimento, seria uma forma disfarçada de depressão.

9 Essa autora (p. 90) vê em Capitu uma espécie de objeto transicional entre Bentinho e sua mãe. Podemos aqui pensar no espelho como um objeto da mesma espécie

BIBLIOGRAFIA

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PANKOW, Gisela. O homem e seu espaço vivido; análises literárias. Trad. Flávia Cristina de Souza Nascimento. Campinas, SP: Papirus, 1988.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 17 - Julio 2003
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