Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Prácticas universitárias e formação socio-política
Katia Aguiar - Marisa Lopes da Rocha

 

Unitermos: modernidade, paradigma científico, formação universitária, produção do conhecimento, pesquisa-intervenção.

 

Resumo:

Vinculada ao paradigma neoliberal, a universidade brasileira se mantém nos limites do tecnicismo cientificista e da formação pragmática. Como alternativa a tal modelo de produção científica, em especial no caso da formação profissional do psicólogo, procuramos reafirmar, enquanto supervisoras de estágio na área de Psicologia e Educação, a pesquisa-intervenção como referencial metodológico que se constitui como dispositivo institucionalista para a problematização da formação universitária e da política que permeia a produção do conhecimento. Assim, a pesquisa-intervenção vem viabilizando trabalhos de campo que colocam em análise as instituições que constroem a realidade sócio-política e os suportes teórico-técnicos produzidos na academia.

 

 

Nosso trabalho se organiza a partir do Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) e do Laboratório de Subjetividade e Política - LASP de duas grandes universidades localizadas no estado do Rio de Janeiro: a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Federal Fluminense (UFF). Integramos uma equipe de professores/pesquisadores/supervisores de estágio, que trabalham em análise institucional, perspectiva através da qual vimos desenvolvendo pesquisas-intervenção na área educacional, colocando em análise os efeitos de práticas singulares que produzem o cotidiano de muitas escolas brasileiras, assim como o da própria prática de formação universitária. Enquanto institucionalistas priorizamos uma abordagem micropolítica das produções coletivas remetendo-nos, portando, às experiências locais, aos conhecimentos parciais, às singularidades que nos levam às análises das relações micro-sociais potencializadoras de novas formas de organização macro-sociais. Desse modo, são, as relações com o conhecimento, com o corpo, com os mitos de referências que mudam de uma comunidade para outra pelas diferentes formas de inserção na realidade cada vez mais complexa dos núcleos urbanos nas sociedades atuais. A realidade social resiste aos quadros formulados a priori, às categorias gerais bem delimitadas, aos modelos já circunscritos que não conseguem mais explicar as condições da mulher, da família, da infância, dos excluídos, o que instaura o desafio de uma teorização permanente. É nesta perspectiva que temos como projeto colocar em análise as práticas que se instrumentam nas escolas em que intervimos e, entre essas as psicológicas, e estabelecer condições que viabilizem discussões das instituições que dão consistência à formação universitária. A própria atividade de formação se constitui como campo de análise. Grande parte das questões que bloqueiam a processualidade das escolas nas quais nos inserimos estão presentes nas instituições universitárias, entre as quais a atualização de modelos universais, a naturalização da realidade social, o especialismo cientificista, traduzidos em um conjunto de técnicas a serem aplicadas.

Por que a pesquisa-intervenção vem se constituindo em um método que viabiliza esse nosso duplo e simultâneo projeto, a saber, redimensionar a formação universitária a partir de construção de novas bases para a prática psicológica nas escolas?

Para responder a essa questão, é necessário estabelecer as referências que norteiam a formação acadêmica tradicional que criticamos e para a qual propomos mudanças, assim como caracterizar as novas análises que o método da pesquisa-intervenção vem instrumentando como dispositivo transformador da formação.

O paradigma moderno: da escola tecnicista às propostas neoliberais

A era moderna, em sua lógica e seus princípios, traz como pressuposto para a compreensão do homem, do mundo e de suas relações a estabilidade, a ordem e a regularidade como valor. É assim que o universalismo, a linearidade, a verdade, o causalismo e os dualismos se constituem como eixos centrais na formação dos rituais escolares, atualizando-se através dos dispositivos do paradigma científico. Instituições como a pedagogia, a infância, a normalidade, a disciplina, que se instrumentam através da escola, perdem a dimensão de construção coletiva, passando ao estatuto inquestionável e atemporal das necessidades.

No que se relaciona à infância, vemos a necessidade de cada vez mais cedo tornar a criança apta a assimilar os diferentes códigos hegemônicos. Esta inserção precoce intensifica o poder da semiótica dominante que estabalece formas de sensibilidade, de pensamento e de ação no mundo. Todas as instituições contribuem para esse fim e, como afirma F. Guattari (1985), a formação da criança não se limita a um campo específico, como o aprendizado de uma língua, estendendo-se também aos códigos e relações complexas com as máquinas que produzem as matrizes sociais, reafirmando uma determinada identidade sócio-cultural. É a homogeneização das competências semióticas o que caracteriza a maquínica das sociedades capitalísticas.

O modelo sistêmico que serve de base às organizações sociais aponta para uma visão orgânica das práticas instituintes da vida coletiva. Isto implica na produção permanente de dispositivos que atualizam leis universalizadas e princípios que ordenam as invariâncias de forma metódica. A "saúde coletiva" está colada à capacidade de adaptação, auto-regulação que preserva uma estrutura em busca de equilíbrio homeostático. As ações singulares, as instabilidades são integradas ao sentido geral das relações, através de categorizações, como adaptadas ao processo, ou excluídas, quando resistentes aos critérios de normalidade. É importante percebermos que, quando a vida social tem seu fundamento jurídico naturalizado, o que se constitui está na ordem da necessidade e da determinação, o que vem descaracterizar a produção histórica, na medida em que tais leis funcionam como transcendentes às práticas cotidianas.

Os altos índices de fracasso escolar se inscrevem nas situações reguladas por códigos e modelos universalizados e naturalizados que classificam e diagnosticam a população escolar, sem, no entanto, abrir espaço para a construção das condições de inclusão da diferença. A expectativa de movimento vinculada ao processo é evolutiva – determinismo linear de causas e efeitos, movimento este nunca transformador dos próprios modelos e, principalmente, das ligações que com eles estabelecemos. Mesmo quando originalidades são integradas enquanto contribuições que enriquecem os procedimentos, ainda assim estamos presos a um determinismo circular. A assimilação de um dado ao modelo revigora e atualiza o funcionamento da estrutura, não colocando em questão seu estatuto de Verdade, sua construção, sua gênese. Deste modo, o funcionamento se constitui como um conjunto de ações seriadas em que o resultado, sempre previsível, traz a priori as condutas possíveis. A questão é que, para a escola da modernidade, o modelo do equilíbrio se funda nas estabilidades que se apresentam através de uma hierarquia naturalizada, do desenvolvimento do homem entendido como evolução, da aprendizagem enquanto adesão às relações instituídas. A perspectiva adaptacionista pode pressupor tanto posturas ativas como passivo-perceptivas frente ao conhecimento, mas sempre dentro de relações que não levam em conta a diferença que constrói o social. A formulação científica da educação enquanto sistema de regras e de leis que devem ser preservadas privilegia as constâncias que têm como finalidade a previsibilidade, e não o desafio da construção coletiva do conhecimento.

Através do aparelho escolar e das formulações pedagógicas, os processos educacionais nos remetem a práticas constitutivas de modelos veiculando etapas cientificamente estabelecidas para o desenvolvimento humano, maneiras de apreensão dos conhecimentos, relações de aprendizagem e formas de convívio social . É importante ressaltar que, embora haja a predominância de certos modos de subjetivação, da constituição de formas de existência imprimidos na perspectiva educacional, nunca estamos em presença de uma única causalidade. Não há uma ação unívoca sobre certo modo de vida ou sobre o comportamento coletivo institucionalizado. Mesmo quando são postos em relevo os comportamentos, as normativas, enfim, os princípios hegemônicos que servem de base aos regimes de funcionamento das organizações sociais, ainda assim estaremos diante de uma multiplicidade de implicações que precisam ser indagadas, refletidas, discernidas.

No universo da ciência, é sob a égide da razão que se desenvolverá uma economia voltada para a organização da realidade em torno de problemas que reduzem as instabilidades, estruturando soluções lógicas e dedutíveis como única possibilidade de conhecimento. I. Prigogine (1990) evidencia que uma nova aliança entre mundo humano e mundo natural, vinculada à consolidação de leis universais, dará suporte às ciências modernas. O Deus único cristão será o mediador das diferenças, trazendo harmonia às descobertas que, na verdade, em última instância, testemunham a sabedoria divina. Será, assim, este Deus que dará início ao processo que culmina com a autonomia técnico-científica do conhecimento na modernidade, constituindo-se como legislador que, através da razão humana, conferirá ordem ao universo. As normas de cientificidade permitirão conferir autoridade e veracidade aos saberes que se constituem por meio da burocracia dos cálculos e medidas matemáticas. As categorias e ordenações resultantes de tal processo se fundamentam em princípios com estatuto de leis naturais, genéticas, que regulam a vida das organizações sociais e a produção dos conhecimentos. O universo é compreendido e traduzido nas relações de equivalências e similaridades que se apr esentam como o registro pertinente.

As marcas da modernidade que atravessam a educação brasileira vão configurando modos peculiares de construção da realidade educacional na própria história nacional. Em meio a esse processo, a universidade tecerá linhas singulares que dão sentido à formação que produz e que, em nosso trabalho, também estarão em foco através da análise das implicações.

O ensino superior brasileiro será construído na atualização do paradigma moderno voltado para a formação de profissionais que atendam às exigências do novo capitalismo depedente. Este se acha vinculado ao sistema industrial internacionalista, que na década de 50 norteará os rumos da política sócio-econômica ao nível nacional. Para a vida universitária, tal perspectiva traz como função a reprodução da força de trabalho que se consubstanciou nos eixos de implantação da Universidade de Brasília, generalizados na década seguinte para todas as universidades a partir da Lei 5540/68. A reforma universitária, que surge em meio às convulsões sociais da década de 60, sob a reivindicação de jovens estudantes por mais vagas no ensino superior, por melhoria de qualidade que inclui a necessária articulação entre universidade e problemáticas sociais e, neste sentido, pela construção de uma universidade crítica e democrática, constitui-se como um paradoxo. Se, por um lado, a reforma introduzirá a indissolubilidade entre ensino e pesquisa, a organização dos cursos de pós-graduação, o regime de tempo integral para professores, a substituição da cátedra por uma estrutura menor e mais flexível como os departamentos, por outro, trará uma concepção de ciência e de tecnologia profissionalizante com uma vinculação direta ao mercado de trabalho, cujo conteúdo pragmático e utilitarista se traduzirá na formação de técnicos. A universidade acaba por se constituir como agência de serviços, formadora de mão-de-obra para o pólo industrial que se organiza, desenvolvendo um projeto educacional que se reduz à reprodução do conhecimento produzido nos países hegemônicos e na instrumentalização dos estudantes. Com uma concepção economicista e cientificista, fator estratégico para a linha de desenvolvimento nacional, a educação aponta para uma formação enquanto eficiência prática. Esta buscará nas reformas uma crescente especialização e o conformismo às metas governamentais, bloqueando a constituição de suportes para a produção de novos conhecimentos, de críticas transformadoras da realidade. Podemos considerar que as principais metas, então, se acham ligadas a um modelo tecnicista: racionalização da ordem administrativa acadêmica, que se traduz em uma razão instrumental em termos da eficiência técnico-profissional; otimização de recursos, compreendendo o máximo de produtividade com o mínimo de gastos; "democratização" do ensino frente ao grande contingente de excedentes, através do aumento de vagas nos cursos considerados prioritários para o desenvolvimento nacional e incentivo subsidiado ao setor privado nos demais cursos; garantia de meios para manter uma organicidade estrutural, o que na prática conduziu ao controle instrumental e mecânico, constituindo burocracias de ensino.

As estratégias neoliberais, enquanto medidas radicais para a crise do capitalismo, só ganham visibilidade, no Brasil, a partir da década de 90, com as medidas de enxugamento econômico realizado no setor público pela exigência internacional de globalização da economia. A filosofia neoliberal estabelece que a responsabilidade pela crise se encontra no crescimento do Estado e do setor público, que reduzem a iniciativa e a competitividade do setor privado e, neste sentido, é a privatização que se apresenta como saída para a reestruturação da economia. A proposta não está em acabar com o Estado, mas torná-lo mínimo e forte para garantir as novas medidas e a estabilidade atrativa para os investidores nacionais e internacionais. O acirramento dos problemas na atualidade são, assim, analisados como desvios e não como conflitos advindos do próprio modelo. Em países como o Brasil, onde o bem-estar social já é precário e o exercício da cidadania é algo ainda não conquistado, a diminuição de recursos públicos na educação, em todos os níveis, na saúde, em habitação... é no mínimo perverso. O desafio proposto à população é de que se constitua como micro-empresário, abrindo pequenos negócios, do mesmo modo que encontre recursos para consumir os serviços privatizados (ensino pago, planos de saúde e aposentadoria privados...). O neoliberalismo cria uma realidade, uma cultura própria, na qual a única saída para a sobrevivência se inscreve nesta ordem, não existindo, portanto, outra alternativa.

Em relação à formação, a perspectiva neoliberal dá ênfase ao individualismo, à produção de consumidores em permanente competição. A educação passa a ser enfatizada como mercadoria e as tecnologias se constituem como vantagens competitivas para quem as controla. A qualidade, considerada pelos movimentos dos educadores como direito social coletivo, passa a ser algo naturalizado no mercado dos saberes, o que legitima a exclusão no interior do processo de ensino-aprendizagem, na medida em que qualidade é algo que se tem ou que não se pode ter. Do mesmo modo, a idéia de excelência presente no meio escolar mobiliza a competitividade entre alunos, professores e centros de formação em busca dos fomentos e de condições melhores de trabalho, fortalecendo a padronização e a hierarquia. A articulação entre educação e mercado de trabalho, além de revigorar a relação entre conhecimento e técnica, situando a escola como lugar de treinamento, ainda aponta na atualidade, para o atrelamento das pesquisas ao interesse de financiamento dos setores privados. Estamos diante de práticas que servem a qualquer fim, uma vez que a formação utilitária não inclui a idéia de análise da produção de sentidos.

Finalmente, a crise da educação não contribui para a visibilidade de seu modelo nem da lógica que preconiza, apontando como diagnóstico um problema de gestão cuja alternativa está na adoção do padrão empresarial como forma de racionalização, eficiência e objetividade. Portanto, são ainda as novas tecnologias que trarão os critérios rigorosos, científicos, neutros e universais de avaliação de qualidade, desconsiderando a discussão das políticas de produção do conhecimento, dos critérios que servem de base para as ações, das diferenças histórico-sociais construídas no cotidiano das práticas institucionais.

 

Perspectica institucionalista: a pesquisa-intervenção como prática de mudança na formação educacional

Desde os anos 60, o movimento institucionalista trabalha no sentido de provocar mudanças na vida dos grupos, das organizações e das instituições, constituindo processos que buscam colocar em análise as relações que produzem e reproduzem a realidade sócio-política. No Brasil, esse movimento ganha, entre as décadas de 80/90, uma forma singular a partir das contribuições da Análise Institucional de linha francesa, do movimento grupalista argentino, da abordagem microfísica do poder em M. Foucault e da micropolítica de G. Deleuze e F. Guattari. A problemática que levanta a abordagem micropolítica das relações sociais como essencial às práticas de transfomação das construções coletivas se vincula à maneira pela qual construímos os modos de subjetividade dominantes, estereotipias da existência. Neste sentido, partimos da afirmação de que as grandes organizações políticas, de representação da realidade social, só ganham consistência por existirem ao nível dos indivíduos e dos grupos. Para que os rituais cotidianos cedam lugar a novas práticas, é fundamental que uma outra pragmática favoreça novas atitudes, sensibilidades, reflexões, comportamentos. Enfim, que um outro tipo de análise corresponda a uma nova política de subjetivação, que potencialize as diferenças, não como caos ou desordem rebatidas na ordem estabelecida, mas como inscrição de maneiras diversas de estar no mundo. Tal perspectiva requer, no entanto, o rompimento das dualidades que separam de forma absoluta o certo e o errado, os bons e os maus projetos, características da formação moral capitalística. O que buscamos evidenciar a partir da abordagem micropolítica é que é imperativo da criação permanente de dispositivos para que as questões estejam se colocando e se recolocando a cada momento – construção da ética nas práticas. A realidade social está atravessada pela dupla lógica que aponta para o registro das formas constituídas (organização, ideologia, representação...) e para o regis tro das virtualidades (momento de construção dessas formas, da diversidade, do não-totalizado). Assim, um grupo pode ter idéias e ações reconhecidamente libertadoras como projeto macropolítico mas, ao mesmo tempo, práticas moleculares extremamente autoritárias. O contrário também se constitui como possibilidade, ou seja, dentro de um grupo com estrutura conservadora, com idéias tradicionais, podemos encontrar em suas injunções cotidianas focos de expressão de singularidades que não levam necessariamente a políticas adaptacionistas.

Intervir na realidade através da abordagem micropolítica implica interrogar a pretensa universalidade das teorias, tidas como representação geral da essência de um fato. Nesta perspectiva, o que atualizamos nas experiências locais é a lógica da aplicabilidade que tem sentido numa certa relação com os modelos. A construção teórica que se faz como busca de caminhos que levam ao conhecimento estabelecido a priori não se constitui como invenção, mas como descoberta.

A micropolítica da relação entre teoria e prática desconstrói a hierarquia tradicional, resgatando o desafio de construção coletiva do conhecimento. A gênese teórica e a gênese social se processam concomitantemente, assim como a provisoriedade se estende no par sujeito-objeto, desfazendo as idéias de um objeto desvitalizado e de um sujeito-essência ativo. A teoria não é neutra, objetiva, verdadeira, passando a se constituir como conhecimento sempre parcial que demanda uma outra relação entre saber/fazer, teoria/prática, pesquisador/pesquisado, universidade/sociedade. Nas intervenções, o que buscamos colocar em análise a experiência na qual se constitui simultaneamente sujeito, objeto e campo de expressão.

Enquanto dispositivo, a pesquisa-intervenção delineia cartografias, os movimentos cotidianos, as redes que tecem a vida sócio-política, pondo em discussão o paradigma cientificista que nas ciências humanas e sociais tende a eliminar os fatores singularizantes, subjetivos, em função da neutralidade , da objetividade, da universalidade de princípios que representam a verdade social. Tal paradigma também investe na fragmentação crescente das disciplinas que formam os especialistas, não dando conta da complexidade da vida social, dos problemas contemporâneos do homem moderno. Na pesquisa-intervenção, a relação pesquisador/objeto pesquisado é dinâmica e determinará os próprios caminhos da pesquisa, sendo uma produção do próprio grupo envolvido. Pesquisa é, assim, ação, construção, transformação coletiva, análise das forças sócio-históricas e políticas que atuam nas situações e das próprias implicações, inclusive dos referenciais de análise. E um modo de intervenção na medida em que recorta o cotidiano, em suas tarefas, em sua funcionalidade, em sua pragmática - variáveis imprescindíveis à manutenção do campo de trabalho que se configura como eficiente e produtivo no mundo moderno. Para isso, intensifica fatos do cotidiano através da utilização de analisadores - o que faz rupturas, decompõe, provoca análises, desnaturalizando procedimentos, crenças, padrões estereotipados. É neste sentido que a intervenção se articula à pesquisa para produzir uma outra relação entre instituição da formação/aplicação de conhecimentos , teoria/prática, sujeito/objeto, recusando psicologizar conflitos. Conflitos e tensões são índices das diferenças que buscam ganhar expressão em meio às representações e modelos construídos fora das práticas, nas regularidades que compõem a normalidade, o equilíbrio dos processos.

A proposta de pesquisa-intervenção se acha então, vinculada à interrogação dos múltiplos sentidos cristalizados nas instituições, aprisionados nos rituais que bloqueiam a produção permanente de mestres-aprendizes. O momento da pesquisa é o momento da produção teórica que escuta o cotidiano e coloca em discussão as representações teórico-práticas.

Nos trabalhos que vimos desenvolvendo, alguns outros dispositivos foram constituídos como mobilizadores permanentes de análises e movimentos. A organização de um núcleo interinstitucional UERJ/UFF, ligado ao Laboratório de Subjetividade e Política (LASP), foi fundamental como elemento aglutinador de professores, pesquisadores, supervisores, alunos e estagiários com interesses em questões relativas aos pro cessos educacionais. O núcleo se constrói nos estudos e análises que articulam as várias disci plinas que contribuem para redimensionar as práticas; na produção de textos e trabalhos; na articulação e avaliação de experiências diversificadas, como a participação em congressos e palestras e nas pesquisas-intervenções que desenvolvemos junto à rede pública de ensino, em comunidades e organizações não governamentais. Os projetos coletivos de trabalho se constituem em outro elemento que vem possibilitando não só uma ação conjunta entre equipe universitária e sociedade, mas também uma produção de conhecimentos que se estruturam nas análises das instituições que dão forma ao cotidiano, na discussão dos desafios da realidade vivida e dos limites dos modelos e recursos teórico-metodológicos disponíveis. Assim, a perspectiva é de participar nos grupos já existentes no próprio campo de intervenção ou de contribuir para a instituição de núcleos temáticos que possam produzir permanentemente projetos frente às questões que, construídas no território escolar, convocam a todos nós, educadores, a indagar, pesquisar e propor novas pragmáticas. Enfim, ensino, pesquisa e intervenção indissociadas, transformando a realidade educacional a partir de quem constrói a educação! Esta postura vem possibilitando sair do lugar de especialista que atualiza a relação pedagógica hierarquizada onde se estabelecem os dualismos saber/poder, mestre/aprendiz. Romper com as práticas de dependência a que estão submetidos os educadores e os alunos de um modo geral – práticas que não abrem espaço às mudanças no ensino.

Na formação do psicólogo, esta sistemática de atuação vem despotencializando a hegemonia do modelo clínico que codifica os acontecimentos, analisadores dos processos, como casos a serem diagnosticados, curados, encaminhados ou prevenidos. É ainda importante ressaltar que em cada projeto, nas diversas situações, a produção de dispositivos analisadores dos rituais, é condição para o desmanchamento das linearidades e dos ciclos que aprisionam as ações do coletivo. Um outro fator não menos importante é que a articulação entre a perspectiva macropolítica (a que toma como base os grandes recortes já instituídos no social, perspectiva molar de análise) e micropolítica (a que faz recair as análises num real não-totalizado, parcial, provisório) é que viabiliza a desconstrução dos pressupostos da ação naturalizados como verdades inquestionáveis, criando novas estruturas, novos fatos. As generalizações dos modelos e projetos são, então, contextualizadas e práticas alternativas ganham consistência com o estatuto de provisoriedade, já que a realidade está em mudança o tempo todo. Assim, o investimento não é no consenso, na integração que postula a verdade naturalizada que passa a representar a realidade, silenciando as vozes singulares e constituindo os fantasmas.

Em nosso cotidiano de trabalho, as análises dos modos como estamos implicados com as questões educacionais têm sido de fundamental importância, pois vêm dando condições à equipe de mobilizar aquilo que, dos efeitos produzidos no ensino tradicional se atualiza através de nós como repetição do mesmo, cujas forças são de conservação. Isto significa discutir a identidade profissional vinculada à divisão social do trabalho que preconiza o especialismo e a hierarquização; significa também colocar em análise as relações que caracterizam a supervisão como disciplina, afirmando a divisão de poderes e a exclusão. Neste sentido, é importante o evidenciamento da cultura da academia-em-nós. Esta remete teorias a outras tantas teorias, configurando um saber acabado e propriedade dos especialistas. Numa visão conservadora, tais relações com o conhecimento o vêm descontextualizando, inviabilizando a inserção dos diversos profissionais na sua construção a partir do lugar que ocupam no processo. Isto se dá tanto no que tange a alunos e estagiários no interior da universidade, como às comunidades com as quais trabalhamos. Do mesmo modo, a coletivização das análises, atividades e discussões contribuem para a fragilização da competitividade e do individualismo atravessados no nosso modo de fazer/pensar capitalístico.

Tradicionalmente o grupo considerado apenas como entidade, algo dado e num ericamente determinado, não se atualiza enquanto intercessor de movimento. Na nossa experiência, o grupo, para além de sua formalização, atua como dispositivo disparador de processos constitutivos do nosso cotidiano de trabalho. Esse movimento que possibilita a criação de novas relações entre equipes e destas com o trabalho, movimento que não remete a uma moral pré-estabelecida, mas à produção de valores, de uma ética, implica retomar os conceitos de autonomia, transformação e liberdade. A autonomia considerada como um estado a ser alcançado através de programas determinados de ação está referida à conquista de um reino futuro onde habita a liberdade. A liberdade está sempre sit uada fora das circunstâncias. Deste modo, a transformação passa a ser previsível no percurso estruturado como condição a priori. No entanto, a autonomia não é uma condição que, uma vez conquistada, nos leve ao estado de equilíbrio e bem-estar permanente. Se a entendermos como função de autonomia, como afirmam F. Guattari & S. Rolnik (1986), ela é exercício, movimento, práticas de transformação, entando referida ao presente, a realidade, às circunstâncias nas quais produzimos o cotidiano. Finalmente, a formação universitária e suas relações constituem um ponto importante a enfrentar, cujo desafio não é a preparação para a prática, para a sociedade, mas a análise de sua própria produção enquanto instrumento e valores.

Conclusões

Assim, o que se apresenta como desafio no processo de ensino-aprendizagem, em meio à crescente diversidade de modos de inserção na vida social, é a possibilidade de construção de práticas cujos suportes incorporem as singularidades.

A pesquisa-intervenção atua na possibilidade de construção não de um saber para a compreensão da realidade educacional, como se esta fosse uma totalidade estável, mas de um saber que possa servir como instrumento de análise, de ruptura, de escavação das instituições engendradas na escola, na recuperação de singularidades, do acaso, do que ainda não ganhou sentido. Essa perspectiva tem início na contextualização da escola, da formação, da educação em todos os níveis, trazendo seus compromissos, as implicações de seus projetos e as práticas produzidas por seu coletivo, buscando redimensionar análises que a flexibilizem por dentro, enquanto bloco compacto, totalidade, sistema integrado, organização solidária às marcas sócio-culturais. E isto, para nós, começa na própria formação universitária.

Colocar o cotidiano em permanente análise é trabalhar a partir das práticas como fonte produtora e validadora de conhecimentos. Não se trata de improvisação – intervenção desprovida de um projeto, de um eixo norteador de sentido, de conhecimentos que servem como pressupostos – nem da aplicação competente de um saber previamente elaborado por especialistas. Uma outra via é a alternância constante entre a formulação de estratégias frente aos saberes já produzidos e a construção de novas teorias, de acordo com a situação e com as barreiras que é preciso transpor. Esta é a formação que nos dispomos a construir com a perspectiva de formação de um profissional crítico e atento às expressões do devir.

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